SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Os sistemas de controles de armas no Brasil são pouco eficientes, afirmam a advogada Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, e a cientista política Ilona Szabó, presidente do Instituto Igarapé.
Trata-se de duas das principais organizações da sociedade civil do país a atuar no campo da segurança pública e do controle da violência armada no Brasil.
Especialistas em segurança, ambas apontam para a precariedade do controle brasileiro de armas e para o desmonte do Estatuto do Desarmamento, aprovado em 2003 após discussão com parlamentares e representantes da sociedade.
A legislação tem dispositivos que nunca foram implementados, como a integração dos dois sistemas de registro de armas vigentes no Brasil, um sob a responsabilidade do Exército, outro administrado pela Polícia Federal.
Essas fragilidades ficaram ainda mais maiores e mais evidentes, argumentam elas, após a série de ações do presidente Jair Bolsonaro (PL) que ampliou o acesso a armas por civis.
A produção de dados e as análises da dupla e dos institutos que elas lideram já foram alvo de ataques nas redes por parte de grupos defensores das armas, e também de uma ação na Justiça.
Em 2019, após onda de ataques nas redes sociais e de pressão do próprio presidente, o então ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro revogou a nomeação de Ilona como membro suplente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Os desdobramentos do caso a levaram para um autoexílio.
Em 2021, o grupo armamentista Pró-Armas, o maior do Brasil, entrou com uma ação por danos morais contra o Sou da Paz, o Igarapé e a TV Globo na Justiça do Mato Grosso do Sul. A entidade questiona dados apresentados em reportagem intitulada "Número de armas registradas por civis aumentou 330% nos últimos seis meses", que usa informações dos dois institutos.
Leia trechos da entrevista.
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Pergunta: O CEO da Taurus [principal produtora de armas do país] declarou que o sistema de controle de armas do Brasil é dos melhores do mundo. Quão eficiente ele é?
Ilona Szabó: O Brasil aprovou uma legislação de controle de armas em 2003, o Estatuto do Desarmamento. Se ela tivesse sido implementada, traria condições para um controle responsável de armas no país. Só que grande parte dos dispositivos dessa legislação não foi implementada e ainda tem sido desmantelada desde sua aprovação, num processo que se acelerou a partir de 2019.
Até o Exército, que é o principal órgão responsável pela fiscalização das armas e munições no país, declarou recentemente que os dados dos seus sistemas de controle são falhos e que ele é incapaz de fornecer informações precisas sobre as armas registradas no país.
Em 2020, o Exército vistoriou apenas 2,3% do total de arsenais privados no país, que incluem CACs [sigla para caçadores, atiradores e colecionadores], lojas e entidades de tiro. Membros de facções criminosas conseguem se registrar como CACs e têm a compra de fuzis e munições autorizada pelo governo. Além disso, dados obtidos pela Agência Pública mostram que os CACs registram, em média, a perda de três armas por dia. Um país em que armas e munições legais caem rotineiramente nas mãos da criminalidade está longe de ser um país com um controle eficiente.
P.: Quais são as vantagens e fragilidades do modelo atual?
Carolina Ricardo: O Estatuto do Desarmamento inaugurou algumas políticas e estabeleceu algumas práticas modernas, como a marcação de munições, que deve ser celebrada por ser promissora e não muito comum em outros países, mas que é muito limitada. Apenas os órgãos públicos têm essa exigência de marcar munições, o que representa cerca de 20% do mercado brasileiro dos últimos anos.
O fato de haver uma centralização do controle de armas na Polícia Federal, por meio do Sinarm (Sistema Nacional de Armas) é positivo. Não havia padrão nos estados. Mas o sistema tem muitos gargalos. Primeiro, ele passou por uma atualização em 2019, mas ainda não importou todo o passivo do sistema anterior. Há pouca integração efetiva com as polícias estaduais para que se faça o rastreamento das armas apreendidas.
Ao contrário do que prevê a legislação, o Sinarm não foi integrado ao Sigma (Sistema de Gerenciamento Militar de Armas), o banco de dados do Exército, usado para fiscalizar os CACs e as armas dos militares.
P.: E qual é a situação do sistema gerenciado pelo Exército?
CA: E o Sigma é cheio de problemas. Não consegue fazer relatórios que permitam análises por município. Não padroniza a forma de registro das armas, o que inviabiliza buscas por categoria, por tipo de arma etc. De nada adianta ter um sistema que não permite gerar relatórios ou fazer buscas. Não há uso ou inteligência. Trata-se de algo precário.
Até o Tribunal de Contas da União (TCU) aponta desde 2016, explicitamente, que se trata de um sistema inseguro, precário e insuficiente, e determinou que o Sigma seja substituído. Quando o Exército foi dar início à modernização do Sigma, em 2020, o atual presidente mandou revogar, sem qualquer justificativa técnica, as portarias que fariam as mudanças.
Outro gargalo importante é que o Exército não fornece acesso para as polícias estaduais ao Sigma. Portanto, quando essas polícias querem rastrear as armas ilegais apreendidas, ficam no escuro.
E isso é muito grave porque muitas armas são furtadas e desviadas dos CACs e as polícias não têm como acessar a informação sobre a origem dessa arma porque seu registro está no Sigma.
P.: Há problemas com o controle de munições?
CA: Sim. Ainda que a marcação das munições por lotes seja uma prática positiva, ela está restrita ao universo das munições para órgãos públicos. Além disso, depois do caso Marielle [Franco, vereadora carioca morta em 2018], ficou provado que a indústria brasileira, a CBC (Companhia Brasileira de Cartuchos), desrespeitou a regra do limite máximo de munições por lote.
