OXFORD, REINO UNIDO (FOLHAPRESS) - Foi em 2017, durante a preparação para a peça "Myth", uma parábola climática da Royal Shakespeare Company, que o artista Fehinti Balogun acabou se dando conta da gravidade da crise do clima.

"Após ter feito muitas coisas, consegui meu primeiro papel principal numa peça no West End em Londres. Era o ano mais quente da história", lembra o ator e dramaturgo britânico. "E, pela primeira vez, percebi que as plantações estavam morrendo, os campos estavam secos. Comecei a desenvolver uma espécie de ansiedade que nunca tive antes", completa.

Com isso, veio o choque: "Eu tinha o trabalho que eu sempre sonhei, algo que eu tinha estudado para fazer, e, de repente, isso não significava nada".

Balogun se juntou ao grupo ativista Extinction Rebellion, participou de diversos protestos e organizou uma palestra sobre o tema. Essa jornada o levou à produção de uma peça teatral que, durante a pandemia, foi transformada em um filme.

Intitulada "Can I Live?" (posso viver?), a produção explica as mudanças climáticas a partir da perspectiva de uma pessoa negra, usando diversas performances musicais.

A mãe de Balogun, imigrante nigeriana, é quem guia a história. Fora da tela, também foi ela quem inspirou a criação do texto, a partir de questionamentos ao filho --que ele gravou secretamente para escutar de novo e pensar a respeito.

"Por que você está sacrificando sua carreira para fazer parte desses grupos?", ela perguntava.

Mesmo discordando, o filho reconheceu na indignação da mãe um ponto muito importante: a discussão climática ficou elitizada e branca e ainda não foi capaz de incluir os segmentos mais pobres da população.

"Can I Live?", pelo contrário, se propõe a não só trazer os dilemas pessoais do autor, que se misturam aos problemas mundiais e aos dados científicos, como é didática e criativa ao explicar, por exemplo, o efeito estufa em forma de rap. Criado com a companhia de teatro britânica Complicité, o filme mescla linguagens como animação, poesia e música.

"O objetivo é criticar descaradamente o sistema, sem culpar uma pessoa específica. Não se trata de envergonhar as pessoas, mas, sim, de educá-las e conectar-se com elas", define Balogun.

Depois de uma turnê online, o filme foi exibido em eventos como a COP26 (conferência da ONU sobre mudanças climáticas realizada em 2021 na Escócia) e a London Climate Action Week.

A ideia, diz Balogun, é fazer "Can I Live?", que ainda não foi lançado no Brasil, chegar a movimentos de base, para estimular conversas sobre a crise climática entre aqueles que não costumam se conectar com o assunto.

Quando perguntado sobre a agenda climática no Reino Unido, o autor é categórico: "Temos um governo que não está levando isso tão a sério quanto deveria e que nunca levou o racismo tão a sério quanto deveria. Temos toda uma economia baseada num histórico de escravidão que não é debatida. Então, dentro das escolas, apagamos essa história. O que aprendemos neste país não está nem perto do que deveria ser".

 Quando e por que você se envolveu com a agenda da crise climática? Após ter feito muitas coisas, consegui meu primeiro papel principal numa peça no West End em Londres. Era o ano mais quente da história, depois de outro ano ter sido o ano mais quente da história, depois de o último ter disso ser o mais quente... E, pela primeira vez, eu percebi que as plantações estavam morrendo, os campos estavam secos. Comecei a desenvolver uma espécie de ansiedade que nunca tive antes. Eu tinha o trabalho que eu sempre sonhei, algo que eu tinha estudado para fazer, e, de repente, isso não significava nada.

Então comecei a tentar me envolver em diferentes projetos e me juntei ao [grupo ativista] Extinction Rebellion. E comecei a discutir tudo com minha mãe, que perguntava: "Por que você está sacrificando sua carreira para fazer parte desses grupos?". E eu pensava: "Não, essa é a única coisa importante que estou fazendo". E nós continuamos discutindo muito isso tudo.

Eu gravei secretamente tudo o que ela me disse, peguei os pontos importantes dela e transformei numa apresentação sobre o clima, porque percebi que meu papel era poder usar meu privilégio de ser um ator e ter essa formação.

