SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Jair Bolsonaro (PL) é detestável, mas é preferível tirá-lo do poder pelo voto do que pela via judicial, afirma o cientista político Fernando Limongi.

Professor da USP e da FGV, ele diz ver indícios de que o Judiciário está agindo de olho na consequência política no caso do ex-presidente, da mesma forma que vem fazendo com todos os mandatários desde o mensalão.

Autor do recém lançado "Operação Impeachment - Dilma Rousseff e o Brasil da Lava Jato" (ed. Todavia), Limongi aponta a interferência em especial no caso da queda da petista e no caso da prisão e inelegibilidade de Lula (PT).

O cientista político elogia o presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), ministro Alexandre de Moraes, pela atuação que classifica como decisiva para a garantia da eleição de 2022.

Mas diz ver com preocupação o que considera uma crescente partidarização do Supremo Tribunal Federal com a nomeação de ministros alinhados ao presidente da República da vez.

O TSE retoma nesta sexta-feira (30) o julgamento da ação contra Bolsonaro pela acusação de abuso de poder na reunião com embaixadores na qual ele atacou o sistema eleitoral. O placar, por enquanto, está em 3 a 1 pela declaração de inelegibilidade.

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PERGUNTA - Como vê a possibilidade de, novamente, um político popular ser impedido de disputar a eleição pelo Judiciário?

FERNANDO LIMONGI - Se um político cometeu um crime, foi julgado e condenado, e este crime prevê que ele perca os direitos políticos, ok, o Judiciário está cumprindo a sua função. Mas, se o político está sendo processado porque se pretende que ele perca o mandato, aí não é ok. Acho que, neste caso, estamos mais próximos da segunda afirmação do que da primeira.

P - Quais são os indícios de que isso está acontecendo?

FL - Obviamente houve um uso indevido de uma investigação da Polícia Federal que Bolsonaro cita na conversa com os embaixadores. Ali tem um crime, mas não é assim que a coisa está sendo justificada. Essa mesma consequência poderia ocorrer normalmente, por exemplo, por causa das joias [recebidas da Arábia Saudita e barradas pela Receita]. Ali há muito mais evidência de um crime cometido que deve acarretar como consequência a perda de um mandato.

Me parece que o Judiciário brasileiro tem a tendência ultimamente a olhar quem está sendo processado, qual será a consequência e particularizar ao máximo a sua ação, em vez de pensar no aspecto geral e na jurisprudência que se cria.

P - Mas o que indica que há uma particularização neste julgamento?

FL - A própria pressa com que esse processo está correndo, a discussão em torno dos poderes que o ministro Moraes vem exercendo, a decisão anterior relativa ao [Deltan] Dallagnol. Não tenho a menor simpatia quer pelo Bolsonaro, quer pelo Dallagnol. Me parece que no caso do Dallagnol, sobretudo, houve uma vontade de pegá-lo.

Se for para retirar os direitos políticos do Bolsonaro, tem que ser algo muito sólido e bem fundamentado para que não fique uma pecha de que foi uma vingança política ou uma partidarização do Judiciário. O Judiciário não está tomando esse cuidado. Não tomou durante toda a Lava Jato, que culminou no impeachment, nem na prisão do Lula e não está tomando de novo. Isso acaba tirando a legitimidade desse tipo de ação.

P - E como vê a questão do ponto de vista da interferência na possibilidade de escolha do eleitor?

FL - O verdadeiro soberano é o eleitor, não o Judiciário. No caso do Lula, claramente o Judiciário se achou no direito e no dever de impedir que ele voltasse à Presidência. Considerou que era um risco e precisava proteger o povo. Só que na democracia esse é o papel do eleitor. No caso do Bolsonaro, se ele comete um crime, ele é como todo cidadão diante da lei, mas não se pode fazer um julgamento por motivações políticas. É preciso muito cuidado para que não passe a ideia de que o Judiciário está sendo instrumentalizado. É preferível ter o Bolsonaro num mercado eleitoral e ele ser derrotado eleitoralmente do que juízes tomarem essa posição.

P - Qual o paralelo possível com o caso do Lula e quais as diferenças?

