SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Os anos de estudo sobre o potencial terapêutico de extratos de plantas; a experiência como imã (líder do culto em uma mesquita) e a atuação em prol do cuidado aos autistas após o diagnóstico da filha caçula. Nada disso poupou Sikiru Olaitan Balogun do episódio de racismo e agressão que vivenciou este mês em Dourados (MS).

Nascido em Lagos, na Nigéria, ele e a família têm enfrentado desafios nos 12 anos de Brasil ?eles moraram primeiro em Mato Grosso, depois se mudaram para Mato Grosso do Sul. Nunca imaginou, porém, que poderia ser agredido em um supermercado simplesmente por pegar o carrinho errado.

Tampouco poderia supor que o filho de 6 anos também sentiria os efeitos do episódio. "Achamos que ele tivesse esquecido, mas lembra de tudo que aconteceu", disse ele em depoimento à reportagem.

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Entrei em bioquímica planejando transferência para medicina, mas depois de um ano me apaixonei. Fiz a graduação e o mestrado na Nigéria e recebi uma proposta para trabalhar como professor universitário na Uganda. Ia fazer o doutorado lá, mas não havia condição de realizar os ensaios no laboratório. Fiquei lá quatro anos e passei em uma seleção para fazer o doutorado na UFMT [Universidade Federal de Mato Grosso].

Tive bolsa da Capes durante o doutorado, mas depois de defender a tese não conseguia nem renovar o visto, porque não tinha mais vínculo com a universidade, e nem trabalhar, porque meu diploma de graduação não era aceito. Fui à Polícia Federal, expliquei que tinha esposa e filhas, que não podia renovar o visto e nem tirar a carteira de trabalho, e pedi o formulário para candidatos a refúgio.

Nesse período, meu orientador de doutorado e nossos irmãos de Cuiabá nos auxiliaram. Recebemos Bolsa Família por cerca de um ano.

Com o pedido de refúgio, consegui pegar a carteira e trabalhar como pesquisador na UFMT. Foi quando minha esposa deu à luz. Cancelei o pedido de refúgio e solicitei a permanência baseada no meu filho brasileiro. Recebi uma proposta para trabalhar como professor no interior de Mato Grosso, em Juína, e desde agosto de 2020 estou como professor visitante aqui na UFGD [Universidade Federal da Grande Dourados, em Mato Grosso do Sul].

Minha esposa é nigeriana e fizemos um casamento islâmico. Nossa primeira filha nasceu na Nigéria e a segunda nasceu na Uganda. Vim para o Brasil junto com elas e tivemos dois filhos aqui: a caçula, que tem 4 anos, e o irmão de 6 anos. As mais velhas têm 16 e 12 anos.

Minha esposa usa burca e como alguns não sabem o que pode ou não, tentamos explicar. Na Nigéria, homens não tentam pegar na mão, cumprimentar uma mulher casada, mesmo que não sejam muçulmanos. Aqui não é assim. As culturas são diferentes, não é só questão de religião.

Quando minha filha mais velha começou a estudar em Cuiabá, foi discriminada pela professora. Quando nos mudamos para Juína, graças a Deus, fomos bem recebidos. Percebendo que minhas filhas usam hijab, a diretora da escola nos chamou e pediu que nos apresentássemos aos alunos. Ela explicou: "Eles são estrangeiros, têm alguns costumes diferentes, mas isso não é razão para discriminar". Isso facilitou muito para os alunos não maltratarem, não discriminarem.

Aqui, há a discriminação racial e, na Nigéria, discriminação por causa da tribo ou da religião. Lá, levar para a justiça é muito demorado. Aqui, as pessoas temem isso. Você pode ser pobre, mas se faz algo errado pode ter de pagar. Pelo menos funciona, algumas pessoas evitam fazer algo maior ou em público.

