SÃO LUÍS, MA (FOLHAPRESS) - Com uma corda na cintura, um homem amarra a si mesmo num tambor que, minutos antes, era aquecido com as chamas de uma fogueira. Ao seu lado, dois músicos testam o som de seus instrumentos, também cálidos, e começam a batucar.
Mulheres vestidas com floridas saias longas formam uma roda e mexem o corpo conforme a música, cantarolada por um grupo de homens ao lado.
Uma voz, então, anuncia o começo de mais uma apresentação do museu Casa do Tambor de Crioula, no centro histórico de São Luís, no Maranhão.
Famosos na cidade, os festejos do instituto acontecem às quartas-feiras, entre o fim da tarde e começo da noite, em frente à calçada do museu. "Aqui, na rua, as pessoas podem beber à vontade", diz o responsável pelo órgão, Neto de Azile, 51.
Sabendo disso, camelôs vendem ali cerveja, conhaque e cachaça. Tanto o público quanto os próprios ritmistas compram o álcool, que serve para curtição e também auxílio na técnica de esquentar instrumentos, a mais famosa do tambor de crioula --movimento celebrado em 18 de junho.
Os músicos se reúnem minutos ou até mesmo horas antes de suas apresentações para acender a fogueira. Às vezes, lambuzam as mãos de cachaça para não sentirem dor ao batucar no tecido em brasa.
A tática de afinar instrumentos através do fogo é uma tecnologia ancestral comum em muitas percussões africanas, afirma Azile, que é também diretor de patrimônio cultural imaterial da Secretaria de Estado da Cultura do Maranhão.
"Em temperatura normal, [o tecido do tambor] fica fofo e o som sai meio abafado. Com o aquecimento e a dilatação, o couro fica esticado e a sonoridade melhora." Para saber se o instrumento está afinado, os percussionistas vão tocando nele, atrás das chamas, e ouvindo o timbre.
Uma das mais importantes rodas de danças afrobrasileiras, o tambor de crioula nasceu em quilombos maranhenses, ainda no regime escravocrata, conforme aponta a maioria das pesquisas historiográficas -não há informações precisas, porém, sobre o ano e as comunidades que deram início à onda cultural.
O festejo teria emergido como um alento aos negros, com momentos de integração e lazer entre escravizados e ex-escravizados, numa tentativa de minimizar o sofrimento que viviam.
"[A origem] está relacionada à própria história da colonização do Brasil e à da formação da sociedade brasileira", diz Azile. "[Seus músicos e dançarinas] carregam uma memória da construção deste país."
A partir da década de 1970, a atividade começou a ganhar uma veia turística pelas ruas maranhenses, principalmente as da capital, e em 2007, foi registrada como patrimônio cultural imaterial brasileiro. Hoje, é realizada para fins religiosos, de entretenimento e comercial.
Em toda roda, vemos o sagrado. Figura central no movimento, o santo católico negro São Benedito -cuja mitologia cristã o associa à resistência de escravizados- é louvado, com miniaturas de sua imagem sendo passadas de mão em mão e postas sobre as cabeças do público, enquanto a música rola solta.
Alguns grupos exploram o sincretismo religioso, glorificando outras divindades ao lado de Benedito. Entre elas, estão o vodum Averequete, a padroeira Nossa Senhora da Conceição e a entidade do Preto Velho.
Além do apelo religioso, o tambor de crioula atrai pelo caráter artístico. É o caso de Alcelino Amorim, também chamado de mestre Alcelino.
Aos 65 anos, o quilombola -da comunidade Santa Rita, em Bequimão, no Maranhão-- canta em grupos do gênero desde os 15, quando fez sua primeira toada -termo usado para se referir às cantigas.
Ele conta que seu gosto pelo festejo começou na infância, ao ouvir músicas entoadas pelo pai, que tocava em grupos tamborzeiros. Apesar de insistir para acompanhá-lo nas performances, Amorim diz que raramente tinha a autorização da mãe.
"Com uns 12 anos, ela começou a deixar um pouquinho", diz ele, cantando em seguida os versos de sua letra de estreia: "'Idade de 15 anos/ Fiz minha primeira toada/ Olha eu queria ir/ Minha mãe que não deixava'."
Após seu debute no meio, Amorim intensificou a relação com o movimento, chegando a ir até à África do Sul para se apresentar em grupo, em 2008. Lá também viu rodas de dança locais, que são semelhantes às afrobrasileiras do Maranhão, apesar de diferenças marcantes, como tamanho e som dos instrumentos.
Assim como ele, Maria José Nunes, 71, participa das edições anuais do Encontro de Grupos de Tambor de Crioula das Comunidades Quilombolas do Maranhão e diz ter se encantado pelo movimento ainda na adolescência.
"Uma porção de tambor já dancei. Vou largar só quando morrer", diz ela. "É uma cultura muito maravilhosa. Por onde a gente passa, vai deixando rastro. De primeira, os quilombolas não eram vistos, mas, agora, estão sendo reconhecidos."
Membro da comunidade Ramal de Quindíua --também em Bequimão-, Maria Nunes faz a chamada punga, ou umbigada, outra importante marca do tambor de crioula. O passo coreográfico consiste num encontro de ventres, com coreiras encostando suas barrigas entre si, ao som de gritos de saudação.
Mulheres dançam e fazem punga, homens cantam e tocam tambores. É assim na maioria dos grupos maranhenses. A tradição, porém, não é regra unânime.
É possível encontrar, sobretudo nas áreas interioranas, rodas em que há inversão dos atributos de gênero --nestes casos, a punga masculina ocorre com joelhos e pernas. Ainda assim, há uma divisão.
Associada ao samba, a cultura do tambor de crioula abraça a polirritmia, passos rodopiados e a síncope.
Chamada de parelha, a música conta com três tambores. O maior é o rufador, cujo músico o põe entre as pernas, com uma corda amarrada entre sua cintura e o instrumento, para fazer solos de batuque.
Já o meião, ou socador, tem uma célula rítmica repetitiva que, em geral, inicia as toadas. E o crivador, ou perenga, é o menor e traz uma sonoridade aguda. Vários grupos têm ainda a matraca, da qual o tocador fica agachado, logo abaixo do rufador.
Do gogó dos cantores, saem as chamadas toadas novas e toadas mortas. As primeiras são feitas sob improviso, e as outras são cantigas tradicionais, famosas entre os fãs do movimento.
Não são só quilombolas que participam das rodas. Cada vez mais, gente de fora das comunidades se joga nos festejos. A celebração da identidade negra, porém, continua a ser o ponto de partida do movimento, o que, muitas vezes, faz dele alvo de racismo.
"Quando a gente chegou em São Paulo, sentiu o que é uma discriminação por tocar tambor", afirma Celso França, 48, quilombola da comunidade Frechal, na maranhense Mirinzal, e músico do grupo Juçaral dos Pretos, que se apresenta na capital paulista há pouco mais de uma década.
"Primeiro, [falavam em] macumba. Não estavam errados. Macumba é um tipo de instrumento, e a gente tocava. Mas a agressão e o preconceito eram muito maiores de outra forma. Jogavam água em nós. Chamavam a polícia, e chamam até hoje pelo simples fato de não quererem conhecer. Tudo parte disso, a falta de informação. Mas a gente resiste."
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