SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Quatro anos após o vídeo que ficou conhecido como o da "mamadeira de piroca" viralizar e se tornar um símbolo das fake news da eleição 2018, dois perfis que estiveram na raiz da sua disseminação continuam a espalhar notícias falsas contra o PT.

Na filmagem da mamadeira, um narrador com voz masculina segurava o objeto com um bico em formato de pênis e dizia: "Essa aqui é a mamadeira distribuída na creche para o seu filho com a desculpa de combater homofobia. O PT e o Haddad pregam isso para o seu filho, seu filho de cinco, seis anos."

À época, as imagens evidenciaram quão descontrolada estava a campanha de desinformação. Agora, as postagens dos dois perfis que ajudaram a disseminá-la mostram que os problemas persistem.

A reportagem encontrou os endereços dos dois perfis na internet nas representações feitas em 2018 ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) por Fernando Haddad (PT) e pela coligação da sua candidatura à Presidência.

A primeira representação narrava que, no dia 25 de setembro de 2018, às 23h16, um perfil com o nome de Jean Amaral havia publicado o vídeo e que, em apenas três dias, o conteúdo havia tido mais de 3,7 milhões de visualizações e mais de 95 mil compartilhamentos.

No dia 30 de setembro, o ministro Sérgio Banhos, em decisão liminar, determinou a remoção do post e exigiu que o Facebook fornecesse os dados cadastrais do dono do perfil.

A disseminação do conteúdo não parou. Quatro dias depois, o ministro deu outra liminar atendendo um novo pedido da coligação. A representação agora mostrava que o mesmo vídeo havia tido 4,9 milhões de visualizações e 96 mil compartilhamentos em outro perfil, com nome de Lourdes Silva.

Àquela altura, o projeto Comprova, que reúne veículos de imprensa na checagem de conteúdos, já havia publicado matéria sobre o caso, mostrando que a denúncia da mamadeira era falsa.

O objeto com bico em forma de pênis existia, sim, mas não em creches. Era vendido para o público adulto em sex shops.

Após a derrota de Haddad na eleição, o caso foi encerrado no TSE.

Em decisão com data de 17 de dezembro de 2018, o ministro Jorge Mussi concluiu que, com o término do período eleitoral, não era mais atribuição do tribunal nem determinar a retirada de conteúdo da internet nem analisar pedido de direito de resposta.

Afirmou ainda que os dois perfis mencionados na ação tinham sido identificados pelo Facebook, e que tanto Jean Amaral de Oliveira como Maria de Lourdes da Silva já tinham recebido citação por via postal.

Três anos e oito meses depois, uma rápida visita ao perfil de Jean mostra que ele segue na ativa nas redes sociais, continua a apoiar o presidente Jair Bolsonaro (PL) e não deixou de postar notícias falsas.

Diversas de suas publicações receberam selos como "foto adulterada" ou "informação falsa". Abaixo dos posts, a plataforma colocou títulos de checagens de agências que desmentiram a publicação.

Entre elas, "Banqueiros não apoiam Lula em troca de revogação do Pix", "É falso que seguranças de Lula foram flagrados com armas proibidas no Brasil" e "É montagem vídeo em que Lula diz que ?demônio está tomando conta de seu corpo?".

O perfil de Lourdes, moradora do Recife, na faixa dos 60 anos, que posta mensagens pró-Bolsonaro, também tem notícias com a mesma classificação.

A reportagem não conseguiu contato com ela, mas localizou o número de telefone de Jean na página do Facebook que ele administra com o nome de Intervencionistas Bolsonarianos da Bahia.

Por telefone, ele se identificou como corretor de seguros e imóveis na Bahia e confirmou ter recebido uma intimação do TSE sobre o caso.

