SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Com o avanço das obras do Metrô de São Paulo no Bexiga e o crescente interesse do setor imobiliário pela região, acendeu-se uma luz amarela a respeito da preservação do bairro, que fica no distrito da Bela Vista, região central de São Paulo.

Moradores e comerciantes se organizaram para frear o que temem ser a maior perda da memória daquele histórico canto da cidade, ainda hoje habitado por classes de A a E.

Não será tímida a transformação da região, que tem como principal via a rua Rui Barbosa, entrecortada por ruas repletas de cantinas antigas, teatros e lojas de mobiliário e relíquias. Já estão sendo construídas duas estações ali, referidas como 14 Bis e a Bela Vista. Elas pertencem à linha 6-laranja, que ligará a Brasilândia, na zona norte, à estação São Joaquim, na Liberdade.

Iniciaram-se as desapropriações de imóveis no quadrilátero onde estava a sede da escola de samba Vai-Vai, cujo prédio foi demolido. O escopo do projeto atraiu, então, o olhar do mercado. Diversos donos de imóveis da região reportam o trabalho constante de corretores, porta a porta. O proprietário de um antigo estacionamento disse à Folha que já recebeu seis propostas neste ano.

Se observados os lançamentos imobiliários na região nos últimos dez anos, é possível constatar uma variação de 7.084 a 12.369 imóveis colocados no mercado anualmente até 2020. Houve um salto expressivo em 2021, para 16.052 lançamentos, e essa tendência se mantém em 2022, com 11.824 unidades apenas no primeiro semestre. Os dados são da Secovi-SP, entidade que representa o setor imobiliário.

O Plano Diretor já estimulava a verticalização nas proximidades dos chamados Eixos de Estruturação Urbana, que são perímetros e faixas vizinhas a estações de metrô e corredores de ônibus, principalmente. Além disso, o Bexiga foi englobado no perímetro da Área de Intervenção Urbana (AIU) do Setor Central, instrumento decalcado em incentivo fiscal e fins para adensamento construtivo.

Até aqui, contudo, o Bexiga ainda tem traços de um bairro que parou no tempo, mesmo que com conjuntos mal preservados. Emaranhados de fiação velha, calçadas desniveladas e com buracos, fachadas com rachaduras, tudo isso compõe o cenário de uma cidade posta de escanteio, mas que ainda se mira no vicejo da cultura popular, das festas religiosas, feiras e, principalmente, na atmosfera para os pedestres.

Dono de uma casa tombada, Luiz Carlos Cruz, 78, conta que a edificação foi construída por um ascendente italiano de sua mulher, tendo sido finalizada em 1919. Para ele, o tombamento "é bom e é ruim". "Bom porque preserva a memória; ruim porque a maioria das casas [na vizinhança] são todas invadidas", ou tiveram como destino o modelo de pensão, cheias de subdivisões.

Cruz diz que nunca recebeu incentivo da prefeitura ou do estado para manter o bem tombado e reclama que reformas, às vezes urgentes, precisam ser aprovadas pelos órgãos de preservação. São processos burocráticos e demorados.

Vizinho a ele, a Folha identificou casas subdivididas, compartilhadas por até seis famílias. Muitas delas, segundo os moradores, já perderam boa parte de suas características originais após reformas.

Foi nesse cenário que o bairro viu surgir um movimento de enaltecimento de suas características geográficas e arquitetônicas, como o Salve Saracura, que se define como um "coletivo multidisciplinar, auto-organizado e horizontal de cuidado das águas e território do Bixiga" ?é comum que se grafe Bixiga assim mesmo, com i após o b.

A pressão exercida por esse movimento obteve uma vitória: o reconhecimento de um sítio arqueológico chamado Saracura-14 Bis, já cadastrado no Iphan, órgão de preservação do patrimônio histórico na esfera federal. Aponta-se ali para a existência do Quilombo do Saracura em um passado não muito distante. O tópico que retorna é que a cultura dos negros foi apagada pela valorização da cultura europeia.

Era uma "comunidade de negros e africanos que lutavam contra a escravidão", diz texto do movimento. Assim, seus organizadores pleiteiam que a estação do metrô receba o nome "Saracura/Vai-Vai".

