SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O caso da menina de 11 anos da zona rural de Teresina que está grávida pela segunda vez, vítima de estupro, mostra como o Brasil naturaliza a violência sexual, dizem especialistas.

A nova gestação da garota acontece um ano após ela ter dado à luz e não ter realizado o aborto legal a que tinha direito --a suspeita é que ela foi estuprada por um primo na ocasião e agora, por um tio.

A advogada Luciana Temer, presidente do Instituto Liberta, afirma que é importante olharmos para esta situação de forma não excepcional, pois casos como este são comuns no país. Ela cita ainda a pesquisa Datafolha encomendada pelo Liberta que aponta que apenas 11% das vítimas de violência sexual na infância denunciam agressão.

"É importante entendermos o que ela sofreu, que foi a violência sexual intrafamiliar, que é muito comum", diz a advogada. Temer diz que não sabe as questões médicas que envolvem o caso desta criança em questão, mas considera que ela não ter tido direito ao aborto já pode ser considerada outra violência.

"Vítimas de violência sexual têm tido sistematicamente o direito de aborto negado", diz ela. "É uma violência sistematizada. Essas meninas estão numa condição absoluta de objeto."

A advogada considera que o fato de a sua mãe ter negado o aborto por considerar que prática é crime se trata de uma consequência da desinformação.

"Não posso condenar uma mãe que não sabemos a qual violência ela está submetida", diz Temer. "Esse caso deve ser olhado da forma que possamos olhar o todo da nossa violência generalizada. Vemos o criminoso, onde foi que ele aprendeu que ele pode fazer isso?"

Desde que o filho nasceu, a menina abandonou a escola e se tornou uma criança calada que pouco sai de casa.

"Temos uma menina fora da escola que está condenada a uma situação de violência pelo resto da vida", analisa Temer. "Falta um olhar da escola que não vai atrás de buscar essa menina. Deveriam acolher ela e não deixar que ela parasse de frequentar. Mas, ela sofreu tanta negligência que ela engravida de um novo estupro."

Para a advogada, o problema se inicia quando a sociedade não fala da violência sexual "Temos um sistema de justiça, educacional e de saúde que não sabe lidar com a violência sexual. Ainda somos uma sociedade em que isso não é problema."

Temer alerta que a falta de olhar para essa violência traz consequências graves. "Não é algo pontual, é estrutural. Enquanto não enxergarmos isso como sociedade não vamos construir políticas públicas. Precisamos ter conversas sobre isso nas escolas e a criança não pode estar fora da escola."

Juliana Martins, coordenadora institucional do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, reforça que essa discussão não pode deixar de acontecer na escola e ressalta que em mais de 80% dos casos de violência sexual o autor é conhecido.

Neste caso, a criança deveria ter sido acolhida por meio de um atendimento psicossocial, que tratasse dela. "Os impactos disso nessa menina ainda vamos saber, mas o ideal é que ela pudesse ter um acompanhamento enquanto essas demandas vão surgindo. Além disso, é importante para se verificar essas relações familiares."

A promotora Fabiana Dal Mas, do Ministério Público de São Paulo, explica há três situações em que a interrupção da gravidez é permitida: em casos de estupro, risco para a mãe e anencefalia do feto.

Logo quando foi abusada pela primeira vez, ela deveria ter tido um atendimento psicossocial integrado e recebido todos os apoios que uma vítima de abuso tem direito previsto na Lei do Minuto Seguinte, que inclui métodos de prevenção de gravidez e doenças infectocontagiosas. "Se ela tivesse tido esse suporte lá atrás, talvez nunca tivesse engravidado", diz ela.

"Todos os pactos internacionais garantem que a criança deve ter uma assistência à saúde sexual e reprodutiva com dignidade. Nesse caso, a menina perde sua condição de criança e o direito à própria dignidade", afirma Dal Mas.

A promotora afirma que ao não garantir os direitos sexuais, as primeiras que vão pagar por isso são as meninas que seguem sendo vítimas de estupro. "Ao falhar, obriga-se que a criança sofra um ato de tortura e o argumento é que a família brasileira vai se proteger, mas a família não está protegendo."

Dal Mas pontua que, nos últimos anos, é comum que gestoras de escolas sofram perseguições ao tentar dialogar sobre violência de gênero dentro das instituições de educação. "Se não existe esse diálogo dentro da família, que é onde o agressor está, isso tem que ser transposto para a escola, que se não faz esse papel, contribui para a retroalimentação dessa violência."


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