OURO PRETO, MG (FOLHAPRESS) - Coros de "fora, Bolsonaro" e "olê, Lula" da plateia na Praça Tiradentes, em Ouro Preto, deram o tom dos shows mais aguardados da 20ª edição do festival Tudo É Jazz, que marcou o retorno presencial do evento. Reunindo cerca de 20 mil pessoas na cidade mineira, os destaques foram os espetáculos da americana Madeleine Peyroux, na sexta, e de Ana Cañas, no sábado.
Nome que se apresenta há mais de uma década no país, não foi Peyroux quem puxou a manifestação, ainda que ela seja crítica aos conservadores, mas o discurso lido pela atriz Tuca Moraes em homenagem a Maria Alice Martins, idealizadora do festival e morta em novembro de 2020, vítima da Covid-19. "Virou estatística", dizia o texto logo antes da agitação do público.
A americana exibiu notável integração com sua banda em uma série que foi de "Getting Some Fun Out of Life" até um momento bossa nova com "Água de Beber".
No entanto, o evento gratuito sofreu alguns problemas técnicos que abafaram os arranjos dessa e de outras apresentações. Peyroux foi a mais rigorosa, e pediu silêncio ao público que conversava durante o show.
Já Ana Cañas cantou Belchior, o que soou um pouco estranho na curadoria do ex-Mutantes Túlio Mourão, que se voltou mais para as saladas do jazz contemporâneo.
"O jazz fica no improviso, na capacidade melódica, mas cantar Belchior é o ponto oposto, é a letra máxima", refletiu a artista, que antes da MPB, cantava Billie Holiday e Gershwin para plateias requintadas.
A inflamação política, desta vez, veio em versos sugestivos versos como "uma nova mudança em breve vai acontecer", de "Velha Roupa Colorida", quando Cañas ergueu os braços para que o público, em resposta, fizesse o "L" de Lula com as mãos.
Outra discussão política veio à baila nos bastidores do evento na sexta. Após o pandeiro de Túlio Araújo se destacar ao trazer "Blue Rondo à la Turk", de Dave Brubeck numa batida brasileira, um artista de rua ergueu um quadro para presentear o pianista americano Evan Megaro, do conjunto.
A confusão se deu após o show, quando os músicos tentaram levar o rapaz de shorts e chinelo ao camarim no anexo do Museu da Independência. Os limites do "libertas quæ sera tamen" pulsaram, porém, quando a segurança barrou sua entrada.
O artista, Ernesto Alves, 34, chorava em frente a estilhaços de madeira --ele destroçara seu cavalete favorito num acesso de raiva. "Foi racismo, foi xenofobia", bradava ele.
"O cara é preto, pobre e queria entrar num ambiente só com gente branca", reclamou Araújo. Na sua opinião, a proibição foi mais um reflexo do racismo estrutural do que uma atitude do festival. Megaro, que levou o quadro para casa, reiterou a história, dizendo que tentou acalmar o artista que parecia estar alcoolizado.
Rud Carvalho, sobrinho de Martins e que assumiu a direção do festival nesta edição, respondeu que o camarim era exclusivo para os artistas, a imprensa e técnicos. "Acho super legal alguém da cidade interagir com os músicos", disse. "É uma pena, mas tem que ter a pulseirinha. Se a gente abre uma exceção aqui e ali...". Ele nega ainda que tenha sido racismo, citando a "raiz afro" do jazz.
Alves também procurou a Polícia Militar que fazia a segurança do evento, mas os oficiais se limitaram a dizer que "o caso não caracterizou racismo" e que o festival apenas seguiu suas normas.
Depois do ocorrido, não foi possível localizar o artista que, segundo moradores, já é conhecido na cidade, que tem cerca de 70% da população autodeclarada negra, e que lucra com as obras de Aleijadinho, filho de uma escravizada. Ou que ainda tem restaurantes caros que homenageiam párias folclóricos da região, como Bené da Flauta --que morava numa gruta da região e tocava instrumentos feitos de cana e bambu.
Ainda na sexta, Wilson Sideral se apresentou ao lado da Jazz Big Band, de Carla Sceno e Pedro Stéfano num tributo a Frank Sinatra, com direito a uma homenagem a Jô Soares, morto naquele dia, tocando o tema do talk show do comediante.
O tom político de "olê, Lula" se repetiu ainda no domingo (7) com o cortejo do bloco Magnólia, que nasceu no Carnaval de Belo Horizonte em 2014, com 20 músicos e cinco bailarinas que agitaram o público em um longo cortejo até o Largo do Rosário, onde o evento colocou outro palco maior.
Vale notar porém o pouco destaque dado a atrações locais. Foi o caso da fanfarra da escola estadual Desembargador Horácio Andrade, no dia 7. Com 28 voluntários ouro-pretanos --entre alunos, ex-alunos e trabalhadores que moram no bairro de Alto da Cruz--, o grupo fez um espetáculo ecumênico.
Às 10h, quando bateu o sino do Museu da Independência, eles fizeram um cortejo que passou de marchas de artistas locais, como "Andrade", de Geraldo Batista, para covers de Stevie Wonder ao "Ilariê" de Xuxa. O grupo recebeu um cachê total de R$ 1.000 --cerca de R$ 35 por pessoa.
"Dá para remendar o uniforme", afirma Waldiney dos Santos, 38, que encabeça o grupo que celebra 50 anos em 2022. "É a única fanfarra da cidade que sobreviveu por tanto tempo", celebra, dizendo que vai reunir diversas gerações que tocaram na fanfarra para fazer um cortejo com 80 pessoas no Sete de Setembro. Agora ele pleiteia uma verba de R$ 80 mil com a prefeitura.
Ao comentar a relevância do Tudo É Jazz para a população local, sobretudo a periférica, ele diz que o "povo está acostumado a tanto evento que sabe que este é mais um de fluxo turístico". Waldiney, que diz ter acompanhado as atrações, notou também a falta de representatividade local. "Escorre sangue dos escravos até hoje em Ouro Preto", resumiu ele.
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