Segundo nota do Iphan, neste momento, a pesquisa arqueológica encontra-se em andamento. Há o monitoramento de vestígios ?como louças e vidros? que foram encontrados debaixo do solo.

Os moradores do Bexiga também têm se organizado para promover uma atuação jurídica sobre lançamentos imobiliários e obras que possam considerar irregulares. A advogada Raphaela Galletti faz parte do núcleo capitaneado pela Associação União de Moradores do Bairro da Bela Vista e Bixiga.

"A gente tem um bairro muito antigo, onde a captação da rede de esgoto e até a distribuição de água tinha um planejamento. Quando você adensa aquela região da cidade com projetos enormes, você está saturando inclusive a rede elétrica, que há muito tempo não é modernizada", diz. "Isso tem que vir junto, não basta um adensamento com prédios moderníssimos."

Segundo Galletti, os moradores também se preocupam com a construção de garagens e andares em níveis subterrâneos, com risco de interferir-se nas faixas de solo onde passa o rio Saracura.

"Todo mundo quer uma cidade moderna, que alcance os níveis de modernização almejados pela sociedade, mas sem que se destrua a sua história, a sua parte ecológica", diz a advogada. Ela cita projetos que possam suprimir vegetação e novamente encobrir o sistema hídrico das grotas remanescentes.

Ao analisar a Área de Intervenção Urbana lançada pela Prefeitura de São Paulo, a urbanista Lucila Lacreta, do movimento Defenda São Paulo, critica a falta de detalhamento para os bairros no perímetro de 2.089 hectares do plano.

Segundo a prefeitura, há expectativa de que o potencial construtivo adicional de 3,6 milhões de metros quadrados tenha como destino provável as áreas com maior disponibilidade de terrenos transformáveis dos distritos de Santa Cecília, Brás, Pari, Belém, Barra Funda e Bom Retiro compreendidas no AIU do Setor Central. "A gente não sabe para onde eles [a futura metragem construída] vão", diz a pesquisadora.

A prefeitura deveria, ainda segundo a urbanista, fazer um censo de cortiços, instrumento que estimularia o direito da população pobre sobre aquele espaço. "Não sabemos quantos cortiços existem ali e qual a população que deve ser atendida por projetos sociais", explica.

O QUE DIZ A PREFEITURA

A Prefeitura de São Paulo diz, em nota, que as premissas previstas na lei que instituiu a Área de Intervenção Urbana (AIU) do Setor Central consideram "a preservação do patrimônio histórico e trazem incentivos para a população mais vulnerável".

Diz que "a lei prevê ao menos 40% dos recursos arrecadados com outorga onerosa [pagamento para se construir acima do básico permitido] para que sejam destinados à construção de moradias populares, para famílias com renda de até dois salários mínimos".

Também que "outros 20% [dos recursos] serão destinados para melhorias na rede de equipamentos públicos, e 5% para preservação do patrimônio histórico, ambiental e cultural".

Ainda segundo a nota, o principal instrumento previsto na legislação para a preservação do patrimônio histórico na região central é a chamada Transferência do Direito de Construir.

"Com esse instrumento, o proprietário de um imóvel tombado recebe uma declaração de potencial construtivo adicional, expressa em metros quadrados e proporcional à área do lote objeto de tombamento, que pode ser utilizada em outro imóvel ou vendida para outro empreendedor."

Ainda assim, o Ministério Público de São Paulo abriu inquérito para apurar possíveis irregularidades na composição dos chamados PIUs, os Projetos de Intervenção Urbana, muitas vezes combinados ao código das Áreas de Intervenção Urbana (AIUs).

Uma das questões mais relevantes levantadas pela Promotoria é que está em andamento a revisão do Plano Diretor Estratégico da cidade, ao qual os PIUs e as AIUs são subordinados.

O Ministério Público questiona se não seria necessário esperar a definição dos novos rumos do Plano Diretor. Nota da prefeitura respondeu que "a Procuradoria-Geral do Município se manifestará em juízo e está inteiramente à disposição para esclarecimentos no âmbito jurídico".


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