A Associação Brasileira de Imprensa (ABI) recebe, nesta segunda-feira (11), a partir das 16h, o ato Allende não se rende, em memória dos 50 anos da morte de Salvador Allende, presidente do Chile, em 11 de setembro de 1973. O evento é organizado pela Fundación Salvador Allende e pela ABI.
Em entrevista à Agência Brasil, o presidente da ABI, Octávio Costa, disse que o ato se soma aos eventos que estão sendo realizadas nesta data, com o mesmo objetivo, no Chile. "São atos em homenagem à resistência heroica e ao simbolismo todo de Salvador Allende para a América do Sul”, disse Octávio Costa. Para ele, o ato em memória de Allende tem tudo a ver com a própria história da ABI de defesa do estado democrático de direito, que marca a entidade desde sua criação e com alguns momentos marcantes, como a resistência à ditadura e as campanhas pela anistia e pelas Diretas Já – “todos momentos importantes na história da ABI e por toda a simbologia representada por Allende”. “
A ABI se sentiu honrada ao ser escolhida para sediar esse evento no Brasil, destacou Costa. Segundo o jornalista, Allende era um símbolo de luta social. “Era um socialista histórico no Chile quando foi eleito presidente, enfrentou a resistência imediata da burguesia chilena e, principalmente, dos Estados Unidos.” Costa ressaltou que hoje existem documentos que comprovam a interferência do governo americano na política do Chile na época, inclusive financiando o movimento de conspiração contra Allende. De acordo com Costa, partiu do então presidente americano Richard Nixon a ordem para derrubar Allende, porque não aceitava um governo popular e, pessoalmente, a resistência de Allende.
Com o Palacio La Moneda sendo bombardeado, o presidente Salvador Allende pediu um salvo conduto aos militares para que os assessores mais próximos e sua filha pudessem deixar o local. Quando os militares lhe ofereceram um avião para que saísse do país na companhia da família, Allende recusou, dizendo que só sairia morto do palácio. “Infelizmente, ele cumpre sua palavra. Depois que todos os assessores se retiram, no dia 11 de setembro, ele vai para o gabinete e grita: 'Allende não se rende', repetindo o que havia falado no rádio para o povo chileno. Quando o médico ouve o grito e chega ao local, o encontra caído em uma poltrona, morrendo. Tinha se suicidado”, lembrou Costa.
Para o jornalista, foi um ato heróico de um homem que tinha uma causa, que era o bem-estar da população chilena. “É um exemplo para todos nós, não só para a América do Sul, mas para quem acredita na democracia, para quem acredita que é possível, sim, governar buscando a justiça social”. Allende era médico e dedicou toda a vida ao povo chileno. “Daí, a ABI sediar esse ato, com toda uma simbologia para nós, brasileiros, uruguaios, argentinos, povos que viveram esse tipo de tragédia em um momento muito perto na história. Foi ditadura aqui, na Argentina, no Uruguai e, por fim, no Chile. Nós sofremos tudo isso. Temos essa página sombria na nossa história e daí, a total adesão da ABI a um evento que homenageia o presidente Salvador Allende.”
Modelo
Para o superintendente da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) no Rio de Janeiro, o escritor, tradutor e jornalista Eric Nepomuceno, o evento Allende não se rende é “importantíssimo”. Nepomuceno esteve no Chile, de forma clandestina, em 1974, para fazer uma série de reportagens sobre a resistência não armada no Chile. “E isso foi divulgado mundo afora, junto com texto do [escritor colombiano]) Gabriel Garcia Márquez sobre os últimos momentos da democracia e do Allende. Então, meu vínculo com o Chile é muito forte”, disse Nepomuceno à Agência Brasil. A avaliação de Nepomuceno sobre Allende é a melhor possível. ”Eu tenho o Allende não como um exemplo, mas como um modelo de democracia. No seu tempo, havia pouquíssimos homens como ele.”
Em artigo publicado em jornais do México e Argentina nos dois últimos dias e cedido à Agência Brasil, Eric Nepomuceno conta como se tornou um clandestino no Chile, na ditadura de Augusto Pinochet. “No final de 1973, Gabriel García Márquez escreveu uma crônica, contando com detalhes como tinham sido os últimos dias da democracia no Chile, bem como da vida de Salvador Allende, antes do golpe sangrento de 11 de setembro daquele ano. A crônica seria vendida para veículos de imprensa do mundo inteiro, e o dinheiro arrecadado, destinado a grupos defensores de direitos humanos no Chile.”
Ao terminar o texto, García Márquez pensou em mandar, em uma viagem clandestina, algum escritor mais jovem para entrevistar Jaime Gazmurri, dirigente máximo do Movimiento de Acción Popular Unitaria (MAPU), principal grupo de resistência civil, não armada, à ditadura. Ele indicou o jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano para a missão, mas os chilenos recusaram, alegando que seria impossível alguém tão conhecido como ele ser clandestino em Santiago. Galeano, por sua vez, indicou Eric Nepomuceno que, desde março daquele ano, vivia em Buenos Aires. Era correspondente do Jornal da Tarde e escrevia artigos contra a ditadura brasileira.
