SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O sucesso das ações afirmativas em universidades públicas brasileiras parece inquestionável aos olhos de quem estuda o tema, e não faltam dados para sustentar essa percepção. Mas o êxito geral da política esconde disparidades regionais e desafios a serem enfrentados.
A discussão é importante porque se completam dez anos da implantação da Lei de Cotas no Brasil e, por força da própria legislação, o país deve promover a revisão do programa que reserva vagas nas instituições de ensino superior.
Para ajudar nesse debate, dois grupos de pesquisadores analisaram o impacto que as cotas tiveram não só para os estudantes mas também para as próprias universidades.
Descobriram, por exemplo, que a proporção de pretos, pardos e indígenas entre os jovens matriculados em instituições públicas de ensino superior cresceu, ao longo do século 21, de 31% para 52%.
Quando se consideram os estudantes mais pobres, pertencentes às classes C, D e E, independentemente da classificação racial, o avanço foi ainda maior no mesmo período: de 19% para 52%.
Num recorte mais amplo, tomando o ensino superior público e privado brasileiro, o percentual de brancos e amarelos caiu de perto de 90% no começo dos anos 1990 para 58% em 2019, com pretos, pardos e indígenas saindo de pouco mais de 10% para 42%.
Outro balanço mostra que, de 2010 a 2019, os alunos matriculados em universidades federais por meio da reserva de vagas saltaram de 6% para 35%.
Trata-se de proporção ainda aquém daquela prevista na Lei de Cotas -que fala em 50% das vagas destinadas a alunos egressos de escolas públicas--, mas, para o sociólogo Luiz Augusto Campos, a evolução é inegável.
"A gente viveu algumas décadas de diversificação intensa e, pode-se dizer, rápida no ensino superior brasileiro", afirmou durante o 46º encontro da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais), que organizou um fórum de três dias para discutir as cotas.
Professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e coordenador do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemaa), Campos menciona "algumas décadas" por olhar para um horizonte um pouco mais longo do que o estabelecido em lei.
Campos divide a difusão das ações afirmativas no Brasil em três fases. A primeira começou em 2003, com a iniciativa pioneira da Uerj -um período experimental, em que instituições adotaram políticas por conta própria e testaram vários modelos.
Depois houve uma expansão, com os estímulos oferecidos a partir de 2008 pelo Reuni (Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais).
A terceira fase corresponde aos dez anos da Lei de Cotas, a partir de 2012, com a uniformização da política nas universidades federais e o consequente uso desse formato como parâmetro para as demais instituições.
De acordo com Campos, o receio de que os cotistas tivessem desempenho acadêmico inferior ao dos não cotistas não se comprovou na prática, muito embora eles cheguem com notas menores no Enem, por exemplo.
"As desigualdades presentes no Enem são quase anuladas dentro da universidade. Ou seja, as desigualdades entre alunos cotistas e não cotistas não se refletem em desigualdade de desempenho dentro da universidade", disse no evento.
Mas nem por isso a política deve prosseguir exatamente como está hoje, como mostrou a socióloga Paula Barreto, professora da UFBA (Universidade Federal da Bahia), durante um dos fóruns da Anpocs.
"A Lei de Cotas impôs uma uniformização em termos nacionais considerando o formato dos programas de ação afirmativa que as universidades e institutos federais adotaram. No entanto, a composição da população varia muito no país de acordo com estados e regiões", disse.
É que, pela lei, a reserva de vagas para pretos, pardos e indígenas é uma subcota dentro da cota de 50% para egressos das escolas públicas. Ou seja, a reserva de vagas para negros é inferior a 50%.
"No caso da Bahia, essa proporção já é muito abaixo da população negra residente no estado da Bahia, que chega a 82,1%, somando pretos, 23,1%, e pardos, 59%", argumento Barreto.
Ela compara o caso da UFBA com o da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), onde as pessoas autodeclaradas pretas e pardas fica abaixo de 20% da população.
"Nós não alcançamos a paridade que, por exemplo, a UFSC alcançou. Nós estamos muito longe disso, e talvez seja até difícil esperar que, com uma composição demográfica dessa [da Bahia], se possa ter algum tipo de cota que realmente promova essa paridade."
Esse não é o único ponto a melhorar. Segundo a sociólogo Rosana Heringer, professora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e coordenadora de uma das avaliações sobre as ações afirmativas, existem alguns desafios para o futuro, a começar pelas bases de dados.
"De forma geral, existe pouca informação sistematizada e disponível sobre o perfil dos cotistas nas universidades pesquisadas, sua trajetória acadêmica, seu desempenho, suas dificuldades e desafios", afirmou no encontro da Anpocs.
O ponto é relevante não só para aperfeiçoar a análise da política como também para ajudar a implementar programas de assistência estudantil e políticas de permanência, uma demanda forte dos alunos de baixa renda.
Heringer sugere, inclusive, que sejam feitos estudos sobre o recorte por renda previsto na Lei de Cotas, que fixa o patamar de 1,5 salário mínimo -que até acaba sendo alto na média de renda da população brasileira.
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