SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A inclusão da investigação sobre as joias dadas ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no inquérito das milícias digitais no STF (Supremo Tribunal Federal), sob relatoria do ministro Alexandre de Moraes, gera questionamentos sobre a competência da corte na apuração.

Especialistas em direito penal destacam que, devido ao sigilo, não há conhecimento sobre quais são os eventuais elementos de conexão entre as condutas dos alvos ou provas, o que justificaria a condução dessa apuração no STF.

O ex-presidente Bolsonaro não tem mais foro perante a corte, e o caso das joias era investigado desde março de forma sigilosa pelo Ministério Público Federal em Guarulhos, a pedido da Receita Federal, e pela Polícia Federal em São Paulo. Na terça-feira (15), a Vara Federal local enviou o caso ao STF.

Além da falta de transparência, parte dos especialistas avalia haver concentração excessiva de poderes no STF.

Segundo eles, na decisão de Moraes em que autorizou a recente operação da PF contra aliados de Bolsonaro, a relação entre a investigação das joias e os ataques ao tribunal apurados no inquérito das milícias digitais não está clara.

Com a mudança de governo e do clima de ofensivas contra o STF, há uma análise de que a corte deve repensar o andamento das investigações e enviar casos não relacionados ao tribunal à primeira instância.

Uma parcela dos especialistas avalia ainda que, ao não fazer isso, o Supremo passa a ter sua legitimidade questionada por não seguir o princípio constitucional do juiz natural (de não escolher o que julgar ou por quem ser julgado), limitando assim a possibilidade de defesa dos acusados.

O caso das joias teve novos desdobramentos na quinta-feira (17). Moraes acolheu o pedido da Polícia Federal e determinou a quebra de sigilo fiscal e bancário de Bolsonaro e da ex-primeira-dama Michelle. O ex-presidente nega ter cometido crime.

O advogado do ex-ajudante de ordens Mauro Cid, Cezar Bittencourt, chegou a afirmar que Cid iria confessar ter negociado a venda das joias a mando de Bolsonaro, mas posteriormente recuou na declaração.

Os casos em que a competência do tribunal ocorre por conexão entre as provas estão previstos no Código de Processo Penal. Entre eles, quando infrações são cometidas ao mesmo tempo, por várias pessoas reunidas, ou em concurso, em diferentes momentos, e quando a prova de uma infração afeta a de outro delito.

A PGR (Procuradoria-Geral da República) havia solicitado o declínio de competência para que as investigações continuassem sob responsabilidade da 6ª Vara Federal de Guarulhos. Ao autorizar a operação do dia 11, Moraes afirmou que há alvos já investigados no STF, o que "evidencia a conexão probatória com diversos inquéritos".

O inquérito das milícias digitais foi aberto por Moraes em julho de 2021, após o arquivamento, a pedido da PGR, da apuração sobre os atos antidemocráticos no Supremo. À época, foi um drible do STF na PGR.

Antes, o STF já havia sido alvo de críticas por instaurar, em 2019, o chamado inquérito das fake news, validado pela corte no ano seguinte diante da ofensiva bolsonarista.

Em maio deste ano, Moraes utilizou uma interpretação ampliada entre fake news e vacina para incluir no inquérito o caso da suposta fraude no cartão de vacinação de Bolsonaro, que resultou na prisão de Cid --mantida até hoje.

No caso das joias, o fato de já existir uma investigação contra Mauro Cid em andamento na corte não seria suficiente para atrair a competência do tribunal para o tema, dizem especialistas.

Luisa Ferreira, professora de direito penal da FGV São Paulo, afirma que as regras de conexão só devem ser usadas excepcionalmente e afirma que o caso das joias parece ser semelhante à discussão sobre ampliação de competência na época da Lava Jato, com o então juiz Sergio Moro.

"O Supremo precisa ter legitimidade e agir de acordo com as regras do processo. A corte teve um protagonismo muito importante no final do governo Bolsonaro para garantir a lisura das eleições, assim como o TSE [Tribunal Superior Eleitoral], mas é preocupante quando parece agir de forma semelhante com o que aconteceu na Lava Jato."

O advogado criminalista Celso Villardi, também professor da FGV, afirma que os inquéritos do STF foram fundamentais para proteger a democracia, mas que "é chegada a hora de reconhecer que não estamos mais sob ataque que justifique uma atuação com maior amplitude do Supremo".

Ele afirma não ver impedimento para que o tribunal aplique a própria jurisprudência e envie para a primeira instância casos que não sejam relacionados à corte.

O presidente do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), Renato Vieira, destaca que a investigação sobre o crime de peculato não se confunde com crimes contra o Estado de Direito ou de milícias digitais e defende que o caso das joias deveria ter sido encaminhado para São Paulo, onde já era investigado.

Para a advogada criminalista e diretora do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) Paula Sion, por não estar mais no cargo, Bolsonaro deveria ser julgado pela Justiça comum, salvo em caso de comprovação de que uma organização criminosa foi criada para cometer os delitos.

Já Helena Regina Lobo, advogada e professora de direito penal da USP, afirma que a decisão sobre o caso das joias está em harmonia com o posicionamento que o Supremo vem tomando desde a criação do inquérito das fake news. Ela afirma que há indicativos de um cenário maior no caso das joias.

"É possível que a investigação tenha por objeto o crime de organização criminosa, que exige, na fase de investigação, a comprovação de estabilidade e hierarquia entre seus membros, como a divisão de tarefas. Nesse cenário, faria sentido deixar todas essas frentes reunidas", diz.

Apesar das críticas, a maioria dos especialistas entende que, mesmo se o STF reconhecer no futuro que não tinha competência para investigar o caso das joias, por se tratar da fase de inquérito, a jurisprudência indica que não deve haver prejuízo para a apuração.

O único caminho para questionar o andamento do caso na corte seria um recurso para submeter as decisões de Moraes ao plenário. Porém especialistas avaliam que a tendência é que, se houver questionamentos, a corte respalde o ministro.


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