SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - "Lembrava o eito, a senzala, o tronco, o feitor, o capitão-do-mato. O relho, a palmatória, sibilando, estalando no silêncio da meia-noite, chumaço de pano sujo na boca de um infeliz, cortando-lhe a respiração. E nenhuma defesa: um infortúnio sucumbido, de músculos relaxados, a vontade suspensa, miserável trapo. Em seguida o aviltamento."

Foi inspirada nesse testemunho de Graciliano Ramos, imortalizado na obra literária "Memórias do Cárcere", que a juíza Luciana Teixeira de Souza, corregedora de presídios e titular da 2ª Vara de Execução Penal de Fortaleza, determinou o afastamento temporário de integrantes da cúpula de uma unidade prisional de Itaitinga, na região metropolitana, suspeitos de maus-tratos a detentos.

A decisão foi tomada após a magistrada ouvir uma série de presos que relataram casos de violência na Unidade Prisional Agente Elias Alves da Silva. Essa é a mesma unidade onde a comissão da Defensoria do Ceará encontrou indícios de novas técnicas de tortura, com torção de testículos de presos e tormento batizado de "posição taturana".

"A situação narrada pelos internos e mais o conjunto de elementos colhidos demonstram quão temerária se torna a permanência do corpo diretivo nas respectivas funções, seja no presídio da ocorrência dos fatos ou em qualquer outro do estado, até que se produzam as provas necessárias, esclareçam-se os fatos e não haja comprometimento à integridade de tantos internos", diz trecho da decisão.

Entre os relatos de detentos supostamente agredidos na unidade está o de um homem que teve o maxilar quebrado e estava se recuperando no hospital quando foi ouvido pela magistrada, no último dia 16. Na ocasião, segundo o documento, "o preso se apresentava em estado físico bastante debilitado, ofegante e com dificuldade de expressar-se através da fala".

"Eram visíveis a existência de hematomas na região do rosto, marcado com sinais e manchas arroxeados ao redor das bochechas e região dos maxilares, que recentemente passaram por cirurgia."

A magistrada aponta no documento a série de supostas violações físicas e psíquicas narradas por ao menos dez internos. Ela faz um destaque sobre o relato da obrigatoriedade de os presos ficarem nus.

"Outra forma de constrangimento grave, como despir as pessoas privadas de liberdades, conforme relatado por vários internos, rememora práticas a abomináveis, próprias de período de exceção. Ainda que se alegue prática de procedimento em garantia a suposta 'segurança' da unidade, não se justificaria tamanho constrangimento e violação da dignidade."

Procurada pela reportagem, a magistrada disse não poder comentar o caso específico, por em razão do sigilo. Falou, porém, da essência da decisão e dos argumentos utilizados de respeitos aos direitos humanos.

"O maior perigo que corremos é coisificar o ser humano. E nós, enquanto instituição, jamais podemos perder o norte do princípio crucial que deve nos reger, enquanto juízes, que a gente não pode se afastar, que é o princípio da humanidade", disse ela à reportagem.

"Quando nós defendemos, tentamos proteger a dignidade de alguém, nós estamos protegendo toda uma sociedade. Nós não estamos passando a mão na cabeça de alguém que cometeu um crime. Ele está lá, pagando na forma que o nosso país escolheu que deveria ser pago, conforme a nossa legislação exatamente diz, perdendo apenas o direito de ir e vir, a liberdade, mas nenhum outro direito", disse.

A decisão da magistrada foi conhecida no último dia 26, Dia Internacional de Luta contra a Tortura. Nessa mesma data, o ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida, em palestra a advogados, em São Paulo, também falou sobre o combate à tortura no cárcere.

"Esse é um dos projetos principais do ministério, porque se a gente conseguir tratar as pessoas que estão nessa situação, com o mínimo de dignidade, é sinal de que a gente vai poder tratar as outras pessoas com mais dignidade. Então, para nós, essa é uma questão fundamental: lidar com as pessoas que estão no cárcere", disse o ministro.

SECRETARIA DIZ REPUDIAR ATOS

Em nota, a Secretaria da Administração Penitenciária e Ressocialização do Ceará afirmou que "repudia qualquer ato que atente contra a dignidade humana". Diz receber visitas regulares de instituições fiscalizadoras e todos os casos suspeitos são investigados internamente e também encaminhados à Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública.

A pasta também negou os novos tipos de tortura no sistema.

A gestão Elmano de Freitas (PT) ressaltou ainda o trabalho de ressocialização de presos no estado.

Diz que "a política de valorização da polícia penal do estado do Ceará passou por grandes transformações nos últimos anos" e que a pasta contratou mais de 1.000 novos agentes e elevou os salários em 40%.

"A SAP [Secretaria de Administração Penitenciária] nega as práticas apontadas, repudia qualquer tipo de conduta que ofenda seus servidores e comunica que, nos últimos quatro anos, a pasta ergueu um prédio próprio, equipado e completo para o cuidado transversal da saúde dos seus policiais e contratou profissionais de diversas áreas de atendimento", diz em nota.


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