SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Programado há 35 anos, um sistema nacional de monitoramento da qualidade do ar do Brasil nunca foi realizado. Composto por estações automáticas que coletam e analisam periodicamente partículas e substâncias dispersas no ar que se respira, o projeto é considerado fundamental para políticas de controle da poluição, cujos impactos na saúde reúnem cada vez mais evidências.
A OMS (Organização Mundial da Saúde) estima que todo ano quase 7 milhões de pessoas morram prematuramente por conta da exposição a poluentes presentes no ar, tais como material particulado inalável, fumaça, dióxido de nitrogênio, monóxido de carbono, ozônio, dióxido de enxofre e chumbo.
Em 1989, a resolução 5 do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente), órgão deliberativo do MMA (Ministério do Meio Ambiente), criou o Pronar (Programa Nacional de Controle da Poluição do Ar) e determinou a implantação da rede de monitoramento da qualidade do ar em "médio prazo". Passados 35 anos, a rede ainda não existe.
O MMA afirma que subsidiará a instalação nos estados mais críticos, que têm dificuldades de orçamento e qualidade do ar mais preocupante.
Apenas 13 dos 26 estados do país têm alguma estação automática de monitoramento do ar, e mais de 80% das 245 unidades do equipamento disponíveis no país estão concentradas no Sudeste. Menos da metade dos 49 municípios brasileiros com mais de 500 mil habitantes possuem essas estações de inspeção de poluentes no ar.
"Sem uma rede de monitoramento, a gente não sabe qual é a qualidade do ar que está respirando, e essa é uma informação básica tanto para estudos científicos como para a gestão ambiental", explica o engenheiro químico David Tsai, responsável por relatório recém-lançado pelo Iema (Instituto de Energia e Meio Ambiente) que quantificou o déficit de estações de monitoramento de ar no Brasil.
Para isso, o Iema aplicou ao caso brasileiro as regulamentações vigentes nos Estados Unidos e na União Europeia, considerada mais rigorosa. Ambas levam em consideração o tamanho da população de cada metrópole e o histórico de níveis de poluição de cada localidade para determinar a dimensão da rede e o número mínimo de estações.
Segundo critérios norte-americanos, o Brasil precisa ter novas 49 estações automáticas de monitoramento da qualidade do ar distribuídas nas regiões metropolitanas para ter uma rede nacional capaz de prover informações para políticas ambientais e de saúde. Já de acordo com critérios da UE, seriam necessárias 138 estações, 22 delas só para o estado de São Paulo.
O cálculo do investimento necessário feito pelo Iema, considerando os dois cenários e o valor dos equipamentos segundo um pregão feito pelo MMA em 2020, ficou entre R$ 16 milhões e R$ 49 milhões. O valor é considerado baixo para uma política pública de tal relevância, mas o ministério nunca teve uma dotação orçamentária para implementação da rede nacional.
Procurado, o MMA informou, em nota, que o estabelecimento de redes de monitoramento é uma competência estadual e que cabe à pasta subsidiar essa atuação. Uma consulta feita pelo ministério às unidades federativas sobre o não cumprimento das normas que tratam da qualidade do ar colheu relatos de falta de recursos, de pessoal e de conhecimento técnico.
Adalberto Maluf, titular desde 2022 da Secretaria Nacional do Meio Ambiente Urbano e Qualidade Ambiental -a responsável pela qualidade do ar, além de toda a pauta de resíduos urbanos--, diz que o projeto da rede é prioritário, mas acena com seu orçamento previsto para 2024: R$ 20,9 milhões, dos quais R$ 6,8 milhões foram convertidos em emendas parlamentares, restando pouco mais de R$ 14 milhões.
"Colocamos no planejamento estratégico a compra de três estações para o Centro-Oeste", afirma ele, sobre a região com menor cobertura e maiores indícios de piora na qualidade do ar nos últimos anos. "A qualidade do ar piorou no país no arco do desmatamento, que inclui o sul do Amazonas e o norte do Centro-Oeste."
Para Maluf, "as secretarias estaduais do Meio Ambiente, em geral, não são prestigiadas". "Servem para trocas políticas e recebem, em média, 0,4% do orçamento do seu estado. "Por isso, vamos financiar as estações", completa. Para levar esse plano adiante, ele propõe o uso de recursos de conversão de multas do Ibama.
Em novembro do ano passado, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) validou R$ 29 bilhões em multas do Ibama que haviam sido suspensas pelo governo Bolsonaro. Cobradas, elas entram no programa de conversão de multas.
Para Tsai, existe ainda uma questão de fundo que é a falta de conhecimento sobre o tema. "As pessoas não entendem o ar limpo como um direito e não sabem que temos diversas medidas de controle da poluição que podem resultar em um ar mais limpo", aponta.
"O licenciamento ambiental da indústria, por exemplo, deve considerar a carga de poluente que aquele local suporta sem infringir os parâmetros de qualidade do ar. Mas isso não necessariamente está sendo feito de forma adequada."
O cientista explica que os parâmetros brasileiros de classificação da qualidade do ar estão defasados em relação àqueles estabelecidos pela OMS. Quanto maior a concentração de poluentes no ar, pior a sua qualidade e maior a necessidade de medidas de controle dos grandes emissores: veículos, indústria e queimadas.
Diante do acúmulo de evidências sobre os danos da poluição à saúde humana, a OMS atualizou em 2021 os parâmetros que qualificam o ar como bom, regular, ruim, muito ruim ou péssimo.
A mudança fez o STF (Supremo Tribunal Federal) determinar, em 2022, que o Conama atualizasse em dois anos sua resolução sobre o tema (491/2018) de modo a alinhá-la aos novos parâmetros da OMS. O prazo vence em setembro deste ano.
"Neste momento, estamos discutindo essas atualizações com dificuldade porque precisamos de novas metas, que devem impor restrições aos emissores de poluentes", afirma o ambientalista Tobias Vieira, representante da sociedade civil do Sudeste no Conama.
Segundo José Leonidas Bellem de Lima, procurador regional da República, coordenador do Grupo de Trabalho qualidade do ar, do Ministério Público Federal, a morosidade é fruto de conflitos de interesses. "Existem problemas por trás do descaso", diz ele, que já foi conselheiro do Conama.
"Todas as licenças ambientais de fontes de poluição fixa não podem ser dadas quando os índices de qualidade do ar estão saturados e ruins para a saúde. O setor econômico não quer isso [revisão dos parâmetros e criação de rede nacional de monitoramento] porque os obriga a tomar providências para minorar a emissão de poluentes", opina.
"E o governo não quer isso também porque tem um interesse arrecadador [de impostos] e porque é o tipo de medida que pode não ter bom retorno político."
Além disso, na sua avaliação, a rede nacional demandaria gastos do poder público com a compra dos equipamentos, sua manutenção e a contratação de pessoal para o trabalho. "As três esferas de poder resistem, e o setor econômico fica feliz com isso."
Pressões contrárias à revisão dos parâmetros de qualidade do ar, por exemplo, são relatadas dentro do próprio Conama. Em um desses episódios, a CNI (Confederação Nacional da Indústria), que integra o comitê responsável por receber os processos do Conama, teria dificultado o trâmite da revisão.
Procurada, a CNI disse, em nota, que entende a importância do tema e que propôs que ele fosse pautado em reunião, mas "destacou que o processo não tinha sido instruído devidamente, pois carecia de análise de impacto regulatório", que dá "segurança jurídica para o setor produtivo".
Uma nota técnica do MMA (1.463/2023) havia dado parecer favorável à dispensa de análise de impacto regulatório para o trâmite da revisão dos parâmetros de qualidade do ar.
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