No dia 3 de agosto, uma quarta, levei meu filho para uma consulta e na volta fomos ajudar minha esposa, que estava no mercado. Quando finalizávamos a compra, peguei meu carrinho e fui com meu filho para os caixas. Deixei ele na fila e voltei para pegar o carrinho da minha esposa. Ela ainda estava escolhendo algumas coisas e disse que ele estava perto das mangas. Estranhei porque havia no carrinho materiais que não compramos muito, mas pensei que fosse efeito da inflação.

Levei o carrinho para a fila do caixa e percebi que algumas frutas não haviam sido pesadas. Falei para o meu filho: "Já volto". Fui pesar o que faltava e quando voltei o carrinho não estava lá e meu filho estava com o olho vermelho de chorar. Um cliente então falou: "Levaram seu carrinho, foi uma moça que deu um tapa nele".

Quando ele falou "uma moça", pensei na minha esposa. Fui atrás dela e ela me levou ao local onde havia deixado as compras. Eu tinha escolhido o carrinho errado. Mas se eu havia errado, por que bater no meu filho?

Quando eu voltei para a fila, meu filho estava chorando porque nesse tempo haviam voltado para pegar as frutas que eu estava pesando. Tentamos acalmá-lo e minha esposa disse que não podíamos deixar aquilo passar. Comecei a procurar o carrinho na loja e achei um senhor e uma senhora de idade perto dele.

Tivemos um diálogo e voltei para onde estavam minha esposa e meu filho e falei para ela: "Ah, são idosos". Ela disse: "O fato de serem idosos é a razão de a gente ter de voltar lá. Se fizeram isso com nosso filho, podem fazer com outra criança". Voltamos e minha esposa disse:

? Bom dia, senhora. Por que a senhora bateu no meu filho?

? Sai daqui, sai daqui, quero pegar algo na geladeira.

? Senhora, estou perguntando: Por que a senhora bateu no meu filho?

? Porque roubou o carrinho.

? Roubou? O carrinho para pagar?

? Eu não bati, apenas tirei a mão dele.

Vieram outros clientes e disseram que ela tinha batido na mão dele. Nesse momento, me chamaram de "preto" em tom ofensivo e o marido me deu um soco no ombro.

A essa altura, chegou a segurança do supermercado. Relatei o que havia acontecido e um comprador contou que tinha filmado. Disse: "Está aqui o vídeo. Eu posso testemunhar porque eu vi'".

Chamamos a polícia e ele foi detido em flagrante porque outro cliente mostrou o vídeo para a polícia, mas a mulher foi liberada porque disseram não haver evidência.

Tentamos não falar com nosso filho sobre o assunto. Não quisemos comentar para não ficar na memória porque não é uma coisa boa, é uma situação complicada, e fiquei surpreso quando ele mencionou. Ele lembra que a mulher veio, pegou o carrinho, bateu e foi embora. Foi bom ele não ter presenciado o soco, a agressão contra mim. Achamos que ele tivesse esquecido, mas lembra de tudo que aconteceu.

INVESTIGAÇÃO

A Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública de Mato Grosso do Sul informou que os suspeitos prestaram depoimento e que o inquérito foi instituído no dia seguinte como vias de fato e injúria qualificada pela raça, cor, etnia ou origem.

O delegado Ulisses Nei de Brito Santos, titular da 2ª DP de Dourados e responsável pelo caso, informou que o suspeito foi preso em flagrante por injúria racial e foi solto mediante fiança de um salário mínimo (R$ 1.212). Ele responde em liberdade. A esposa não foi relacionada.

Ainda segundo Santos, foram ouvidas testemunhas e analisadas imagens das câmeras de segurança, e a previsão era concluir a investigação nesta sexta-feira (26). A pena em caso de condenação varia de 1 a 3 anos de reclusão.

O Atacadão, mercado onde ocorreu o caso, informou que não corrobora com nenhum tipo de ato discriminatório e violência, que acionou as autoridades assim que soube do ocorrido e que ajudou a vítima. A reportagem não conseguiu localizar o suspeito.


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