Na história de desaparecimento e morte do líder estudantil Honestino Guimarães, há 50 anos, mesclam-se violência e silêncio perturbadores. O estudante de geologia da Universidade de Brasília (UnB), nascido em Itaberaí (GO), foi preso, em razão de sua militância contra a ditadura, seis vezes. Da última, em 10 de outubro de 1973, no Rio de Janeiro, nunca mais voltou para casa. Ele tinha apenas 26 anos de idade. Em seguida vieram pesadelos e sobras de esperança, conforme revelam familiares e amigos de Honestino.
Foi a esperança que moveu a peregrinação da família de Honestino por quartéis e prisões depois que a mãe do estudante, Maria Rosa, recebeu um telegrama que informava a detenção. De acordo com o relatório final da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade, constituída pela UnB, a mãe passou duas semanas em peregrinação pelos órgãos de segurança. Não encontrou o filho. Havia somente uma informação de que ele havia sido preso pelo antigo Centro de Inteligência da Marinha (Cenimar).
A família ouviu de militares que Honestino estava detido no Pelotão de Investigações Criminais (PIC) em Brasília, e que ela poderia visitá-lo no Natal daquele ano. No dia 25 de dezembro, Maria Rosa separou roupas e alimentos para o filho. Ela esperou por seis horas. “Quando eles abriram a porta, levaram-na para uma cela que estava cheia de sangue. E disseram que ele não estava mais lá”, afirma o sobrinho de Honestino, Mateus Guimarães, de 37 anos, que não conheceu Honestino, mas pesquisa e se emociona com a história da família que se uniu para seguir adiante.
A filha de Honestino, Juliana Guimarães, tinha três anos de idade quando o pai foi "arrancado" da vida dela. “É não só da minha. Da minha avó, que passou a vida inteira procurando pelo meu pai. São 50 anos que a gente não tem resposta alguma. Nem o paradeiro sobre o corpo. A gente não tem notícia de nada que aconteceu desde que ele foi sequestrado no dia 10 de outubro”.
Conscientização
Juliana afirma que cresceu com medo de farda, mas também com as histórias do senso de humor de Honestino. “Minha mãe contou histórias como, por exemplo, que ele dormia no chão se preparando para o dia em que fosse preso. Ele andava com os olhos fechados porque sabia que tirariam os óculos dele”. Honestino tinha 10 graus de miopia. A filha diz que não tem esperança de receber algum tipo de resposta sobre o que aconteceu ou a respeito do paradeiro de corpo. Mas espera que a visibilidade dessa história ajude a diminuir a ausência de informações de outras violências no período da ditadura.
O sobrinho, Mateus Guimarães, acredita que a história não diz respeito apenas à família dele. “A injustiça em um lugar é uma ameaça à justiça em todo lugar. Essa lacuna diz respeito à democracia e ao povo brasileiro”. Entre as homenagens prestadas a Honestino Guimarães, uma ponte na cidade de Brasília, que se chamava Costa e Silva (que foi presidente de 1967 a 1969), ganhou o nome do líder estudantil no ano passado. “Foi um marco muito simbólico. Mas acho que seria muito relevante que a mudança do nome desse origem a um processo de educação e conscientização”.
História nebulosa
O historiador Daniel Faria, professor da Universidade de Brasília e que fez parte da Comissão da Verdade, lembra que Honestino passou a se destacar como liderança em 1968 em Brasília, época de grandes manifestações de rua contra a ditadura. Nesse ano, ele era presidente da Federação dos Estudantes Universitários de Brasília (Feub) e já ligado à União Nacional dos Estudantes (UNE).
“Ele foi julgado e condenado por crimes contra a segurança nacional a 16 anos de prisão por causa de participação nas passeatas”. Ficou preso até as vésperas da decretação do AI-5 e conseguiu um habeas corpus. Depois entrou para a clandestinidade e saiu de Brasília em 1969. Foi para São Paulo, depois para o Rio de Janeiro até 1973, quando foi definitivamente preso. “Ele era presidente da UNE e ligado a um movimento de resistência chamado Ação Popular”. Em 1968, a poucos meses de se formar, foi expulso da UnB.
“O desaparecimento é algo extremamente nebuloso. Existem várias hipóteses sobre o que fizeram com ele depois que foi capturado”. O professor explica que, no final dos anos 1970, a história de Honestino volta à tona no contexto de uma discussão sobre anistia. Depois, durante as manifestações por Diretas Já, na década de 1980.
