SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A certa altura do livro "Perdizes - História de um Bairro", José Aranha de Assis Pacheco descreve o crescimento demográfico da região, decorrente "dessa verticalização que vem se processando", e diz que uma "verdadeira onda de grandes construções levou de roldão velhas e belas residências, algumas verdadeiras mansões", redundando "em completa transformação da fisionomia local".
O volume foi publicado em 1982, na série Histórias dos Bairros de São Paulo, do Departamento de Patrimônio Histórico da prefeitura, e o surto vertical a que se refere o autor ocorreu nos anos 1970, entrando pelos anos 1980 ?dados da consultoria imobiliária Embraesp na época registram picos de lançamentos e unidades em 1977 e 1981.
As palavras de Assis Pacheco também se adequam perfeitamente aos dias atuais. Na terceira década do século 21, Perdizes vive a sua segunda grande onda de verticalização, modificando ainda mais o perfil do bairro. Um permanente canteiro de obras remodela e/ou desfigura o ambiente urbano, trazendo reflexos ao comércio, ao trânsito e, sobretudo, ao cotidiano dos seus habitantes.
Que o diga a professora aposentada Clarice Glikas. Moradora de um edifício ao lado da obra da futura estação de metrô PUC-Cardoso de Almeida, na esquina com a João Ramalho, ela conta que, no começo da construção, dormia vestida com roupa de sair, temendo que um acidente a forçasse a fugir de supetão.
Em certo momento, os trabalhos varavam a madrugada, com a poluição sonora somando-se a transtornos como nuvens de poeira e bloqueio da rua. "É uma situação terrível. Espero que melhore, mas acho que o bairro vai ficar um horror", queixa-se Glikas, que vive em Perdizes há 39 anos ?testemunhou, portanto, parte do primeiro "bota-abaixo" e considera que o atual é bem mais extenso.
A futura estação ao lado da casa dela é uma das quatro programadas para começar a operar no final de 2025 numa pequena região da zona oeste dentro de um raio de cerca de 3 km ?as outras são as de Perdizes, Sesc Pompeia e FAAP-Pacaembu. As três primeiras ficam no distrito de Perdizes, a última na Consolação.
A oferta de mais transporte público, potencializada pelo estímulo do Plano Diretor de São Paulo de 2014 (e sua mais recente revisão) à verticalização no entorno de estações de metrô e trem e de corredores de ônibus, é o maior motor do frenesi construtivo na região ?iniciado no fim da década passada e que agora vive seu auge. Mas há fatores adicionais, como a Operação Urbana Água Branca ?que abarca Perdizes?, com obras que intensificam ainda mais o adensamento.
Perdizes já possui a maior densidade demográfica da zona oeste: são 18,2 mil habitantes por km², bem mais que a média da cidade (12,4 mil) ou de outro bairro rico da região, Pinheiros (8,1 mil).
Um artifício incluído na revisão do Plano Diretor aprovada na Câmara dos Vereadores no final de junho deve ajudar a ampliar o adensamento. Até então, a lei permitia/estimulava a verticalização numa área a 600 metros de estações de metrô e trem; com a mudança, o raio aumentou para 700 m, mas abriu brecha para que quarteirões apenas tocados pela faixa do raio possam, em sua totalidade, receber novos prédios.
Apenas de janeiro a maio deste ano, foram vendidos 456 apartamentos em Perdizes, tornando o bairro o mais procurado da zona oeste no quesito, segundo o Ranking da Demanda Imobiliária da Loft ?que mostra o volume de transações em 118 bairros de São Paulo com base em dados da prefeitura sobre o pagamento de ITBI (Imposto de Transmissão de Bens Imóveis). No ranking geral da capital, Perdizes pulou do décimo lugar, em 2019, para o quarto neste ano (crescimento de 24,6% nas vendas).
A tendência é que a verticalização aumente. Um estudo dos urbanistas Ivan Maglio (engenheiro) e Juliana Carneiro (arquiteta), da USP, identificou 35 terrenos passíveis de virarem prédios apenas no entorno da rua João Ramalho, perto da futura estação Perdizes, e fez uma simulação de como ficaria a área em caso de subirem ali novos empreendimentos. Alguns dos espaços mapeados já são de fato edifícios em construção ou em vias de construção.