Jean, de 57 anos, disse à reportagem ter recebido o vídeo da "mamadeira de piroca" em 2018 pelo WhatsApp, de alguém de quem não se lembra. Ele afirma que acreditou que o conteúdo era verdadeiro porque antes já tinha circulado uma cartilha ensinando crianças de 5 anos a fazer sexo ?mas isso também não é verdade.

As duas fake news fazem parte da narrativa criada em torno do chamado "kit gay", que a campanha Bolsonaro tentou colar na imagem de Haddad em 2018.

O kit que existiu de fato foi um material anti-homofobia que chegou a ser analisado pelo Ministério da Educação na gestão Haddad, com vídeos explicativos sobre sexualidade voltados a adolescentes, mas que foi suspenso pela então presidente Dilma Rousseff (PT) em 2011 após pressão da bancada evangélica.

Já o kit que os bolsonaristas divulgaram, e que não existiu, teria conteúdos que ensinariam crianças a fazer sexo e estimulariam a homossexualidade.

Para João Brant, coordenador da plataforma Desinformante, mesmo que parte das pessoas possa ter entendido o vídeo da mamadeira como piada, a fake news ainda assim teve sua importância para a campanha.

"Fake news buscam mensagens com capacidade de mobilização do seu público. O quanto as pessoas acreditam é menos relevante do que a capacidade de ativar a militância no momento", afirma.

Para Victor Giusti, pesquisador da FGV Direito-Rio e autor do livro "O TSE e o ?kit gay?" (Editora Dialética), o tribunal eleitoral deixou de aproveitar o caso para ser mais específico, dando parâmetros de quando um conteúdo falso deve ser removido das redes. Sem isso, afirma, persistem decisões conflitantes da Corte.

"Em alguns casos, por exemplo, determina-se a remoção de publicações que são montagens. Já em outros, considera-se que podem ficar porque são facilmente identificáveis", diz.

Além disso, ao considerar que a representação da coligação de Haddad havia perdido o objeto com o fim do período eleitoral, no limite o tribunal abre margem para que o conteúdo removido seja reabilitado, diz ele.

VIÉS DE CONFIRMAÇÃO

O caso da "mamadeira de piroca" tornou-se notório em parte porque a partir dele é fácil explicar conceitos da psicologia social aplicados às redes sociais, como o pânico moral e o viés de confirmação.

O pânico moral consiste na associação de um grupo, episódio ou indivíduo a uma ameaça a valores sociais.

O viés de confirmação é a predisposição para acreditar em conteúdos que estejam de acordo com as suas crenças pessoais ?o que explica a difícil missão do combate às fakes news.

Ao ser indagado se conhecia Lourdes, que também viralizou a mamadeira, Jean disse que não e aproveitou para também isentá-la de culpa. "Não produzimos vídeo nenhum, só fizemos compartilhar. Quem compartilhou não compartilhou por maldade, foi por nojo", declarou.

Jean afirma que só soube que o vídeo da mamadeira era fake quando recebeu a notificação do TSE, mas mesmo essa convicção durou pouco. "Anos depois, eu soube que não era fake news, era verdade, só não tiveram tempo de colocar em prática", diz, novamente sem evidências, citando como fonte um conhecido do Ceará.

Em sua decisão sobre o caso, o ministro do TSE Jorge Mussi chegou a escrever que Haddad poderia pleitear à Justiça comum reparação por eventual ofensa à honra e à imagem.

Mas Jean diz não ter recebido nenhuma outra notificação além daquela do TSE. O corretor afirma participar de 68 grupos no Facebook, 34 dos quais como administrador.

Ocasionalmente, ele posta que teve o perfil temporariamente suspenso por causa do teor de alguma publicação. Em uma dessas vezes, voltou à ativa chamando a plataforma de "foicebuque".

O corretor vê os bloqueios do perfil e os alertas de conteúdo falso nas publicações não como um avanço no combate à desinformação, mas como tentativa de censura ?em vão.

"Estão tentando nos calar, mas quanto mais você bate numa massa de pão, mais ela cresce", afirma.


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