RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - A função do Carnaval é desbanalizar a alegria. É o que defende o músico Leandro Donner, vocalista e um dos 12 fundadores do Bloco do Sargento Pimenta, que, após três anos, volta à folia nesta segunda (20) para traduzir um sentimento, na sua visão, nada fácil de ser alcançado.

Misturando Beatles com Brasil, o grupo acompanha as transformações da festa desde 2011, depois de surgir numa conversa embriagada entre amigos que saíam de um cortejo de rock'n roll em Botafogo, na zona sul do Rio de Janeiro.

Escolheram uma ruazinha do bairro com nome de capitão só para casar com sargento e, no primeiro ano, travaram a cidade. De lá para cá, se mudaram para o Aterro do Flamengo, trocaram o trio por um palco fixo e passaram a contar com públicos maiores do que os da própria banda britânica em sua época.

Agora esperam que Eduardo Paes (PSD) cumpra a carta de compromisso que levaram à prefeitura dois anos atrás, e que o Carnaval pós-pandemia seja o melhor da história. Em clima de retomada, "Get Back", música-tema da apresentação, virá em versão arrasta-pé, tocada por cem músicos e, pela primeira vez, coral.

Ao lado do palco ainda em construção, na última quarta (15), Donner falou sobre a história, a função e o espírito deste Carnaval: "Nos nutrimos da pandemia e das narrativas totalitárias para gritarmos que queremos estar na rua".

PERGUNTA - Vai ser o primeiro Carnaval "normal" em três anos. Como analisa o clima das ruas?

LEANDRO DONNER - Está todo mundo com um brilho nos olhos especial. Finalmente vamos ter esse gostinho sem o fantasma da pandemia, com essa sensação de "Get Back", que é o nosso tema. É um carrossel de emoções: expectativa, otimismo, redenção, mas também receio. De voltar ao palco, de tocar junto com uma bateria de quase cem alunos novamente. É como se fosse tudo novo outra vez. Não é como se a gente tivesse uma linha contínua de 2020 pra cá. A gente viveu muita coisa, muita distância, muito online, então vem tudo junto e misturado.

Também vai ser o primeiro Carnaval sem os gritos de "fora, Bolsonaro" entre uma marchinha e outra. Como a política deve se refletir na festa?

L. D. - Certamente isso contribui para o nosso otimismo. Estamos num clima em que a cultura é valorizada e que nós, como músicos, sentimos também nesse aspecto um renascimento, um respeito maior pelo trabalho que fazemos nas ruas, que não estávamos sentindo antes. A gente vai tentar refletir esse clima de união e reconstrução, que é o lema do novo governo, também no nosso fazer musical e criativo, na nossa brincadeira de Carnaval.

No seu mestrado em literatura você estudou "narrativas em contextos totalitários". O tema conversa de alguma forma com o Carnaval?

L. D. - Olhar para narrativas totalitárias é o que nos move --as pessoas que pensam a cultura-- a estar aqui reiterando a nossa vontade de fazer uma festa para as pessoas. Nos nutrimos da pandemia e das narrativas totalitárias para agora gritarmos aos quatro ventos que queremos estar na rua, queremos ocupar esses espaços, e com alegria.

Porque as pessoas pensam na alegria, na felicidade, de uma forma trivial, mas elas não são nada banais. Na verdade é muito difícil conquistar, na precariedade atual, cinco dias onde a gente possa olhar para esses sentimentos. O Carnaval tem essa função, de reverter essa banalização e permitir que as pessoas deixem um pouco de lado os totalitarismos que tomam a vida delas. E aqui não estou falando só de política, mas de mil formas de opressão que estão por aí.

Por que a alegria é vista como algo banal?

L. D. - A cultura das redes sociais, pelo excesso, tem a capacidade de banalizar muito rapidamente qualquer sentimento, seja depressão, um conselho de vida, um propósito, o que for. Isso é apropriado e rapidamente deglutido em forma de toneladas de conteúdo. Alguns sentimentos considerados mais ingênuos e puros, como felicidade, alegria, espontaneidade, leveza, acabam então sendo tratados de forma muito rasa ou superficial.

Quando alguém canta "Eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci" [Cidinho e Doca], isso não é nem um pouco banal. Conquistar esses sentimentos na verdade é muito difícil, e o Carnaval talvez traduza em gestos, toques, abraços, isso que é tão difícil de traduzir. Isso é importante. Não é só para a gente deixar de trabalhar, como muitos pensam.

Vocês colocaram o bloco na rua em 2011, 12 anos atrás. Como o Carnaval mudou de lá pra cá?

L. D. - Certamente se modificou muito. Em São Paulo, quando começamos há 10 anos, era só a gente e mais alguns. Hoje é um movimento de "pô, vamos ocupar a rua aqui também". Em Minas Gerais e Porto Alegre, a mesma coisa, foi um movimento ao redor do Brasil.

