SIMÕES FILHO, BA (FOLHAPRESS) - A fachada da casa amarela traz a silhueta de uma mulher preta e um jarro na cabeça. A placa, rodeada por desenhos de búzios, dá as boas-vindas ao Quilombo Pitanga dos Palmares Caipora.
Por detrás desta parede, Bernadete Pacífico, 72, estava sentada em um sofá com estofado verde na noite desta quinta-feira (17), sob a guarda das imagens de Cosme e Damião em um altar improvisado e de um quadro com um retrato de Jesus Cristo pendurado na parede.
Ela estava junto com os netos na casa, que é sede da associação comunitária, quando dois homens chegaram em uma moto. Sem retirar os capacetes, eles invadiram a casa e assassinaram a líder quilombola com 14 tiros.
Os tiros silenciaram a voz mais ativa em defesa de comunidade quilombola de Pitanga de Palmares, em Simões Filho, cidade da Grande Salvador. A região, que fica em uma Área de Proteção Ambiental, abriga em torno de 300 famílias de descendentes de escravizados que vivem entre o luto e o medo.
Não era a primeira morte que acontecia na família. O filho de Bernadete, Flávio Gabriel Pacífico, o Binho do Quilombo, foi assassinado em 2017 na frente da escola da mesma comunidade.
Bernadete lutava por Justiça para o filho, já havia recebido ameaças e fazia parte de um programa de proteção a defensores dos direitos humanos do Governo na Bahia. Câmeras foram instaladas na sua casa e no entorno e policiais faziam visitas periódicas ao local, mas não havia uma vigilância permanente.
A líder quilombola era a referência da luta da comunidade por seu território. A demarcação da área como terra de descendentes de quilombolas está em fase final de tramitação no Governo Federal, mas segue parada desde 2017.
Com jeito risonho e extrovertido, sem amargura mesmo após a morte do filho, era uma espécie de amálgama da comunidade. Atendia a todos sem restrições, dava conselhos e distribuía broncas.
Mas tinha firmeza e batia de frente ao defender os interesses dos quilombolas. Na comunidade, fazia trabalhos sociais e liderava oficinas de artesanato para mulheres e crianças em uma pequena olaria na sede da associação.
Também tinha uma atuação nacional da luta pela regularização das comunidades quilombolas na liderança da Conaq (Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos)
O seu assassinato instalou um clima de medo entre os moradores da comunidade de Pitanga dos Palmares, que vivem de artesanato, agricultura de subsistência e da criação de animais em uma região relativamente isolada do núcleo urbano da cidade.
"Como a gente fica agora? A gente vai viver com medo", afirma Cristina da Silva Cruz, 65, que há nove anos mora na área rural da comunidade quilombola e ajudou a cuidar dos filhos de Bernadete quando estes eram crianças.
Zenildo Conceição dos Santos, 49, que foi criado pela líder quilombola e a tinha como uma mãe, diz que as famílias vivem com receio desde o assassinato de Flávio Gabriel Pacífico, o que fez com que parte dos moradores deixassem a zona rural e buscassem abrigo em áreas urbanas.
Mesmo com as tensões, Bernadete prosseguiu com sua luta por Justiça. Em julho, ao lado de outras líderes quilombolas, ela participou de um encontro com a presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Rosa Weber. Na ocasião, afirmou que era ameaçada por fazendeiros.
Jurandir Wellington Pacífico, filho de Bernadete, afirmou nesta sexta-feira (18) que a mãe recebia ameaças há pelo menos seis anos e disse acreditar que ela foi vítima de um crime premeditado.
"Foi um crime de mando, não tem para onde correr. O cara foi pago para executar. Isso é notório, foi um crime de execução. Executaram meu irmão em 2017, agora executaram minha mãe. Isso me faz pensar que eu sou o próximo", afirmou.
Jurandir afirma que a área da comunidade Pitanga de Palmares era alvo de especulação imobiliária e tentativas de grilagem de terra e disputas políticas que podem estar na raiz do crime.
Leandro Santos, advogado da associação quilombola, diz que morte de Bernadete é resultado de um processo de encorajamento de criminosos e mandantes diante da morosidade da Justiça na resolução da morte de Binho há seis anos.
Também afirma temer pelo futuro da comunidade, que perdeu a sua principal líder e referência na luta pelo território.
"A morte de Bernadete tem como consequência a possibilidade de desfazimento do próprio local como quilombo. Quem matou deu um recado de que está disposto a matar outras pessoas. E ninguém mais duvida disso", afirma.
O secretário de Justiça e Direitos Humanos da Bahia, Felipe Freitas, afirmou que Bernadete recebia visitas diárias da Polícia Militar e não havia notificado recentemente nenhum tipo de ameaça específica. Mas admite que o sistema de proteção falhou ao não evitar a tragédia.
"Quando há uma ocorrência, ainda mais uma tragédia, com uma pessoa que está protegida, a gente para e rediscute todo o sistema de proteção. Certamente, se uma tragédia dessa acontece, o Estado brasileiro falhou", afirmou.
A Polícia Federal informou que foi instaurado inquérito para investigação da morte de Bernadete e que o caso de Flávio está sendo apurado. As investigações seguem em sigilo.
O caso também será investigado pela Polícia Civil. O governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues (PT), prometeu firmeza na investigação.
Eram 16h30 desta sexta-feira (18) quando o corpo de Bernadete chegou à Capela de São Gonçalo, em Pitanga dos Palmares. Sob emoção, amigos, vizinhos e saudaram a passagem do caixão com uma salva de palmas.
A capela fica na mesma praça é realizada a Festa de São Gonçalo, uma das principais manifestações culturais de Simões Filho que era organizada por Bernadete e outros quilombolas.
Uma cerimônia religiosa do candomblé foi conduzida pelo povo de santo, que saudou e se despediu da líder. Moradores, vizinhos e amigos iniciaram uma vigília, que prometia entre noite adento.
O enterro de Bernadete será realizado neste sábado (19), às 11h, no cemitério da Ordem Terceira de São Francisco, em Salvador.
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