SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A falta de energia elétrica por cerca de 72 horas no início de dezembro não foi o único transtorno dos moradores da rua dos Gusmões, no centro de São Paulo, desde que dependentes químicos da cracolândia se fixaram no local.
Relatos de vizinhos do fluxo, como é conhecida a aglomeração de usuários de drogas, relatam dificuldade de acionar motoristas de carro por aplicativo, receber encomendas e pedir uma refeição. O comércio local também tem sido afetado, com empresários mudando de endereço.
A Folha de S.Paulo esteve na segunda-feira (12) por cerca de duas horas no bairro e notou grande aglomeração de usuários de drogas e moradores de rua, principalmente nas ruas do Triunfo, dos Gusmões e dos Protestantes.
No mesmo horário, equipes da Polícia Civil estiveram no local e dispersaram o grupo que estava numa esquina. No entanto, foi só os policiais irem embora que tudo voltou ao normal, com venda e uso de drogas ao ar livre.
Um comerciante que aceitou conversar com a reportagem disse estar prestes a deixar o endereço que ocupa há 11 anos, cansado dos prejuízos e da desordem que assombram o bairro.
Entre os moradores também há grande preocupação. A cabeleireira Regina Celia Ribeiro, 47, imaginou que tinha feito um grande negócio ao deixar o bairro do Capão Redondo, na zona sul, e migrar para Santa Ifigênia, no centro.
Mas, segundo ela, o que era alegria virou um pesadelo. "Ficamos presos numa situação. Abandonados. Nem os carros de aplicativos querem ir até lá."
"Outro dia fui com minha mãe levar alguns itens para casa e estava chovendo muito. Nós ficamos mais de meia hora chamando Uber e 99, e nada. Eles cancelavam. Eu tive que andar com minha mãe, uma senhora de 76 anos, por 20 minutos até o ponto de ônibus."
Esse não foi o único problema enfrentado pela cabeleireira. Segundo ela, diversos comerciantes estão se recusando a fazer entregas.
"Eu estava de mudança, mas parei porque não consegui mais. Como terminar de mobiliar se as lojas também não querem correr os riscos?", questionou.
Com a mudança atrasada, ela resolveu ficar na casa de uma das filhas, no Jardim Ângela, na zona sul.
A artesã Marilda Cristina Rodrigues, 55, diz que sua filha sentiu na pele os problemas de depender de um motorista de aplicativo na região.
No último dia 8, após deixar o trabalho, a jovem precisou esperar horas até conseguir que um motorista aceitasse a viagem para casa. Quando se aproximavam do destino, criminosos quebraram um dos vidros do automóvel na tentativa de levar o celular do motorista. Como ele reagiu, os bandidos deixaram o aparelho e fugiram.
Antes, Marilda relatou que um taxista interrompeu a viagem ao saber que o destino seria na rua dos Gusmões e a deixou duas quadras antes, dizendo que não cobraria a corrida.
"A dispersão transformou a nossa vida em um inferno", disse, em referência ao espalhamento de usuários após a megaoperação na praça Princesa Isabel em maio.
A artesã faz parte do grupo que impediu funcionários da concessionária Enel de deixar a região antes de reestabelecer a energia elétrica dos moradores, como mostrou a Folha. E conta ter dificuldade de pedir uma simples refeição. Ao questionar um entregador, ela ficou sabendo o motivo do problema. "Ele me disse: 'Prefiro perder R$ 10 da entrega do que perder minha moto, meu celular'."
Ex-subsíndica de um dos prédios residenciais na via, a aposentada Rose Correa, 63, diz que um carteiro lhe relatou ter sido assaltado na região recentemente. Os bandidos teriam aberto o carro em que ele estava e levado algumas mercadorias. Procurados, os Correios não se manifestaram.
Rose afirma que a situação no bairro está insustentável. "A gente não dorme, a gente cochila. Nós não temos uma noite de paz. Estamos psicologicamente abalados."
Até pedir uma pizza tem causado incômodo aos moradores. A relações-públicas Fernanda Martins, 29, contou ter deixado de comprar em pizzaria da região da Bela Vista, centro de São Paulo, após um motoboy admitir que estava com medo de ficar esperando. "Nisso, preferi não pedir mais lá."
Os comerciantes que ainda têm coragem de trabalhar na área veem os clientes sumirem. Um lojista de 36 anos, que prefere não ser identificado, afirma que só conseguiu trabalhar após ter contratado seguranças particulares.
Segundo seus cálculos, seu prejuízo está na casa de R$ 400 mil.
O homem disse que busca mudar de endereço, mas o preço do aluguel em outros bairros é um entrave. Entre aqueles que já deixaram o bairro estão duas agências bancárias. O Bradesco, que antes estava na avenida Duque de Caxias, e que ao fim do expediente servia para encontro de usuários de drogas, e o Santander da avenida Rio Branco.
A Folha conversou com outros comerciantes da Santa Ifigênia, mas ouviu que a região estava policiada e sem quaisquer tipos de problemas a serem reportados. A reportagem apurou que eles temem afugentar possíveis clientes.
Procurada, a Prefeitura de São Paulo declarou, por meio da Secretaria Municipal de Segurança Urbana, que a Guarda Civil Metropolitana realiza o patrulhamento comunitário e preventivo na região da Nova Luz, 24 horas por dia, por meio de rondas periódicas, com efetivo de 180 agentes.
Segundo a pasta, de janeiro deste ano até o momento, a GCM conduziu 402 pessoas às delegacias, das quais 236 ficaram detidas, e apreendeu aproximadamente 10 quilos de entorpecentes, entre cocaína, maconha e crack, e mais de R$ 50 mil em espécie.
A Polícia Civil encaminhou nota informado que, no dia 9, um homem e uma mulher foram presos por receptação de celulares, na rua dos Gusmões, e uma outra mulher foi detida por porte de droga.
A Secretaria da Segurança Pública do estado informou que o policiamento na região é realizado pela Polícia Militar e será reorientado com base nos índices criminais.
Em nota, o Bradesco disse que o encerramento da agência faz parte de um processo de otimização de sua rede física, impulsionado pelo crescimento da demanda pelo atendimento digital. Segundo a empresa, a agência em questão estava localizada próxima de outra.
Em comunicado, o Santander afirmou que os clientes da agência fechada serão atendidos em outro endereço, na avenida Duque de Caxias, 200, que teve sua estrutura reforçada para "garantir a qualidade dos serviços".
A reportagem procurou as principais empresas de transporte por aplicativo. Uber e inDrive não se pronunciaram. A 99 informou que a reposta viria pela Amobitec (Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia).
Em nota, a entidade declarou que motoristas de aplicativos têm autonomia para escolher suas corridas, o que é uma prerrogativa do modelo de negócio. "As associadas da Amobitec consideram a segurança de motoristas e usuários uma prioridade e possuem equipes especializadas para manter diálogo e colaborar com o Poder Público no trabalho das autoridades em relação à segurança pública."
Questionado sobre possíveis restrições no bairro, o iFood respondeu: "Por ser uma questão de segurança pública, recomendo que veja os dados com as autoridades policiais".
Entre na comunidade de notícias clicando aqui no Portal Acessa.com e saiba de tudo que acontece na Cidade, Região, Brasil e Mundo!