SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Os últimos anos foram marcados pela emergência da questão indígena como um debate urgente no Brasil. Por um lado, pela contundência e aceleração das ameaças aos povos originários brasileiros, por outro, pelo movimento de resistência que se articulou de maneira inédita no país, dos acampamentos a eleições, dos tribunais superiores aos internacionais.
O assunto esteve no debate político de maneira ainda mais intensa nos últimos dias em decorrência da declaração de emergência em saúde na terra indígena Yanomami, que fica nos estados de Roraima e Amazonas.
Recém-criado pelo governo Lula (PT), o Ministério dos Povos Indígenas afirma que 99 crianças morreram em 2022 devido aos impactos do garimpo ilegal na terra. Mais da metade das crianças está desnutrida, segundo o Ministério Público Federal. Um inquérito foi aberto para apurar as responsabilidades.
Em todo o país, segundo dados de 2010 do IBGE, há 305 povos originários, num universo bastante diverso. Em sua maioria, essas pessoas habitam as 1.290 terras indígenas (TIs) do país que estão em diferentes estágios de reconhecimento jurídico.
Dessas terras, 417 foram homologadas, segundo a Funai (Fundação Nacional do Índio). Isso significa que seus processos de demarcação foram submetidos à Presidência da República e oficializados via decreto. Mais de 800 outros territórios foram reivindicados ou já estão em processo de regularização, segundo dados do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) e da Funai.
Eleito com a promessa de não demarcar "um centímetro quadrado" de terra indígena, Jair Bolsonaro (PL) barrou todas as demarcações em andamento nos seus quatro anos de governo.
O ritmo dessas demarcações já vinha reduzindo nos últimos mandatos presidenciais, mas Bolsonaro é o primeiro a zerar tanto as demarcações definitivas quando as chamadas declarações de posse, que antecedem as homologações.
"A emergência ambiental e a crise climática estão atreladas à questão indígena porque são esses povos indígenas os principais responsáveis por proteger as florestas e sua biodiversidade de madeireiros, garimpeiros e outros exploradores econômicos que vêm na natureza uma forma de ganhar dinheiro", diz Maurício Terena, advogado na Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil). "Os povos indígenas veem a natureza e sua biodiversidade como parte de sua existência, de seu corpo."
A baixa institucionalização das terras indígenas no Brasil e a retórica tóxica do ex-chefe do Executivo foram acompanhadas da escalada de ameaças a esses territórios e seus habitantes.
Entre elas, está a invasão dessas áreas por garimpeiros, madeireiros, grileiros, pescadores e caçadores, em práticas ilegais que promovem uma espiral de vulnerabilidade, violência e morte, agravada ainda mais pela precária condução da pandemia da Covid-19.
Para esse cenário contribuíram ainda o processo de desmonte da Funai e as propostas para anistiar e incentivar a grilagem de terras (PLs 2633 e 510), liberar garimpo e usinas hidrelétricas em terras indígenas (PL 191) e criar um marco temporal para a demarcação de terras indígenas (PL 490).
Duas semanas antes do final do governo Bolsonaro, foi editada uma instrução normativa sobre exploração de madeira em terras indígenas. A DPU (Defensoria Pública da União) emitiu nota técnica considerando a medida ilegal e recomendando sua suspensão imediata.
Contra essas ameaças, surgiu uma forte articulação de associações de povos indígenas.
Ativistas mobilizaram centenas de indígenas em acampamentos e vigílias diante da Câmara e do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2021, enquanto outros militantes indígenas, advogados, ingressaram com ações no tribunal (ADPF 709) e denúncias contra Bolsonaro na Comissão Interamericana de Direitos Humanos e no Tribunal Penal Internacional por crimes contra a humanidade e genocídio.
O Brasil é o país mais letal da última década para defensores da terra e do meio ambiente e concentra 20% dos assassinatos desses ativistas nos últimos dez anos. Em 2021, o país foi palco de 342 ataques letais a ativistas. Um a cada três era indígena ou afrodescendente. E 85% desses ataques letais ocorreram na região da Amazônia Legal, segundo dados da organização britânica Global Witness.
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Quais são os principais desafios do Brasil em relação a seus povos indígenas?
Alguns desafios são fundadores da própria nação, como aqueles vinculados à ideia de que indígenas não são sujeitos de direitos como outros humanos.
Essa noção, expressa no comentário de Bolsonaro de que "cada vez mais, o índio é um ser humano igual a nós", está na base de parte das violações sofridas por esses povos originários, seja na paralisação das demarcações de terras, seja no estímulo à atividade garimpeira, madeireira, pecuária e de grileiros, que ameaçam os territórios indígenas e seus habitantes, desprotegidos pelas forças de segurança do Estado.
Segundo estudo do MapBiomas, de 2010 a 2020, a área ocupada pelo garimpo dentro de terras indígenas cresceu 495%. Mais de 91% da área garimpeira brasileira está concentrada na Amazônia. E a expansão do narcotráfico na região da Amazônia Legal, território brasileiro que engloba a região Norte, Mato Grosso e boa parte do Maranhão, formou uma rede de dinâmicas criminais que levou ao aumento de 55% nos assassinatos na região entre 2020 e 2021.
