SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - "Eu fiquei no porão 9 meses e 28 dias", conta Luana Maciel, 39, sobrevivente do tráfico internacional de pessoas. Mulher, negra e vítima de violência doméstica, ela viu na oportunidade de trabalho oferecida por um conhecido a chance de melhorar de vida. Mas não foi o que aconteceu com ela e com muitos outros brasileiros traficados nos últimos anos.

De acordo com boletim do Ministério da Saúde, de 2011 a 2019 foram registrados no Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação) 1.302 casos de tráfico de pessoas, e a pasta acredita que a pandemia agravou a situação, uma vez que aumentou a vulnerabilidade socioeconômica.

Outro levantamento, realizado por meio de uma parceria entre a OIM (Organização Internacional para as Migrações), o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e a Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), ajuda a compreender melhor alguns aspectos do crime.

Os pesquisadores analisaram 144 ações penais com decisão em segunda instância e descobriram que a média de duração dos processos de tráfico internacional é de dez anos, dez meses e 16 dias. "É um absurdo", critica Lívia Miraglia, professora da UFMG e uma das coordenadoras do estudo.

Das 714 vítimas listadas nos processos, 688 eram mulheres e 31 tinham menos de 18 anos. O principal destino das vítimas era a Espanha, seguido por Portugal, Itália, Suíça, Suriname, Estados Unidos, Israel, Guiana, Guiana Francesa, Holanda e Venezuela, e em 97,22% dos casos a finalidade do crime era a exploração sexual.

"Os traficantes trabalham principalmente com as redes sociais. Postam fotos da menina bonita que foi trabalhar fora e está vivendo uma vida luxuosa, e isso seduz as vítimas", diz a pesquisadora.

No caso de Joana (nome fictício), 29, o crime foi cometido por um casal de fazendeiros de Oklahoma (EUA). Após se candidatar a uma vaga para gerente de loja anunciada em um site de emprego, ela foi contatada pela dupla e passou cerca de três meses fazendo chamadas de vídeo para alinhar a viagem, realizada no fim de 2017.

O contato prévio com o criminoso, mesmo que pela internet, cria certo nível de confiança, e a vítima acredita nas promessas falsas, o que configura fraude. "Geralmente, as vítimas conhecem os autores e acabam confiando. Elas tentam sair de uma situação de vulnerabilidade, pobreza e sofrimento para buscar uma situação melhor e são enganadas", diz o promotor de Justiça Arthur Pinto de Lemos Junior, Secretário Especial de Políticas Criminais no Ministério Público de São Paulo.

Maciel também confiava no homem que lhe ofereceu emprego nos Estados Unidos. Ela o conheceu quando trabalhava como atendente no consulado americano em Brasília e ele chegou a participar de confraternizações de sua família. Assim, quando surgiu o convite para atuar em um escritório na Flórida, não houve suspeitas.

Após duas viagens pagas pelos recrutadores para conhecer o prédio em que ia morar e a escola em que as filhas iam estudar, Maciel se mudou em 2013 com as duas meninas, uma amiga que também trabalharia no escritório e o filho dela.

Ela e a amiga esperaram por 40 dias o término das "obras no escritório" para que pudessem começar a trabalhar, mas passado esse tempo o que ocorreu foi a mudança do contratante para o apartamento em que elas e os filhos estavam.

Vítima de ameaça, Maciel decidiu pedir ajuda a outro homem que havia conhecido no consulado e ele levou o grupo para a casa do pai, onde ela e a amiga foram forçadas a trabalhar como faxineiras e babás. As crianças iam para a escola, mas eram ameaçadas de morte e, com medo, não contavam nada.

A situação piorou depois que o algoz estuprou sua amiga. Elas evitavam dormir e pararam de pedir para usar o banheiro, fazendo as necessidades no próprio porão. "Foi um filme de terror", diz Maciel, que perdeu parte da visão do olho esquerdo no tempo de cativeiro.