FL - Cada processo é um processo, mas a filosofia por trás parece ser a mesma, como se o Judiciário fosse o poder moderador e devesse assumir o papel que é do eleitor. Acho que a Lei da Ficha Limpa também passa por esse equívoco.

P - Como avalia que o Judiciário chegou a essa situação?

FL - De um modo geral, há uma tendência mundial, que se repete nos Estados Unidos e na Europa, de reforço do poder das cortes supremas e da sua capacidade de intervir. Ao mesmo tempo, tem uma desvalorização dos cargos eletivos, tanto do Parlamento quanto do Executivo. E, no Brasil, essa tendência geral exacerbou a partir do mensalão.

A Constituição dá muito poder ao Supremo, e o Supremo age por meio de juízes individuais em casos particulares. E, mais do que isso, não decide finalmente as coisas. É o exemplo de quando Gilmar Mendes proibiu a posse do Lula como ministro [de Dilma na Casa Civil] por liminar. Depois que a Dilma sofre o impeachment, o Supremo não decide sobre o caso, não decide se o presidente tem total autonomia ou não para nomear os seus ministros ou se não tem.

No caso do Bolsonaro, também se está agindo no caso particular e não normatizando o geral. É preciso deixar muito claro qual crime ele cometeu. Todo mundo que falar contra as urnas não vai poder ser mais eleito? O PSDB falou, o PSDB entrou com um pedido de auditoria das urnas em 2014.

P - Por outro lado, o TSE fixou um precedente com o caso do Fernando Francischini, que fez um ataque às urnas com desinformação e foi cassado por isso. Não seria desmoralizador agir contra um deputado estadual e não fazer o mesmo com Bolsonaro?

FL - É preciso deixar claro qual foi a regra que foi estabelecida e em que termos o Bolsonaro violou essa regra. É claro que o que o Bolsonaro fez é um absurdo. Mas é preciso aquilatar que ele teve quase 50% dos votos. Não se faz algo ilegal com o Francischini também, mas o TSE tem que saber que está lidando com um caso de outra envergadura e deve pensar na sua responsabilidade e na consequência disso.

P - Nessa visão de que o Judiciário está avançando além de suas prerrogativas, vê alguma possibilidade de mudar essa rota?

FL - Acho que é muito pequena dados os precedentes que o próprio Judiciário criou e a falta de colegialidade do STF. O Supremo age pensando sempre nas consequências políticas, achando que tem um papel político a desempenhar desde o mensalão. A partidarização do Supremo chegou ao ponto máximo com a atuação de um ministro como Gilmar Mendes, com as nomeações do período Bolsonaro e agora com a indicação do [Cristiano] Zanin.

P - Com Bolsonaro inelegível, acha que é possível ter uma opção de direita que esteja mais em harmonia com as instituições?

FL - Eu não gosto do Bolsonaro, eu acho ele péssimo, não consigo entender como alguém vota nele. Mas ele é um ator político com muito apoio. Falar ?vamos fazer de conta que não o Bolsonaro não existe? não vai resolver o problema. Não adianta tirar o sofá da sala.

P - Como vê a atuação do ministro Alexandre de Moraes?

FL - Todo mundo deve reconhecer que o desempenho do Moraes foi essencial para manter a legitimidade do resultado eleitoral. Ele ali agiu como presidente do TSE e aplicou as regras, se preservando muito habilmente de várias chicanas que o grupo do Bolsonaro tentou. Um exemplo foi o caso das blitze em ônibus no Nordeste que a Polícia Rodoviária Federal fez no dia da eleição. Dependendo da decisão que o Moraes tomasse, poderia gerar um problema. Se prorrogasse o prazo de votação, por exemplo, o Bolsonaro poderia judicializar a eleição. Então, agindo em um campo minado, ele conseguiu levar a bom termo a eleição sem cair em armadilhas.

O que se deve prezar é a questão institucional, que o Supremo volte a usar com moderação seu poder e a pensar o seu papel institucional e não o papel de cada um dos 11 membros.

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RAIO-X

FERNANDO LIMONGI, 65

Professor da FGV e professor aposentado do departamento de ciência política da USP. Doutor em ciência política pela Universidade de Chicago. Autor de "Operação Impeachment" (Todavia, 2023).


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