SÃO PAULO, SP E SÃO VICENTE, SP (FOLHAPRESS) - Ações da Polícia Militar paulista terminaram com a morte de ao menos oito pessoas em São Vicente, Santos e Guarujá no mês de setembro de 2023. Nesse período, estava em andamento a segunda fase da Operação Escudo na Baixada Santista, desencadeada pela gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) após a morte de um sargento aposentado da PM em São Vicente e outros ataques contra policiais.
As vítimas identificadas são sete homens e uma mulher. Essa fase da operação teve início no dia 8 de setembro e foi encerrada no dia 1° de outubro, segundo a SSP (Secretaria da Segurança Pública). Ela acabou sendo ofuscada pelos 28 mortos da primeira fase da operação. Na soma das duas ações, o número de mortos chegou a 36.
Em nota, a Polícia Militar informou que todos os casos citados são investigados pela Corregedoria da instituição. Paralelamente, a Polícia Civil também apura as circunstâncias dos fatos, declarou a SSP.
A operadora de loja Yasmin Isabel Alves do Carmo, 22, foi morta com um tiro na nuca logo nas primeiras horas da ação em São Vicente, atingida por uma bala perdida durante um tiroteio na Vila Cascatinha. Única mulher entre as vítimas da operação, ela era mãe de três crianças -um bebê que hoje tem sete meses, um menino de 2 anos e outro de 7 anos.
No mesmo tiroteio, ao menos dois moradores ficaram feridos e uma criança de cinco anos foi atingida por um tiro de raspão na cabeça. Uma equipe do 2º Baep (Batalhão de Ações Especiais) passava pelo local. Eles disseram que um homem de 18 anos, que estava em uma bicicleta, disparou contra a viatura da PM, dando início ao tiroteio.
Um policial foi ferido durante o confronto. O suspeito foi atingido, depois socorrido e encaminhado à Santa Casa, segundo a SSP. Ele morreu três dias depois, por causa dos ferimentos do confronto.
Yasmin estava a caminho de casa quando foi alvejada. Ela ia se arrumar para a festa de aniversário de um ano de sua prima, segundo a família. Na rua havia crianças brincando e familiares sentados em cadeiras na calçada. A mãe de Yasmin tentou avisá-la sobre a chegada de policiais na rua, mas ela estava sem celular.
"Quando olhei pela janela, só vi o corpo dela caído", conta a mãe, Deise de Araújo, 44. Ela mora no segundo andar de uma casa a menos de cem metros do local da morte. Quatro meses depois do ocorrido, ela ainda evita sair da residência para não passar por ali e relembrar a cena.
Agora, se desdobra para cuidar dos três netos. "Os mais novos sentem a falta dela. Mas quem mais sofre é o mais velho, de sete anos, que entende mais o que aconteceu."
O padeiro Maurício Basílio Bezerra, 48, estava sentado a poucos metros de casa, ao lado de seu tio e de sua mulher, quando foi atingido na perna no mesmo tiroteio. "Quando eu ouvi minha mulher gritando 'é tiro', eu já estava no chão, já tinha sido atingido", ele diz.
Bezerra foi socorrido por um PM, que estancou o sangramento, e levado ao pronto-socorro por um amigo. Ficou três meses internado e hoje segue com a perna imobilizada, dependendo de uma cadeira de rodas e de muletas para se locomover. "Depois de tomar o tiro, eu me arrastei para o corredor da casa do meu tio e a bala continuou comendo", conta.
A SSP informou que o caso está sendo investigado e que aguarda a finalização de laudos periciais. A Corregedoria da PM acompanha, segundo a secretaria
Para a diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo, a ação que resultou na morte de Yasmin indica a falta de estratégia das operações Escudo.
"Mostra que são operações atabalhoadas. O policial não pode ser recebido a tiros, isso não é cabível em uma democracia, mas o policial precisa ter protocolos para agir. Quando há um tiroteio matando outras pessoas, matando uma mulher inocente, mostra um pouco esse ânimo de reação a qualquer custo, que não nos parece mais estratégico".
BOLETINS NARRAM MORTES APÓS FUGAS E AMEAÇAS A PMS
Nas semanas seguintes, outras quatro pessoas foram mortas em São Vicente. Os boletins de ocorrência, feitos com base no depoimento dos policiais, narram situações de confronto.
Os registros dessas mortes estão em uma tabela elaborada pela Polícia Civil após pedido da reportagem via Lei de Acesso à Informação. Entre as oito mortes da segunda fase da Escudo, sete ocorreram em vias públicas e apenas uma dentro de casa. É o único caso em que a secretaria não divulgou os dados do local e da vítima.