Esse contexto incrementa a vulnerabilidade e o risco à vida de indígenas, inclusive daqueles considerados isolados, que oficialmente não foram contatados pela Funai ou que optaram por não ter esse contato.
O Estado brasileiro reconhece 114 registros da presença de índios isolados, hoje alvo de políticas de incentivo ao contato forçado tanto por meio do PL 430 como pela lei 14.021, sancionada em julho de 2020 e que permite a permanência de missionários em terras de povos isolados, desde que com aval de equipes médicas.
Os povos indígenas sofrem também com a falta de assistência em saúde, o que tem agravado casos de desnutrição, verminoses e outras doenças, além da falta de medicamentos.
Como esses povos têm sido afetados pela violência e por mercados ilícitos?
O fluxo de pessoas ligadas a atividades criminosas aos territórios indígenas carrega consigo violência e doenças que afetam esses grupos. Segundo o Cimi, os três primeiros anos do governo Bolsonaro tiveram uma média (157 casos) de assassinatos de indígenas 30% maior que a média (121 casos) dos três anos que o antecederam.
A antropóloga Lúcia Helena Rangel e o missionário Roberto Antonio Liebgott descreveram no relatório "Violência contra os Povos Indígenas do Brasil", lançado pelo Cimi em agosto, com dados de 2021, algumas das violências que sujeitam esses grupos: "meninas estupradas, meninos violentados, bebidas e alimentos envenenados, ataques às aldeias, incêndios em Casas de Reza e corpos dilacerados".
O documento registra 355 casos de violência contra pessoas indígenas em 2021, maior número registrado desde 2013, quando o método de contagem dos casos foi alterado. Em 2020, haviam sido catalogados 304 casos do tipo. Crianças são particularmente afetadas neste cenário.
Por que a demarcação de terras é importante para os indígenas?
A centralidade das demarcações está relacionada à garantia de direitos dos povos indígenas na preservação de sua identidade, cultura e modos de vida, que são profundamente ligados à terra.
A demarcação de terras é prevista no artigo 221 da Constituição de 1988, que diz: "São reconhecidos aos índios (...) os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens". Desde 2016, no entanto, o Brasil não demarca nenhuma terra indígena, num processo que sofreu paralisação total nos anos de governo de Jair Bolsonaro.
"A gente entende que a ausência de demarcação foi um comando da Presidência da República que fez explodir o desmatamento e o garimpo em terras indígenas nos últimos anos", aponta Terena.
Para ele, sem as terras, fica prejudicada a dignidade dos povos indígenas. "Precisamos a todo momento reafirmar que esse é um comando Constitucional e quando a União não o faz, ela está violando direitos fundamentais e a Constituição."
O governo federal sob Bolsonaro também instituiu a Instrução Normativa 09/2020, que liberou a certificação de propriedades privadas sobre terras indígenas não homologadas, fragilizando ainda mais esse direito constitucional, também ameaçado nos anos recentes pela tese do marco temporal, barrada em alguns estados por ações do Ministério Público Federal.
O que é marco temporal?
Segundo a tese do marco temporal, indígenas só têm direito à terra se conseguirem comprovar a ocupação do território no momento da promulgação da Constituição, em outubro de 1988. Esse parâmetro de reconhecimento surgiu com um parecer do governo Michel Temer (MDB) em 2017, e ganhou corpo durante o governo Bolsonaro.
A tese ignora a herança de expulsões e de extermínios desde os tempos do Brasil colônia e vem sendo debatida no âmbito do STF, tendo sido refutada pelo relator do processo, ministro Edson Fachin. O julgamento está suspenso.
Como a Funai tem atuado nesse contexto?
Desde o início de seu mandato, Bolsonaro esvaziou a Funai, reduzindo pessoal e orçamento. Somente 4 de cada 10 cargos do órgão estavam ocupados ao fim do mandato. A Funai teve o menor quadro de pessoal permanente desde 2008. Um adicional de 600 trabalhadores temporários foi contratado apenas após ordem do Supremo.
O dossiê "Fundação Anti-indígena: um retrato da Funai sob o governo Bolsonaro", publicado em 2022, traz relatos de intimidação aos funcionários por meio de processos administrativos e criminais contra servidores, entre outras medidas.
Não bastasse o esvaziamento, o governo Bolsonaro operou a militarização da Funai. Das 39 coordenações regionais da fundação, segundo o relatório, somente em 2 os chefes titulares eram servidores do órgão. Em 27 delas, os escolhidos eram de fora do quadro da Funai, incluindo membros das Forças Armadas e policiais militares e federais.
Como as TIs estão ligadas à preservação de biomas?
As terras indígenas vêm garantindo proteção aos biomas brasileiros nas últimas três décadas. Somente 1,6% do desmatamento registrado no período ocorreu nessas áreas -que, segundo a Funai, correspondem a 12% do território nacional. Por outro lado, 68% da perda de vegetação nativa ocorreu em áreas privadas, segundo dados do MapBiomas.
"Para nós tudo, planeta Terra é um só. E é muito importante não tirar ouro nem pedras preciosas, não poluir nem envenenar rios, não matar peixe", disse o xamã e líder yanomami Davi Kopenawa em entrevista à Folha. "A palavra do branco é que a terra é patrimônio. Mas ela é patrimônio do universo e precisa ser preservada, não só para mim ou para os povos indígenas, mas para todo mundo."
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