O estudo valeu-se de programas de computador para fazer a simulação, mas basta caminhar pelas ruas para constatar a convulsão imobiliária. Num trajeto de menos de um quilômetro do início da rua Cardoso de Almeida, nas proximidades do Minhocão, até a esquina com a rua Bartira há quatro novos edifícios em construção ou perto de começar as obras ?e um quinto recém-inaugurado.
Um deles está no terreno onde fica um casarão tombado que pegou fogo na última sexta (4) ?e que, pelo projeto, será incorporado ao novo espigão.
Urbanistas apontam um paradoxo: o Plano Diretor de 2014 tinha como uma das metas solucionar problemas que, na prática, provavelmente serão agravados pela revisão aprovada recentemente.
Grosso modo, o plano aspirava assegurar moradia mais diversa, apartamentos menores e com menos vagas para carro perto dos eixos de transporte. "Mas as alterações [no texto] permitiram imóveis maiores e com mais vagas desde que paguem, o que está gerando um boom tanto de estúdios para AirBnb quanto de apartamentos maiores para os mais ricos", critica Ivan Maglio. Pesquisador colaborador do Instituto de Estudos Avançados e do Laboratório de Áreas Verdes (ambos da USP), ele prevê que as atuais regras aumentarão o adensamento mas também o trânsito, "porque o morador de alto padrão vai continuar usando carro".
A arquiteta Flávia Brito do Nascimento, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, lembra que a localização privilegiada ?perto do centro e da avenida Paulista? e a profusão de universidades, escolas e opções de lazer tornam Perdizes muito atraente. Ainda há ruas calmas e arborizadas, o Parque da Água Branca, casas e vilas, clima de bairro ?para ela, justamente o que deve ser mais preservado. "Não é só o valor arquitetônico, o valor afetivo precisa de salvaguardas. Defender mais prédios é uma falta de respeito à memória", afirma.
É essa a preocupação primordial de um grupo de moradores que acaba de criar a Associação dos Moradores e Amigos de Perdizes (Amora).
Em reação à escalada imobiliária, a entidade buscará no Plano de Bairro, mecanismo previsto no Plano Diretor, meios de preservação de vilas e casas e freios à verticalização durante a revisão da lei de zoneamento, a ser analisada em breve pelos vereadores, explica o arquiteto e urbanista Antonio Castelo Branco, presidente da Amora.
Há moradores que sentem na pele os efeitos das obras. A advogada Marcela Barretta, que vive com o filho e um casal de gatos numa casa de vila próxima ao Sesc Pompeia e à construção da estação homônima, desenvolveu bronquite há dois meses. Segundo sua médica, foi efeito direto do pó de uma obra de 28 andares da construtora Even grudada em seu muro.
"Construir é normal, sou a favor de mais moradia perto do metrô, mas tudo tem limite. Construtoras não podem ficar mais bilionárias às custas da saúde dos vizinhos", reclama Barretta. A Even, que tem três edifícios em obras na região, disse que cumpre as normas exigidas pelos órgãos públicos em relação ao funcionamento dos canteiros e que mantém canais abertos para relacionamento com moradores.
A prefeitura afirma que o Plano Diretor visa "estimular o adensamento populacional e construtivo de territórios situados na Zona de Estruturação Urbana (ZEU), ou seja, porções da cidade com boa infraestrutura e junto a eixos de transporte público coletivo". "O objetivo é, com isso, aproximar emprego e moradia, reduzir distâncias e melhorar a qualidade de vida de quem vive na cidade", disse, por meio de nota da Secretaria de Urbanismo e Licenciamento.
Segundo o relator da revisão do plano na Câmara dos Vereadores, vereador Rodrigo Goulart (PSD), o texto aprovado conduzirá a "uma cidade mais justa, mais inclusiva e mais preocupada em cuidar de suas áreas verdes".
É igualmente esperançosa a perspectiva dos que tentam chegar agora ao bairro. Gente como a servidora pública federal aposentada Magali de Jesus Lopes, que no último dia 24 visitava o estande de um prédio a ser erguido no início da Cardoso de Almeida: apartamentos de um dormitório e 28 m² "com varanda e lazer completo" a partir de R$ 289 mil.
Moradora a vida toda da zona leste e há 20 anos na Penha, ela almeja se mudar para Perdizes por ser um bairro mais verde e mais moderno. E, embora também não goste de obras, relativiza a grita dos que resistem à verticalização. "Essa explosão imobiliária não é só aqui. A zona leste toda está assim, na Penha só tem obra, me incomoda muito. Não sei se vai sobrar algum lugar pacato em São Paulo."
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