SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Um canabinoide desenvolvido em laboratórios clandestinos está sendo vendido como se fosse maconha na capital paulista. Apesar de ser chamada pelo nome da erva, a substância sintética, líquida, não se assemelha em nada com a planta e ainda é uma incógnita para profissionais das áreas da saúde e da segurança pública.
"Essa droga não tem nada de maconha, mas por agir no mesmo receptor é chamada de canabinoide", afirma o perito criminal Alexandre Lehart, do Núcleo de Análise Instrumental da Polícia Técnico-Científica de São Paulo.
A droga de laboratório, acrescentou, atua no mesmo receptor que o THC (tetrahidrocanabinol) --responsável pelo efeito da erva-- e proporciona um efeito mais intenso e imprevisível.
Lehart diz que os usuários da droga são "grandes cobaias" dos traficantes. Já foram encontradas em amostras do canabinoide, avaliadas pelo IC (Instituto de Criminalística), moléculas de opioides e de cocaína, frisou.
Até o momento, o instituto identificou ao menos quatro moléculas, desenvolvidas em laboratório, vendidas por criminosos como se fossem maconha sintética em São Paulo. Os resultados das análises foram encaminhados à Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), que os incluiu em sua lista de substâncias banidas do país.
Ocupando uma barraca de camping, no vão livre do Masp, na região central, um adolescente de 14 anos relatou à Folha, no último dia 5, já ter fumado a droga, chamada por ele de "spice".
Apesar de estar ao lado da avenida Paulista, o jovem afirmou comprar o canabinoide em Itaquera, a partir de R$ 5. Segundo ele, a substância oferecida na zona leste, acondicionada em pinos semelhantes aos usados com cocaína, seria mais forte do que a vendida no centro.
O adolescente afirmou ter experimentado a droga há cerca de quatro anos. Porém, após reiterados casos vômito e perda dos sentidos, desmaiando depois de fumá-la, ele disse ter decidido no final de 2021 parar de usá-la.
Os efeitos imprevisíveis da droga fizeram com que traficantes proibissem usuários de consumi-la nos pontos onde ela é vendida, de acordo com o delegado Carlos César Castiglioni, do Denarc (Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico).
"Os traficantes vendem, mas não deixam os caras consumirem ali, porque vira e mexe [o usuário] dá um ou dois tragos e cai. A última coisa que eles [traficantes] querem é gente ligando para o Samu [Serviço de Atendimento Móvel de Urgência]", afirma o policial.
Castiglioni diz que soube dessa recomendação do crime organizado após apreender 5,4 quilos da droga em uma casa em Cidade Ademar, zona sul paulistana, no último dia 6. Um homem foi preso no local.
Considerando esse caso, o Denarc apreendeu neste ano cerca de 12 quilos da droga na cidade. Em todo o ano passado, foram seis quilos. Em 2020, não houve registros e, em 2019, foram apreendidos somente 22 gramas.
O delegado do Denarc diz que criminosos trituram folhas, flores e até temperos, como orégano, borrifando-os posteriormente com a substância sintética. Neste caso, a droga é chamada de k2. O líquido, acrescentou, também é borrifado em papéis cartonados, sendo conhecido nestes casos como k4-- a forma com a qual a substância entra no sistema carcerário.
Por causa disso, a SAP (Secretaria da Administração Penitenciária) proíbe desde o início deste ano a entrada de papel sulfite nas unidades prisionais paulistas, além de restringir o número de fotos e outros impressos enviados por correspondência.
Dados da pasta indicam aumento de 1.863% nas apreensões de k4, comparando os 72 casos de 2018 com os 1.414 do ano passado.
O crescimento ocorreu sobretudo em 2020, após o início a pandemia da Covid-19. Naquele ano, houve 1.256 ocorrências. A SAP atribui isso à proibição de visitas, o que impulsionou o envio de correspondências aos detentos.
Ao identificar a estratégia para a entrada da droga no sistema, a pasta passou a combatê-la. Com isso, afirma, as apreensões caíram neste ano para 373.
A primeira apreensão da droga nas cadeias paulistas ocorreu na véspera do Natal de 2017, na Penitenciária de Presidente Bernardes (a 580 km da cidade de São Paulo).
Por se tratar de uma substância recente e ilegal, o médico especialista em álcool e drogas Thiago Fidalgo diz que ainda se desconhecem eventuais sequelas e riscos à saúde, física e mental, decorrentes do uso de canabinoides sintéticos.
Também professor do Departamento de Psiquiatria da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), ele afirma que não se sabe como moléculas descartadas por laboratórios farmacêuticos durante pesquisas para desenvolver canabinoides sintéticos chegam às mãos de criminosos.
Segundo o psiquiatra, não é possível dizer se há risco de morte diretamente relacionada ao uso da droga. Porém, acrescentou existir o risco indireto de que isso ocorra, como em eventuais casos de sufocamento, com o próprio vômito, "como ocorre em alguns casos com pessoas alcoolizadas".
A família do estudante Patrick William Alves de Lima, 18, aguarda exames periciais que indiquem a causa de sua morte, ocorrida no último dia 23, após ele supostamente fumar o canabinoide. O caso, registrado como morte suspeita, é investigado pela Polícia Civil.
Sua irmã, a estudante de enfermagem Thayna Alves Batista, 27, afirmou que na Vila Jacuí, zona leste de São Paulo, há o relato de jovens vomitando e com o chamado "efeito zumbi", decorrentes do provável uso da droga. "Como o Patrick começou a aparecer assim na casa de minha mãe, começamos a desconfiar [de que ele estivesse usando a droga]", explicou.
Na noite do último dia 22, uma quinta-feira, o jovem teria fumado a substância em uma praça da região e ido para casa, segundo Thayna.
A mãe deles retornou do trabalho, no início da madrugada do dia 23, deparando-se com o filho vomitando. Como já havia testemunhado a cena em outras ocasiões, imaginou que, pela manhã, o jovem estaria reestabelecido. Porém, quando foi chamar o filho para o café da manhã, constatou que ele estava morto, deitado na cama.
"Na mesma semana que ele faleceu, minha mãe estava pesquisando algumas clínicas para interná-lo, para ver se a gente conseguia tirar ele disso, mas não deu tempo", lamentou a estudante.
A SSP (Secretaria Estadual da Segurança Pública) afirmou que um inquérito policial foi instaurado pelo 63º DP, para investigar as circunstâncias da morte do jovem. Um exame pericial, ainda em elaboração, também foi solicitado ao IML (Instituto Médico-Legal).
A Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo e a de Estado da Saúde afirmaram não ter, até o momento, registros de atendimentos ambulatoriais de usuários de canabinoides sintéticos em São Paulo.
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