“Houve uma longa ligação telefônica de García Márquez, que me interrogou exaustivamente até aprovar-me. Logo, recebi em minha casa, junto com Galeano, os escritores chilenos Ariel Dorfman e Antonio Skármeta, que me passaram instruções precisas sobre como viajar e contactar-me com Gazmuri e o MAPU. O que fiz, então, foi dirigir-me à Embaixada do Chile em Buenos Aires, apresentando-me como correspondente do jornal conservador brasileiro O Estado de S.Paulo, algo que jamais fui, e pedir uma entrevista a Pinochet. Na manhã seguinte, em fevereiro de 1974, embarquei rumo a Santiago.”
Eric Nepomuceno conta que foram cinco dias inigualáveis. “Havia toque de recolher por todo o Chile. A partir das 5h da tarde, quem fosse pego na rua seria levado preso. A tortura selvagem era rotina. O dia a dia era estranho. Os restaurantes começavam a oferecer almoço às 10h30, e os clubes noturnos apresentavam espetáculos de strip-tease a partir do meio-dia. A plateia reunia amigos que, mais que apreciar as garotas despindo-se, aproveitavam para trocar informação sobre o quadro brutal vivido pelo país.”
E segue a narrativa : “O pessoal do MAPU encarregado da segurança de Jaime Gazmuri estabeleceu em quais dias nossos encontros seriam pela manhã e quais à tarde. Minha rotina então passou a ser absurda: quando, pela manhã, era levado clandestino para me reunir com ele, à tarde, ia ao palácio presidencial para esperar a entrevista com Pinochet, que jamais ocorreu.”
Microfilmes
Eric Nepomuceno recorda que, a partir do terceiro dia, uma jovenzinha, vestida com uniforme de um colégio público, aparecia no hotel para entregar-lhe canetas que não escreviam. “Em seu interior, havia microfilmes que eu deveria, ao voltar a Buenos Aires, despachar para Roma, onde se realizaria o Tribunal Russell, organizado, entre outros nomes, por Julio Cortázar [escritor argentino]. No penúltimo dia de minha estada em Santiago, e faltando muito pouco para o toque de recolher, a garota apareceu com uma pilha de papéis, mais de 100 páginas, explicando que não tinham conseguido fazer o microfilme. Eu deveria tirá-las do Chile.”
O jornalista colocou os papéis na maleta de mão, espalhou roupa usada por cima e comprou vários livros de elogio ao golpe de setembro e biografias que exaltavam Pinochet. “Quando, na aduana, abriram minha bagagem e viram os livros, não se preocuparam com o resto. Eu disse que era jornalista e que meu jornal apoiava com firmeza o que ocorria no país desde a derrubada 'do comunista que ameaçava todo o continente'”. Além da entrevista com Gazmuri, Eric Nepomuceno escreveu duas longas crônicas contando como eram os primeiros tempos da resistência à ditadura. Esse material, junto com o texto soberano de García Márquez, foi publicado em mais de 30 países. “E meu nome entrou na lista dos “inimigos do Chile”, junto à ordem de prender-me se tentasse retornar ao país.”
Gazmuri permaneceu na clandestinidade durante sete anos. Em 1980, aceitou exilar-se e foi para Roma. Quatro anos depois, foi para Buenos Aires. Em 1985, voltou ao Chile, entrou no Partido Socialista, foi senador entre 1990 e 2010 e, em seguida, embaixador no Brasil. Nepomuceno voltou ao Chile em 1990. “Guardo no mais profundo da minha memória minha visita ao país, em 1972, e todas as muitas outras que fiz depois. Nenhuma, porém, com a intensidade com que recordo aqueles cinco dias. Mais que a memória, aquela viagem me presenteou duas amizades fraternas, a de Paulina e de Jaime Gazmuri”, encerra o artigo de Eric Nepomuceno.
Agradecimento
Filha do poeta Thiago de Mello, nascida quando ele estava exilado no Chile, no governo de Salvador Allende, a roteirista Isabella Thiago de Mello disse à Agência Brasil que seu pai foi adido cultural na Bolívia de 1959 a 1960 e de 1961 a 1964, no Chile. Após o golpe cívico-militar de 1964 no Brasil, ele entregou o cargo ao Itamaraty, mas continuou trabalhando no Chile como jornalista e editor de revistas, e recebendo a primeira leva de exilados brasileiros que chegavam ao Chile, entre os quais Fernando Henrique Cardoso e José Serra. “Foram três levas de exilados: no primeiro momento do golpe de 1964; depois do Ato Institucional Número 5 (AI5), em 1968; e em 1970, no governo Garrastazú Médici”, citou Isabella.
Quinze dias depois do golpe, o poeta recebeu a notícia, no Chile, da prisão, pela Polícia Militar, do jornalista e escritor Carlos Heitor Cony na redação do jornal. “Ele ficou desesperado porque estava longe, sem poder fazer nada para ajudar o amigo. Morando naquela época na casa do poeta chileno Pablo Neruda La Chascona, em Santiago, Thiago de Mello escreveu ali Os Estatutos do Homem (Ato Institucional Permanente), que dedicou a Cony. Colocou o poema dentro de um envelope e enviou para o jornal Correio da Manhã, que o publicou no dia 30 de maio de 1964.
O poeta enviou uma série de poemas, artigos e crônicas também publicadas pelo mesmo jornal. Voltou ao Brasil em maio de 1965 e, no mesmo ano, em setembro, lançou o livro Faz Escuro mas Eu Canto. O verso acabou servindo de base e inspiração para uma canção Manhã de Liberdade, musicada por Mansueto e cantada por Nara Leão.