O homem dizia que os vizinhos estavam vigiando a casa e acompanhava todas as ligações feitas para as famílias no Brasil. "Muitas dessas ligações foram feitas sob ameaça, com ele com uma faca ou um revólver", revela.

"Sem conhecer o país, as leis e o sistema, havia não só a ameaça de morte, mas a ameaça relacionada à imigração. Ele falava que íamos ser presas e acreditávamos. Eu não sabia que estava sendo vítima de tráfico. Para mim, o tráfico de pessoas era o que acontecia com os escravos, eram pessoas em correntes", conta.

Para Joana, que pediu para não ser identificada porque ainda não contou aos pais ter sido traficada, os algozes cortam qualquer esperança de sair daquela situação .

Por cerca de um ano ela foi obrigada a cuidar os animais da fazenda e limpar a casa e a loja do casal sem pagamento. Ao perceber que seria vendida "em casamento", pediu ajuda para o filho deles e foi levada para a casa da avó do rapaz. Lá, foi forçada a trabalhar como faxineira e babá para pagar a "dívida" de aluguel.

Tanto no caso de Luana Maciel quanto no de Joana, os traficantes estão soltos, e o medo de represálias ajuda a explicar um dos grandes entraves para o combate ao crime: a subnotificação.

De 2018 a 2020, foram resgatadas 203 vítimas de tráfico interno e internacional em operações da Polícia Federal e foram detectadas 1.416 possíveis vítimas em atendimentos nos centros de assistência social. Eram homens traficados para trabalho análogo à escravidão, perfil muito diferente das ocorrências de exploração sexual registradas no Sinan.

"Muitas vezes, há um julgamento moral na exploração sexual", afirma Miraglia. "Nos deparamos com justificativas como 'ela sabia que ia se prostituir, então não há crime'. Ela pode ter concordado em se prostituir, mas não consentiu em entregar o passaporte, não ter liberdade de viver."

Outros fatores para o reduzido número de denúncias são a vergonha e o desconhecimento do crime, dos direitos e dos canais de apoio. "A pessoa está muito fragilizada. Ela não tem força, não acredita e não se sente reconhecida, então precisa de ajuda para levar esse registro adiante", complementa Lemos Junior. Nesse sentido, a morosidade da tramitação dos processos só aumenta a desconfiança das vítimas.

No Brasil, afirmam os especialistas, a lentidão está atrelada à dificuldade de encontrar as vítimas, as testemunhas e os réus. Há uma dispersão que requer negociações com entidades internacionais e traduções, por exemplo.

"Com a demora, as provas vão se perdendo pelo caminho. As testemunhas somem e já não temos o corpo machucado, com sinais aparentes da violência", diz a pesquisadora da UFMG.

Já nos Estados Unidos, Maciel e Joana afirmam que a vagarosidade para a conclusão de seus casos se deve ao fato de serem imigrantes e terem renda baixa. Mencionam também o despreparo dos policiais e investigadores.

Maciel, que hoje estuda direito e atua ajudando vítimas de tráfico humano, tem inclusive atuado para aumentar o conhecimento sobre o crime. E Joana, que estuda enfermagem, quer treinar profissionais de saúde para que sejam capazes de identificar vítimas.

Aqui, um projeto no Amazonas se concentra exatamente em capacitar a Polícia Civil. A corporação aceitou um convite da ONG The Exodus Road, que combate o tráfico humano, para um treinamento remoto. "As videoaulas trazem estudos de caso e citam exemplos de diversos lugares do mundo, mostrando como atuar", afirma Fabiano Barroso e Silva, investigador e gerente da comissão de capacitação no estado.

"Quando falamos em tráfico humano, pensamos em pessoas sendo sequestradas ,e as aulas ajudam a compreender que inclui, por exemplo, as moças trazidas para trabalhar na capital que não recebem o combinado", comenta. "É algo muito maior."


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