TOULOUSE, FRANÇA (FOLHAPRESS) - Um zumbido no ouvido esquerdo persegue o operário aposentado José Vicente Correa dia e noite. Aos 86 anos, o barulho impertinente não só é um incômodo, mas também uma lembrança dos dias que ele tenta, em vão, esquecer. E para os quais ele hoje busca reparação na Justiça.

Foi em 29 de janeiro de 1970 que a casa onde viviam ele, sua mulher, seus dois filhos e sua mãe foi invadida por homens armados. Fazia três dias que a família dividia o domicílio de dois cômodos no bairro de Pirituba, zona norte de São Paulo, com Carlos Alberto Savério, conhecido como Adilson.

Correa o havia conhecido em reuniões do movimento sindical em fábricas de Suzano, na Grande São Paulo, onde vivia e trabalhava. "Sem greve, não tinha aumento de jeito nenhum", justifica ele.

Quando perdeu o emprego em Suzano, e conseguiu vaga numa fábrica de papel em São Paulo, foi Savério quem o ajudou a encontrar a casa em que se instalou com a família em Pirituba.

"Numa tarde, depois de uma reunião na fábrica de papel, o rapaz da greve [Savério] me disse que não tinha como voltar para casa. Falei que ele poderia ficar conosco", afirma.

Nascido na pequena Jambeiro, no Vale do Paraíba (SP), Correa perdeu o pai ainda criança, e a família perdeu tudo. Sem moradia, aos oito anos de idade, ele e a mãe passaram dois anos errando entre a caridade alheia, os asilos para pobres e as casas das famílias onde a mãe trabalhava como empregada doméstica.

"Saía da escola sem saber onde ia dormir e fiquei marcado por isso. Cresci com muita dó de quem não tem onde passar a noite", conta ele, que parou de estudar no segundo ano do ensino fundamental para iniciar o trabalho numa fábrica de vidros aos dez anos.

Naquele janeiro de 1970, em Pirituba, Savério passou a noite dormindo no chão da cozinha da casa da família Correa. Disse que uma amiga iria buscá-lo no dia seguinte.

A amiga não apareceu, e Savério acabou ficando outra noite e, então, mais uma. "A casa era pequena, e minha esposa, Lourdes, se incomodou. Avisei que não daria mais para ele ficar por lá", lembra. "Mas foi bem naquela noite que tudo aconteceu."

Durante a madrugada, Correa ouviu um barulho à porta. Levantou da cama e diz ter se surpreendido ao encontrar Savério na sala já com uma arma na mão. Pegou um revólver antigo que mantinha em casa e que diz nunca ter usado até então. Achou que eram ladrões. Disparou um tiro de alerta para o alto. Aos gritos de "polícia", começaram a atirar para dentro de sua casa.

"Atiraram para matar, mas não pegou. Levei um tiro de raspão na cabeça, que arrancou esse pedaço da minha orelha, ó", conta ele, tocando uma falha na parte alta da orelha direita. "E se matassem as crianças? E se matassem minha mãe? Nosso senhor Jesus Cristo guardou."

Sandro, seu filho mais novo, tinha dez anos, mas se lembra de detalhes daquela madrugada. "A pólvora dos tiros caía no meu braço e levantava bolhas", relata.

"Quando consegui sair da casa, vi meu pai sentado no meio fio, algemado e de pijamas. Ele, minha mãe e o rapaz foram levados. Para onde? Por quê? A gente não estava entendendo nada."

Os homens que haviam se identificado como policiais, mesmo à paisana, integravam a temível Operação Bandeirantes (Oban), aparato repressivo do Estado, criado pelo Exército e financiado por empresários, que manteve um centro de tortura na 36ª Delegacia de Polícia, no bairro do Paraíso, zona sul de São Paulo.

Foi para lá que Correa, Lourdes e Savério foram levados para um processo registrado na Secretaria de Segurança Pública como de "averiguação de terrorismo".

"Eu era um dos mais velhos presos ali. O resto era tudo moço novo", conta ele, que tinha 33 anos.

Na prática, tal averiguação consistiu na submissão de Correa a sessões brutais de castigos físicos e torturas psicológicas ao longo de dias, entre as dependências da Oban e, em seguida, do Departamento de Ordem Política e Social (Dops).

Ele não sabe precisar por quantos dias foi torturado, mas relata em detalhes os maus-tratos sofridos nas mãos de policiais e de militares que lhe faziam perguntas às quais não sabia responder.

"Eu lutava para cuidar da família. Não entendia nada de política. Não tinha tempo nem de pensar nisso", diz. "Eu não entreguei ninguém, nem poderia, porque eu não sabia de nada. Ia morrer sem mentir."

Correa conta que levou muitos choques nos ouvidos, além de socos, pontapés e cabeçadas. "Em uma das vezes, em vez de pôr o arame ao redor da minha orelha, enfiaram o fio dentro dos meus ouvidos. Eles estavam doidos e, na pressa, erraram", explica. "Mas eu não podia reclamar senão era soco na cara na hora", lembra.

Com o choque, seu ouvido esquerdo tampou. De volta à cela, Correia ficou deitado, desacordado e machucado. Ao se levantar, notou que o chão debaixo do seu ouvido estava cheio de sangue.

"Eu senti um barulho que até hoje eu sinto... Um barulho que não passa nunca. Que nunca passou", relata, com a voz embargada. "Às vezes, eu não aguento e vou no banheiro chorar", desabafa, enquanto as lágrimas descem o seu rosto.

Nos porões do Dops, diz, os suplícios foram ainda mais selvagens. "Eu vivia desmaiado de tanto apanhar. Era clava na cabeça, pontapé quando estava caído no chão... Chegaram a jogar um sofá em cima de mim", conta ele. "Eu não sabia nada do que me perguntavam. Não podia falar."

