SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A certa altura do debate, o sociólogo Brasílio Sallum Jr sintetizou com todas as letras o que seus colegas haviam insinuado de maneiras diferentes: "Uma reeleição de Jair Bolsonaro [PL] produziria uma guinada com muitas possibilidades de romper o regime democrático".
Era uma das mesas mais aguardadas no primeiro dia do 46º encontro da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais), que começou nesta quarta-feira (12) e vai até o dia 19.
Sallum, que é professor da USP, fazia comentários gerais sobre as três exposições que antecederam sua fala, todas elas centradas no seguinte tema: "Democracia e eleições no Brasil - para onde vamos?".
O mote também inspirou um livro de mesmo nome, organizado por Magna Inácio e Vanessa Elias de Oliveira, disponível para download gratuito no site da editora Hucitec. Quatro de seus autores -incluindo o próprio Sallum-- participaram do debate.
Em condições normais, talvez examinassem os programas de governo dos candidatos, analisassem a correlação de forças no Congresso e especulassem sobre os avanços que o país poderia experimentar nos próximos anos.
Neste 2022, contudo, a discussão foi sobre o receio de retrocessos -não só em áreas específicas do direito ou na pauta de costumes, mas também, e principalmente, na própria democracia.
Primeiro a falar, o cientista político Cláudio Couto, professor da FGV, apontou como Bolsonaro prendeu a Justiça em uma armadilha. "Ao ser tantas vezes provocado", diz ele, "o Judiciário toma a aparência de um jogador do jogo político, e não apenas de um árbitro."
Couto tem em mente os atritos constantes entre o presidente da República e dois órgãos em particular do Judiciário: o STF (Supremo Tribunal Federal) e o TSE (Tribunal Superior Eleitoral).
Com uma comparação futebolística, diz que, quando o juiz tem protagonismo, é porque alguma coisa está errada; pode ser que o próprio juiz queira aparecer demais e atrapalhe a partida, mas também acontece de a conduta desleal dos jogadores exigir intervenções frequentes do árbitro.
Para Couto, Bolsonaro é um jogador desse segundo tipo. Ou seja, na sua visão, não é que o TSE e o STF estejam extrapolando suas funções; estão, na verdade, agindo em defesa das regras do jogo, mas, como precisam fazer isso repetidas vezes, acabam por oferecer munição aos ataques de que são alvo.
Ele lembra que uma noção central das democracias é o sistema de freios e contrapesos, em que um dos Poderes modera o outro, de modo que os três funcionem em equilíbrio. Seu receio é que, no Brasil, o rompimento dessa harmonia provoque prejuízos duradouros.
"A atuação do Poder Executivo produz a necessidade de uma atuação do Judiciário incessante como freio, de modo que se produz uma exaustão desse freio", afirma.
Olhando para a frente, as perspectivas não melhoram em caso de reeleição, porque ele vê um centrão mais radicalizado e mais associado às pautas do presidente, inclusive nas propostas de manietar o Judiciário.
Estava falando sobre as declarações recentes de Bolsonaro e de seu vice, Hamilton Mourão, sobre ampliar o número de ministros do STF. Mourão, que se elegeu senador pelo Republicanos-RS, considera que o Supremo precisa passar por reformas amplas.
Mas essa não é a única maneira pela qual o bolsonarismo pretende tomar conta do Judiciário. O sociólogo Ricardo Mariano, professor da USP, expôs no debate como o controle da Justiça está nos planos do ativismo político evangélico.
Não só a Justiça. De acordo com Mariano, o ativismo evangélico também investe na ocupação do Congresso, na revisão de currículos escolares e na defesa de que crenças e valores religiosos devem substituir as bases racionais da argumentação pública, por exemplo.
Trata-se de movimento de longo prazo e expansão constante, numa reação à Constituição de 1988, aos movimentos sociais, à agenda feminista e LGBTQIA+, entre outros temas considerados progressistas.
"Esse ativismo continuará a produzir efeitos políticos fraturantes a longo prazo, em prejuízo de partidos, movimentos sociais, minorias, inclusive após o passamento do bolsonarismo", diz Mariano.
Inclusive porque, diz ele, o ativismo político evangélico é cada vez mais próximo do bolsonarismo, não só por um toma lá dá cá existente entre os grupos, mas por uma afinidade ideológica, fundada sobretudo nas posições intransigentes com a esquerda.
Até nas fake news eles se encontram. Mariano menciona não só o suposto kit gay de 2011 mas também teorias conspiratórias espalhadas desde os anos 1980, na época da Constituinte e da eleição de 1989.
Nada disso parece efêmero. Para a cientista Marta Arretche, professora da USP, é o oposto.
"Contrariamente às nossas expectativas, o que essa eleição mostrou é a existência de uma extrema direita muito mais organizada, com muito mais densidade eleitoral, com muito mais capacidade de organização e mobilização do que nós prevíamos."
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