Isso ocorreu dois dias após a morte de Yasmin. Segundo a PM, um homem de 23 anos foi baleado por policiais militares após supostamente reagir a uma abordagem. O boletim narra que os policiais realizavam patrulhamento pelo bairro Vila Jóquei Clube, em São Vicente, quando avistaram um suspeito com uma arma.
Ele não teria obedecido a ordem de parada e fugiu. Após subir no telhado de várias casas durante a perseguição, teria sido encontrado dentro de uma residência. De acordo com a SSP, morreu ao apontar a arma para os policiais. Um revólver calibre 38, que estaria com o suspeito, foi apreendido.
Na primeira fase da Escudo, vários casos que envolveram mortes dentro de barracos ou casas motivaram denúncias de assassinato e tortura, que foram relatados por moradores e familiares.
Um desses casos motivou a primeira denúncia do Ministério Público contra dois policiais que participaram da operação, que são acusados de ter atirado contra um homem que não oferecia perigo, em Guarujá. Promotores afirmam que os PMs também tentaram encobrir imagens das câmeras corporais e forjar provas contra o homem morto.
Em São Vicente, um jovem de 19 anos também foi morto no bairro Jóquei Clube na noite de 18 de setembro. PMs afirmaram que estavam patrulhando a região quando viram um grupo de pessoas "que agiam de maneira suspeita", e constataram que era um ponto de venda de drogas.
Um deles teria sacado uma arma da cintura ao perceber a aproximação da PM, segundo o relato dos policiais, que afirmam ter reagido a esse movimento. Polícia Civil confirmou a morte do suspeito no hospital.
Na madrugada do dia seguinte, um homem de 32 anos foi morto no Conjunto Residencial Humaitá. Os PMs afirmam que avistaram um indivíduo em atitude suspeita tentando ligar uma moto. Ao abordá-lo, ainda segundo a versão policial, ele teria sacado uma arma e apontado em direção aos PMs, que teriam reagido.
Outro homem morreu no mesmo dia na rua Trezentos e Sete, no Parque Bitaru. A SSP afirma que um grupo de suspeitos fugiu em direção à mata após ver a viatura, atirando contra os policiais.
No revide, um suspeito foi atingido e morreu. A polícia afirma que apreendeu uma metralhadora e uma mochila com drogas.
Carolina Ricardo apontou que o conceito de Operação Escudo virou uma grande bandeira da gestão, que usa esse tipo de operação para lidar em casos em que há mortes de policiais, mas que o método utilizado é preocupante. "Na minha leitura, no fundo, é uma forma de operação vingança. Eu até entendo que é preciso restabelecer a autoridade quando policiais são atacados, mas a lógica das operações Escudo é uma lógica de vingança".
GUARUJÁ E SANTOS TIVERAM DUAS MORTES EM SETEMBRO
A polícia relatou um caso semelhante no dia 12 de setembro, quando um homem de 25 anos morreu na avenida Assis Chateaubriand, em Guarujá. Segundo o boletim de ocorrência, cinco homens fugiram quando a equipe policial se aproximou. Os policiais dizem que perseguiram e alcançaram os suspeitos, mas se tornaram alvo de tiros e revidaram.
Na ação, foram apreendidos um rádio comunicador e 91 porções de drogas.
Cinco dias depois, um homem de 31 anos foi morto na rua Vergueiro Steidel, no bairro Aparecida, em Santos. Durante a madrugada, segundo a SSP, policiais realizavam buscas na região à procura de um suspeito de matar a própria mãe.
O homem teria atacado pessoas que apontaram sua localização quando a viatura da PM se aproximou. Uma pessoa foi esfaqueada, e um policial atirou e matou o agressor.
NOVAS MORTES
Na última sexta-feira, uma nova Operação Escudo no litoral -a terceira em seis meses- teve início após a morte de um soldado da PM em Cubatão. Ao menos dois homens foram mortos pela polícia desde então.
Há pouco mais de uma semana, o governo Tarcísio também deu início a quatro outras operações Escudo após tentativas de latrocínio e um assalto a residência, contra cinco policiais. Uma soldado da PM foi morta. As operações foram desencadeadas em Santo André, em Guarulhos, na região sul de São Paulo e em Piracicaba, no interior.
Questionada se houve policiais afastados, imagens de câmeras corporais e se há investigações instauradas para todos os casos mencionados na reportagem, a SSP não respondeu até a publicação deste texto.
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