Nos episódios mais brutais, Correa se lembra de ver, entre manchas escuras que reduziam seu campo de visão, um médico que o examinava sob o olhar atento de militares e de policiais.

"Acho que eles desconfiavam de que eu já estivesse morto", explica. "Todo dia eu achava que ia morrer e não morria. Eu pedia a Deus para dar vida para mim."

A Oban anunciou, naquele janeiro de 1970, ter desarticulado a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares) depois da prisão de 24 pessoas -entre elas, a ex-presidente Dilma Rousseff, com quem Lourdes dividiu cela durante os sete dias em que esteve detida na sede clandestina da Oban.

Em nota enviada à Folha de S.Paulo, a ex-presidente Dilma não informou se teve ou não qualquer contato com Correa à época, mas afirmou que ele "jamais participou da organização VAR-Palmares".

"Ainda assim, foi preso e torturado barbaramente, nas dependências da Operação Bandeirantes (Oban) e do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), em São Paulo, sem que jamais tenha se insurgido contra a ditadura."

Transferido para o presídio Tiradentes, onde diz não ter sofrido torturas, Correa só prestou seu primeiro depoimento oficial mais de um mês depois de sua prisão, em 6 de março de 1970. Em 10 de agosto, ele se tornou réu de um processo baseado no inquérito policial sobre a VAR-Palmares.

A denúncia oferecida pelo Ministério Público Militar afirma que Correa "recebeu o codinome de Miguel" e que fora "orientado por Dilma Vana Linhares [Dilma Rousseff]". O documento afirma ainda que, ao ser preso, reagiu à bala, classificando-o de "figura de realce e perigosa".

Ele nega que algum dia tenha recebido a alcunha de Miguel.

"Nunca dei liberdade para ninguém me dar apelido", diz. "Mas eles [policiais e militares] são muito mentirosos. Mandaram eu assinar um papel dizendo que eu tinha ido até o Rio de Janeiro fazer uma reunião de não sei o quê. Eles me obrigaram a assinar", afirma. "Eu não tinha opção e assinei."

Em 8 de outubro de 1970, Correa foi interrogado perante o Conselho Especial de Justiça, na 2ª Circunscrição Judiciária Militar, quando esclareceu que conheceu algumas das pessoas então apontadas como pertencentes à VAR-Palmares, mas afirmou que não sabia que eles pertenciam à organização e que jamais praticou qualquer ação militarizada.

"Contei tudo direitinho. Que não sabia de nada, mas que apanhei demais, que fui surrado. Que ficava num porão desmaiado dia e noite", diz. "Expliquei que só atirei naquela madrugada porque não tinha ninguém fardado, e achei que eram ladrões."

O Conselho Especial de Justiça, em decisão unânime, relaxou a prisão de Correa.

"Os coronéis falaram que eu estava livre, que deveria ir embora naquele mesmo dia, e que estava de parabéns." Na saída do presídio, no entanto, policiais disseram que ficariam "de olho" nele.

Quando chegou em casa, quase nove meses depois da sua prisão, Lourdes estava passando roupa enquanto os filhos esperavam na janela. "Foi tanta alegria, euforia e choro que a mãe esqueceu do ferro e queimou toda a roupa", ri Sandro, emocionado com essa memória.

Em liberdade, os dias de tortura e prisão passaram a assombrar Correa. "Qualquer vendedor que aparecia na porta de casa eu achava que era gente da polícia que vinha me espionar", conta.

"Também não me envolvi nunca mais com sindicato. Não quis mais mexer com essas coisas", explica. "Fiquei com medo de tudo e passei 53 anos sem falar sobre o que tinha acontecido comigo."

Depois de anos de insistência do filho, perturbado pelo zumbido que lhe persegue ao pé do ouvido e caminhando com dificuldade, e o auxílio de uma bengala, Correa decidiu finalmente contar sua história em busca de reparação por parte do Estado.

Sandro levou o pai para a Defensoria Pública do Estado de São Paulo em Jaú, onde Correa vive hoje. Na fila da triagem, ele foi atendido pelo defensor Bruno Del Preti, que estranhou o relato, de início, e começou um trabalho de pesquisa sobre o caso.

"Encontrei mais de 650 documentos sobre tudo o que aconteceu com ele, numa análise documental que me tirou o sono por alguns meses. Mas conseguimos demonstrar o que ele contou com informações do Arquivo Público de São Paulo", conta Del Preti.

Em junho de 2022, ele protocolou uma ação de indenização por ato da ditadura militar no valor de R$ 200 mil. A Defensoria entrou também com um pedido liminar para que Correa receba um salário mínimo por mês até que haja uma decisão final sobre o caso.

"Queremos o reconhecimento do Estado de que ele teve seus direitos violados nesse contexto de ditadura e garantir a ele o direito de reparação", explica Del Preti. "Mas, como ele já tem 86 anos e problemas de saúde, temos grande receio de ele não ver esse processo concluído para receber a indenização."

A preocupação tem respaldo na morosidade da Justiça brasileira. A ação de indenização aguarda há sete meses uma audiência de oitiva das testemunhas. Já a liminar foi indeferida em primeira instância pela juíza Paula Maria Castro Ribeiro Bressan, da 1ª Vara Cível de Jaú. O recurso ao Tribunal de Justiça de São Paulo está em análise desde outubro passado pelo relator do caso, o desembargador Leonel Carlos da Costa.

Na nota emitida sobre o caso, Dilma afirma ser "evidente que José Vicente foi uma vítima do Estado, que o manteve preso ilegalmente, baseado em suposta acusação de terrorismo". E conclui: "Que se faça justiça!"


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