“Em 1995, finalmente o Estado Brasileiro reconheceu que Honestino morreu”. No mesmo clima do país, com a formação da Comissão Nacional da Verdade, a UnB criou o próprio grupo para recolher documentos sobre violações de direitos humanos, como no caso de Honestino. Além dele, foram considerados desaparecidos os estudantes Paulo de Tarso e Ieda Delgado. São mais de 60 mil páginas de documentos. Para Faria, é necessário explicar mais nas aulas o que foi a ditadura e que não está ligada apenas a militantes.
Gênio, sorridente e gigante
Mais que um militante, para o amigo Cláudio Almeida, hoje servidor público e economista aposentado, Honestino Guimarães, que ele chama pelo apelido de “Gui”, era uma pessoa genial. “Era uma pessoa muito alegre, comunicativa, brilhante e muito precoce. Quando fez o vestibular para a UnB, ele tinha 17 anos e foi o primeiro colocado. Eles se conheciam desde os tempos da escola de segundo grau, chamada Elefante Branco.
“Tivemos uma relação mais próxima, inclusive politicamente, porque eu já fazia parte do grupo Ação Popular”. A partir do que via no amigo, foi Almeida que o levou para o movimento, que não era de luta armada.
Um dos momentos mais tensos, conforme Almeida, foi em 29 de agosto de 1968, quando havia um boato de invasão à UnB pelas forças policiais. Honestino perguntou ao amigo se sabia de algo. “Não percebia absolutamente nada. Fui assistir a uma aula de ciências políticas. Dentro de uns 10 ou 15 minutos, começamos a ouvir gritos avisando que haviam prendido Honestino”. Aí, conforme recorda, todos saíram da sala de aula. Almeida foi preso também em um cenário de ataques com gás lacrimogêneo e tiros. “Eles começaram a atirar mesmo para matar”. Tanto que atingiram o estudante de engenharia Waldemar Alves da Silva Filho, que sobreviveu. “Em seguida, fomos presos, colocados em fila indiana e levados para uma quadra de basquete”. Almeida lembra que prisões de alunos e professores se tornaram comuns e que também foi torturado com choques elétricos e outras agressões físicas.
Depois de sair da prisão, o amigo recorda que Honestino chegou a se esconder no teto da universidade. Cláudio disse ao amigo que não tinha condições familiares e emocionais de seguir a luta de forma clandestina. Ele guarda as lembranças do Honestino, o baixinho loiro que era fanático pelo Vasco, por jogar futebol na praia e sorrir. “Ele era um amigo leal que se tornava gigante quando começava a falar”.
Conversa na igreja
Também da Ação Popular, o jornalista aposentado Pedro Oliveira, de 75 anos, lembra que entrou para o movimento depois de participar da Juventude Estudantil Católica, corrente progressista da igreja. Era estudante de ciências sociais quando entrou para o movimento estudantil.
“Os nossos encontros eram rápidos naqueles anos de 1968 e 1969. Não era como hoje que podíamos sair normalmente. A última vez em que me encontrei com ele foi perto da igreja Santa Ifigênia, em São Paulo. Eu andava no sentido horário e ele no sentido anti-horário. E conversamos sobre questões políticas”. Foi traumático para o amigo saber do desaparecimento. “Ele era um cara muito carismático”. Pedro recorda que também foi torturado em uma das prisões em São Paulo.
Outra companheira de luta de Honestino foi a então estudante de medicina Maria José Conceição. Ela tinha apenas 17 anos de idade quando foi recebida pelo veterano, já um líder estudantil.
“Ele me apresentava às pessoas como uma irmãzinha, uma maninha. Era muito assim, sorridente, feliz, carinhoso”. Ele inseriu a amiga no movimento estudantil e mudou a vida dela. “Fui presa política também”, diz a hoje ex-deputada distrital e federal Maninha.
Sem ódio
Esse aspecto carinhoso, inclusive, é que o sobrinho Mateus Guimarães tenta levar para a vida. Ele encontrou um relato do tio que, aos 21 anos, dizia que não odiava o torturador, mas o sistema que criou a violência. “É muito linda essa percepção que tinha”. Ele defende que ainda há tempo de pedir a consciência de qualquer pessoa que tenha alguma informação. “Às vezes, essas pessoas podem saber algo, que tenham peso na consciência por terem participado daquele momento e não ter feito nada”.
A filha Juliana gosta de saber das histórias do bom humor do pai, que seria parecido com o do filho dela, adolescente. “Eu cresci sempre com a presença dele. Eu tenho poucas fotos dele. A mais linda é uma em que ele está deitado no meu colo. Eu tinha três anos. É a foto mais linda assim da minha vida. Ele está aqui comigo sempre”.