SHARM EL-SHEIKH, EGITO (FOLHAPRESS) - Cada vez mais endividados, países em desenvolvimento acumulam também desafios para lidar com a crise do clima. Na COP27, conferência do clima da ONU que vai até o dia 18, no Egito, eles propõem a reestruturação das suas dívidas externas como saída para viabilizar o financiamento climático --principal obstáculo das negociações climáticas da ONU.
A proposta é defendida por países como a Argentina e também pelo V20, o grupo de países mais vulneráveis ao clima, que hoje reúne 58 economias --27 delas se concentram no continente africano, enquanto onze são da América Latina.
A presidência egípcia da COP27 lançou um chamado para uma coalizão de dívida sustentável, convidando países devedores e credores a se tornarem membros.
Anunciada na quinta-feira (10) no pavilhão africano da conferência, a coalizão pretende aprofundar a a proposta nas negociações de implementação do Acordo de Paris. A ideia é que ela seja guiada por uma declaração que vem sendo construída ao longo da conferência da ONU.
"Sem um maior espaço fiscal e um fórum internacional para lidar com questões de dívida pendentes, muitas nações não conseguirão cumprir suas prioridades de desenvolvimento e não conseguirão fazer progressos vitais em relação a seus objetivos climáticos, levando a um fracasso global nas mudanças climáticas", afirma a iniciativa.
A proposta não é um item da agenda de negociações diplomáticas da COP27. Na visão de observadores das negociações ouvidos pela reportagem, a conferência do clima não seria um fórum adequado para o instrumento, que depende de acordos bilaterais.
No entanto, o bloco do V20 e organizações da sociedade civil como a Avaaz defendem que o instrumento de troca da dívida por ações de clima e natureza seja contemplado nos textos que negociam a implementação do artigo 6.8 do Acordo de Paris, que prevê abordagens não mercadológicas de cooperação.
Outro espaço possível seria o capítulo de medidas financeiras a serem adotadas pelo grupo de trabalho do órgão subsidiário de conselho científico e técnico das negociações do clima da ONU.
Um relatório lançado pelo V20 no último junho afirma que os danos com eventos climáticos extremos (como chuvas intensas, inundações, secas estendidas e furacões) já custaram 20% das economias dos países do bloco, somando US$ 525 bilhões (R$ 2,8 trilhões) ao longo das últimas duas décadas.
Eles não pedem perdão. Para lidar com os custos dos danos de desastres climáticos e investir, preventivamente, em adaptação às mudanças climáticas, os países falam em troca da dívida por ação climática.
A solução responde a um argumento dos países ricos de que simplesmente não há dinheiro suficiente para financiar as respostas à crise climática.
Por serem os maiores responsáveis históricos pelo aquecimento global, tendo acumulado emissões de gases-estufa na atmosfera desde a Revolução Industrial, os países desenvolvidos são cobrados pelo financiamento das ações climáticas no restante do mundo, conforme a Convenção do Clima, assinada em 1992, no Rio de Janeiro.
John Kerry, enviado especial do clima dos Estados Unidos --maior emissor histórico e segundo maior emissor atual-- tem declarado publicamente que não há dinheiro para reparar perdas e danos climáticos, que podem ser avassaladores e de custos exorbitantes.
"[A troca da dívida por ação climática] é a possibilidade de uma outra negociação. Credores podem dizer: vou rever sua dívida para apoiá-lo na sua mitigação das mudanças climáticas e, inclusive, posso lhe dar descontos sobre isso, afinal você teve danos", afirma a consultora Ana Cristina Barros, ex-secretária de biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente.
Entre 2005 e 2010, ela mediou uma negociação entre o Brasil e os Estados Unidos que permitiu a troca de US$ 20 bilhões (R$ 106 bilhões) de dívidas antigas --anteriores aos anos 1960-- por investimentos em ações de conservação florestal nos biomas brasileiros, com exceção da Amazônia.
Embora seja alvo de grande preocupação internacional, a maior floresta tropical do mundo ficou de fora da reestruturação da dívida porque já contava com investimentos muito superiores vindos da Alemanha e da Noruega através do Fundo Amazônia.
A troca de dívidas antigas por investimentos ambientais é prevista pelos americanos desde 1998, quando o país colocou em vigor o Ato de Conservação das Florestas Tropicais.
Em 2018, as ilhas Seychelles conseguiram um acordo pioneiro ao trocar US$ 21,6 milhões (R$ 115,2 milhões) de dívida com bancos multilaterais por ações de proteção dos mares. A ONG The Nature Conservancy mediou o acordo, adquirindo ativos da dívida, apelidados de "ativos azuis".
Segundo dados citados no relatório do New Climate Institute, as trocas de "dívida por natureza" já cancelaram cerca de US$ 1 bilhão (R$ 5,3 bi) de dívida externa no mundo até 2020. Boa parte delas tinha os Estados Unidos como credor e, minoritariamente, os bancos multilaterais. Já as dívidas comerciais representam menos de 10% dos acordos.
A Argentina --que se tornou o maior devedor do FMI (Fundo Monetário Internacional) no mundo e acumula uma dívida levemente superior ao PIB-- tem defendido junto ao seu principal credor que o investimento em ações ambientais substitua parte da dívida externa. O FMI tem sinalizado positivamente sobre o instrumento.
O país é um dos mais vocais na articulação dessa agenda. Em 2007, o então presidente Néstor Kirchner já havia defendido em discurso na Assembleia-Geral da ONU que a solução para a dívida externa passasse pelo reconhecimento da contribuição dada com a manutenção de reservas de vegetação e florestas. O atual presidente argentino voltou a defender o mecanismo em 2021, quando discursou na cúpula do clima convocada por Joe Biden.
Para além da COP27, a proposta deve ser levada à COP15 da Biodiversidade, que acontece em dezembro no Canadá, onde a ONU espera fechar uma versão equivalente ao Acordo de Paris voltado a esse tema.
Ao se incluir a biodiversidade na conta, o cenário fica ainda mais complexo, e a vantagem pode mudar de lado. Um relatório da ONG Avaaz propõe que o mundo considere as dívidas ecológicas que os países ricos geram e, em contrapartida, os serviços ambientais promovidos pelos países com grandes reservas de biodiversidade --sendo boa parte dela concentrada nos países em desenvolvimento.
"Os ecossistemas brasileiros geram benefícios ambientais estimados em US$ 5 bilhões (R$ 26,6 bilhões), enquanto sua dívida alcançou US$ 1,3 bilhão no meio de 2022", compara o estudo. "Portanto, o país fornece uma contribuição ambiental para o mundo 3,6 vezes maior que sua dívida", conclui.
A diferença é ainda maior em grandes reservas florestais como a Indonésia --que deve US$ 8,7 bilhões, mas provê serviços ambientais 135 vezes superiores, segundo o estudo.
A comparação tem ainda endosso de um relatório do Fórum Econômico Mundial lançado em 2020. Ele estima que mais da metade do PIB mundial --US$ 44 trilhões (R$ 234 trilhões)-- é altamente dependente da biodiversidade e tende a arruinar com as perdas nos ecossistemas.
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