Já no Rio, quando a gente nasceu, era uma consolidação do renascimento do Carnaval que aconteceu no final dos anos 1990, início dos anos 2000, com Monobloco, Bangalafumenga, que têm quase 25 anos agora. Eles pegaram o Carnaval de mais de cem anos de tradição e começaram a trazer outros temperos, outros sotaques, com músicos que não necessariamente eram de Carnaval. Mas sempre com muito respeito, com percussão. A gente também tem essa busca no Sargento desde sempre, como vários outros blocos que vieram nessa esteira: Fogo e Paixão, Toca Raul etc.

Agora, eu sinto que durante alguns anos o Carnaval do Rio teve um clima diferente, digamos assim, para ser diplomático. Nos anos da prefeitura de [Marcelo] Crivella [Republicanos, de 2017 a 2020] tinha sempre uma preocupação de controlar: "Ah, vamos fazer controle de entrada". Agora, com Eduardo Paes [PSD], finalmente poderemos fazer uma festa que, por ser organizada, permite que a gente possa se descontrolar.

Em 2020, último Carnaval do Sargento, vocês tocaram com uma orquestra. Neste ano haverá novidades?

L. D. - Teremos três participações especiais. A gente tenta traduzir a mistura do Sargento, que já é a música de Liverpool com ritmos do Brasil inteiro, também no palco. Teremos o coral do Sargento Pimenta, que existe há quatro anos e é formado por 16 mulheres de várias gerações, dos anos 1940 aos 2000, traduzindo a ideia de Beatles. Também teremos a Antonia Medeiros, que participou do The Voice Brasil e tem uma pegada mais popular, das mídias, e o Moyseis Marques, que é uma figura icônica do samba que acabou de concorrer ao Grammy Latino, ligado à capoeira, às manifestações populares. Então teremos pessoas de várias cidades e idades, pessoas externas ao bloco e internas ao bloco.

De uns anos para cá a prefeitura criou a divisão dos "megablocos". Vocês se consideram um megabloco?

L. D. - Nunca nem pensei sobre isso. Nosso trabalho é feito ao longo do ano, somos músicos. As pessoas às vezes podem achar que por ter patrocínio, por ter mais gente, tem algum tipo de glamour envolvido, mas não. É porque os custos pra você levantar um palco num lugar aberto, com som bom, figurino para todo mundo, são altíssimos. As escolas de samba estão aí porque elas recebem também patrocínios e dinheiro público. A gente não recebe.

Não vou entrar nesse mérito, mas só estou dizendo que é difícil botar um bloco na rua, seja micro, pequeno, médio, grande, mega --é difícil para todo mundo. Então, como o trabalho não se modifica em função do tamanho do bloco, não considero que somos um megabloco. Considero que somos um bloco que rala muito para conseguir sair todo ano.

O nível de exigências da Riotur [empresa de turismo da prefeitura] para colocar o bloco na rua foi novamente criticado por parte dos cortejos. Concorda?

L. D. - Eu não sou da Riotur, mas posso dar minha opinião pessoal que é: sim, é muita exigência e as condições são dificílimas e caras, com autorizações de bombeiros, polícia, paramédicos, muita coisa. Mas nós também temos que ter cuidado com as pessoas. O que é mais importante é que a prefeitura se mostre aberta a dialogar com as necessidades de cada bloco. De um lado, os blocos têm que entender e fazer o possível, e de outro a prefeitura tem que ser flexível para saber que, poxa, se você for muito exigente nenhum bloco sai. Essa prefeitura se mostra aberta a dialogar, mas a gente sabe que com quase 600 blocos esse canal às vezes não vai ser tão simples para todos.

O que pensa sobre essa discussão dos blocos oficiais [autorizados pela prefeitura] versus blocos não oficiais [que saem sem registro]?

L. D. - A graça do Carnaval é a composição das duas coisas. A composição do organizado com o desorganizado, do controlado com o descontrolado. Se você chega numa praça com seu tamborim, outro chega com um surdo, duas pessoas têm um trompete e um trombone, vocês não combinaram, vocês começam a tocar e todo mundo começa a aparecer em volta e festejar, esse é o espírito do Carnaval. Por que isso tem que ser proibido?

Agora, o Sargento Pimenta saindo do Aterro do Flamengo há 12 anos para um público de milhares de pessoas, sim, tem que sair autorizado. Porque isso envolve uma logística que pode atrapalhar a cidade. Um bloco que sai espontaneamente e não atrapalha em nada, pelo contrário, faz com que a festa seja o que ela é. O espírito da espontaneidade do Carnaval deve ser preservado.

SARGENTO PIMENTA NO CARNAVAL DO RIO DE JANEIRO

Data segunda (20)

Horário das 10h às 14h

Local Aterro do Flamengo, em palco fixo junto ao Monumento aos Pracinhas

RAIO-X | LEANDRO DONNER, 34

É diretor musical, arranjador, guitarrista e vocalista do Bloco do Sargento Pimenta, projeto pelo qual ganhou a Medalha Pedro Ernesto, honraria do município do Rio, por serviços prestados à cultura. É formado em arranjo musical pela Unirio e mestre em literatura pela PUC-Rio. Também atua nessa área e no audiovisual, sendo fundador da produtora Graveto e sócio do studio123 e da agência Gafanhoto.


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