Eu não sou de uma família particularmente rica. Cresci sem muito dinheiro, morando em habitação social, e o que eu tenho agora é devido ao meu trabalho como ator, aos meus contatos e a todas essas perspectivas diferentes. Então eu montei essa palestra, que é como um TED Talk, usando as mensagens de voz da minha mãe.

Esse trabalho decolou, uma coisa levou à outra e começamos a trabalhar em uma peça, que depois virou um filme, "Can I Live?". Foi assim que essa jornada climática de repente tomou conta da minha vida.

Sua mãe é a verdadeira estrela do filme. Quais foram as coisas importantes que ela levantou sobre o assunto? Muitas. Uma delas é exatamente o que significa resistir quando você é uma minoria, e o que significa para a sua criação. Isso afeta não apenas o seu futuro, mas também a ideia que foi passada a pessoas como minha mãe, minhas tias, meus tios sobre o que é o "bom imigrante".

Não é algo que ela tenha me dito explicitamente, mas que eu intuí de tudo o que ela estava me dizendo. Você não é capaz de reagir porque tem sorte de ter o que tem, entende? Ela dizia: "Há pessoas que estão esperando para entrar no país. Há pessoas que estão esperando conseguir a cidadania. E você acha que eles vão criticar aquele país que diz que eles não deveriam estar lá?".

Para o público no Brasil que ainda não teve a chance de assistir ao filme, como você o descreveria? Basicamente, o filme é uma explicação das mudanças climáticas a partir da perspectiva de uma pessoa negra. O objetivo é criticar descaradamente o sistema, sem culpar uma pessoa específica. Não se trata de envergonhar as pessoas, mas, sim, de educá-las e conectar-se com elas.

Eu quero que as pessoas assistam e vejam a si mesmas no filme todo ou em algumas partes, ou que vejam sua mãe ou sua avó ou seus amigos nas conversas. O filme tinha como objetivo levar as pessoas por essa jornada histórica até onde estamos agora e descobrirem o que podem fazer.

Colocamos o filme para distribuição online durante a pandemia. As pessoas pagavam o que podiam. A ideia era tentar torná-lo o mais acessível possível. Não foi algo como: "Ei, nós fizemos uma obra de arte!", mas ela é exibida num teatro muito metido onde as pessoas se sentem desconfortáveis e têm dificuldades para acessar.

A ideia foi descentralizar esta obra e distribuí-la para o maior número de pessoas possível, e oferecê-la a movimentos de base, para que pudessem exibi-lo e conversar a partir disso e incluir nessas conversas pessoas que não costumavam se conectar.

A propósito, como envolver nas questões climáticas pessoas que estão lutando para sobreviver? Acho que a coisa mais importante que aprendi sobre me comunicar com as pessoas é que você precisa ir ao encontro delas. Você não pode chegar em alguém esperando que essa pessoa tenha o seu mesmo nível de entusiasmo ou raiva, ou desgosto, ou desdém, porque todo mundo tem algo acontecendo em suas vidas.

O que temos no sistema é que constantemente nos dizem que temos que consertar algo individualmente, e que é nossa culpa individual. O fato de você estar passando por tanta insegurança alimentar é porque você não trabalhou duro o suficiente, ou porque 20 anos atrás você não economizou isso, ou fez aquilo. E se você tivesse feito todas essas coisas, você estaria bem e a culpa é sua e blá, blá, blá.

Você tem de olhar para essa questão de um ponto de vista estrutural. Estrutural e espiritual. Eu posso despejar todas as minhas ideias sobre estrutura e coisas de ativismo em cima de você, mas, no final das contas, se seu prato está cheio, seu prato está cheio; você já chegou no seu limite. A questão é muito mais profunda, e é muito solitário e difícil saber que você tem muitos problemas que precisa consertar. No final, o que está mesmo no centro disso é ter uma comunidade.

E como você descreveria o debate sobre mudanças climáticas no Reino Unido no momento? Essa é uma pergunta difícil! Agora no Reino Unido temos um governo que não está levando isso tão a sério quanto deveria e que nunca levou o racismo tão a sério quanto deveria.

Temos toda uma economia baseada num histórico de escravidão que não é debatida. Então, dentro das escolas, apagamos essa história. O que aprendemos neste país não está nem perto do que deveria ser, na verdade. Mas, se estivermos falando de pensamentos e sentimentos em relação às mudanças climáticas, as pessoas sabem disso, embora não saibam o que fazer.