A regra determina que os lotes precisam ser marcados em, no máximo, 10 mil unidades, no limite do rastreamento possível, mas isso nunca foi fiscalizado, e a CBC comercializou lotes com milhões de unidades. As balas colhidas na cena do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes pertenciam a um lote da polícia federal com 1,8 milhão de unidades. Munições desse mesmo lote surgiram também nas cenas das chacinas de Osasco e Barueri, na Grande São Paulo, quando 17 pessoas foram assassinadas em 2015.
Com lotes muito grandes, na prática, você não consegue rastrear nada. E o Exército não fiscaliza. Além disso, a multa para a indústria por desrespeito a essa regra é irrisória, o que inviabiliza qualquer efeito dissuasório. Há casos de multas de R$ 1.500.
Para completar, o banco de dados usado para fiscalizar o mercado de munições, chamado Sicovem [Sistema de Controle de Venda e Estoque de Munições], foi desenvolvido pela própria indústria fiscalizada, a CBC. Isso seria inaceitável em países que realizam um controle sério de munições.
O Sicovem deveria começar a ser substituído em março de 2022, mas não temos informação sobre qual é o estágio dessa implementação. São sistemas antigos, parciais e muito frágeis.
P.: Como funciona esse tipo de controle em outros países do mundo?
IS: Quase todo país do mundo têm um sistema de controle de armas porque entendem que o Estado detém o monopólio responsável do uso legítimo da força. A exceção são os EUA, o país desenvolvido com os maiores índices de compra de armas por civis e, consequentemente, com os maiores índices de violência armada do mundo.
Não há qualquer outro país no mundo onde a propriedade de armas seja interpretada como um direito, como é nos EUA. Existem evidências empíricas consideráveis de que o afrouxamento das leis e dos controles sobre armas contribuem para níveis mais altos de violência armada ?o que explica por que os EUA são um ponto fora da curva em relação a mortes por armas de fogo dentre os países desenvolvidos, com uma taxa de mortes violentas por armas quase cem vezes maior do que a do Reino Unido.
Não deveríamos seguir o modelo mal-sucedido dos EUA, mas buscar os muitos exemplos de regulações que previnem a violência armada e apoiam o enfrentamento à criminalidade, como na Nova Zelândia e no Canadá, que anunciaram medidas para restringir o acesso a armas semiautomáticas e a calibres usados por militares, envolvidos em massacres recentes ocorridos nesses países. O Brasil está indo na contramão: armas que antes eram restritas às forças de segurança passaram a ser acessíveis ao cidadão comum.
P.: Representantes da indústria de armas argumentam que mais armas trazem mais segurança. O que a ciência diz a esse respeito?
IB: Não há nenhuma evidência científica que mostre que armar a população tornou um país mais seguro. Ao contrário, a combinação entre o aumento na circulação das armas e munições e o enfraquecimento dos mecanismos estatais de controle é um retrocesso para a segurança da população brasileira. Somos um país em que cerca de 70% dos homicídios são cometidos por armas de fogo, e onde o poderio bélico de organizações criminosas enfraquece o Estado.
O descontrole armado está longe de ser uma estratégia vencedora para o país. A quem interessa esta estratégia? Decretos presidenciais ampliaram o acesso a armas e munições ao mesmo tempo em que enfraqueceram as capacidades de fiscalização das instituições responsáveis pelo controle de armamentos e munições.
P.: De que maneira o sistema brasileiro foi impactado pelos decretos editados pelo atual presidente sobre posse e porte de armas?
CA: Mais de 40 atos do Poder Executivo fragilizaram esses controles. Alguns exemplos são o fato de hoje existir categoria de civil com acesso a quantidades altíssimas de armas. Há permissão para CACs comprarem até 60 armas, sendo 30 fuzis. Houve decisão do STF [Supremo Tribunal Federal] contra, sob o argumento de que 60 armas é algo desproporcional, mas, como o tribunal não estabeleceu novo número, há insegurança jurídica, que vai se consolidando. Houve liminar do STF sobre o acesso a fuzis, mas até ela surgir a norma vigorou por 3 anos e muito fuzil foi vendido. E, além das questões normativas, há um estímulo cotidiano por parte da Presidência para que a população civil se arme.
P.: A indústria de armas pretende se encaixar nos padrões ESG, sigla dos pilares eleitos pelo mercado financeiro: meio ambiente, social e governança. Esse é um encaixe possível?
CA: Esse encaixe é bastante controverso. Em geral entende-se ESG como redução de danos nas operações das empresas para além da obrigação geral de cumprir a lei. Quando se pensa em indústria armamentista ligada a práticas ESG, pensa-se, por exemplo, na restrição a venda de armas para locais em conflito ou com altos índices de violações de direitos humanos. A HK [alemã Heckler & Koch, responsável pela produção de fuzis e submetralhadoras, como a MP5, usada no assassinato de Marielle Franco] citou a agitação política e a violência policial no Brasil como motivos para suspender suas vendas para o país.
Quando olhamos para a indústria brasileira, estamos longe de ver algo assim. Pelo contrário, aqui há práticas que sequer respeitam a legislação, como na questão de lotes de munições que descumprem a regra das 10 mil, o que dificulta a identificação de pontos de desvio de munições para a criminalidade armada.
RAIO-X
Carolina Ricardo é advogada e socióloga. Mestre em filosofia do direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), é diretora-executiva do Instituto Sou da Paz.
Ilona Szabó é cientista política, cofundadora e presidente do Instituto Igarapé. Autora do livro "Segurança Pública: para virar o jogo" (editora Zahar) e membro do Conselho de Alto Nível sobre Multilateralismo Eficaz do Secretário-Geral das Nações Unidas (ONU).
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