Na COP26, no ano passado, você participou de eventos com artistas e ativistas indígenas brasileiros. Como o discurso deles ecoou com você e no Reino Unido? A COP é um evento decepcionante, via de regra. Não me inspirou nem um pouco. O que foi inspirador foram todos os ativistas que estavam lá e pessoas diferentes de muitos países diferentes, fazendo coisas incríveis e falando sobre tantas coisas. É uma comunidade muito forte.

Mas é muito difícil no Reino Unido. O patriotismo está apenas conectado a um ponto de vista ideológico e imperialista do mundo, que diz: "Eu sou superior a você". Então por que aprender com aquele ativista brasileiro diferente? Já os indígenas eram o oposto disso. A mensagem deles era: "Estes somos nós! E vamos compartilhar isso com vocês! Vamos proteger isso para as gerações futuras!".

Na sua visão, como fortalecer o movimento global de justiça climática, considerando o atual contexto político? Parte do movimento dos direitos civis estava ligado à educação, à educação em massa e para certas comunidades. A ideia não é trabalhar com o medo, mas sim trabalhar através do medo para chegar a soluções.

Então, para fortalecer o movimento, [precisamos de] educação em massa, especificamente em certas zonas; e precisamos que diferentes movimentos de base se unam.

Em termos de mudança na narrativa, quais são as estratégias que você considera mais importantes? Precisamos mudar a narrativa sobre riqueza e propriedade. Nós realmente precisamos entender que a crise climática é uma crise de classes, e dentro dessa crise de classes, há uma interseccionalidade muito racista.

Simplesmente entender essas coisas eu acho que vai ajudar muito; e é muito difícil, porque dentro do ideal capitalista, [a economia] só funciona se você sentir falta de alguma coisa. Eles só podem vender maquiagem para você se você acreditar que precisa de maquiagem. Eu não estou dizendo que as pessoas não devem usar maquiagem, mas, sim, que você só vai comprar algo se achar que precisa daquilo.

São essas mudanças de narrativas sobre o que achamos que é necessário e o que é, na verdade, necessário.

E precisamos de bondade radical. Radical no sentido de que não somos uma cultura muito indulgente.

O debate político anda muito polarizado, inclusive no Brasil, como você deve saber. Você poderia descrever melhor a ideia de bondade radical? O que quero dizer com bondade radical não é apenas ser radicalmente gentil com a pessoa com opiniões opostas, mas também ser radicalmente gentil consigo mesmo.

Por que estou tentando fazer com que alguém que, fundamentalmente, me odeia goste de mim? Como isso me ajuda ou ajuda a outra pessoa? No final das contas, independentemente de eles terem dito que gostavam ou não de mim, eles vão embora e eu fico com esse sentimento. A única maneira de lidar com isso é ter uma comunidade atrás de você que esteja disposta a compartilhar isso com você.

Você sabe o que isso significa? Significa se afastar da postura individual de "eu vou consertar o mundo" para algo como "estas são as pessoas que eu preciso para poder fazer isso".

Eu sempre falo, você tem que fazer uma escolha quando você fala com alguém, especialmente com alguém com uma opinião oposta a você que não tem interesse direto no assunto, como por exemplo, racismo, sexismo, ou mesmo mudanças climáticas.

Quando a pessoa não é afetada emocional, física e praticamente pela coisa e argumenta contra você, você tem que se perguntar: "Eu tenho condições de me envolver nisso hoje? Até onde quero ir? Vou ter alguém cuidando de mim quando a conversa terminar?". Então a bondade radical não é apenas ter um espaço para a outra pessoa: é para você mesmo.

Raio-X Fehinti Balogun

Ator, dramaturgo, escritor e pintor britânico de origem nigeriana, nascido em Greenwich, em Londres. Além de "Can I Live?", participou de peças como "Myth" (mito), "The Importance of Being Earnest" (a importância de ser prudente) e "Whose Planet Are You On?" (você está no planeta de quem?). No cinema, fez trabalhos como "Juliet, Nua e Crua", "Duna" e "Walden". Na TV, participou das séries "I May Destroy You" (posso te destruir), "Informer" (informante) e "O Filho Bastardo do Diabo", cuja primeira temporada estreia no fim de outubro na Netflix no Brasil.

Entenda a série Planeta em Transe é uma série de reportagens e entrevistas com novos atores e especialistas sobre mudanças climáticas no Brasil e no mundo.


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