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Dia Mundial da Alimenta??o
::: 4/10/2002

No pr?ximo dia 16 de outubro comemora-se, em todo o mundo, o Dia Mundial da Alimenta??o. Aproveitando a data, ? importante refletirmos sobre a situa??o alimentar no mundo atual e, especialmente, no Brasil.

Entramos no novo mil?nio com 1,2 bilh?o de pessoas em todo o planeta (incluindo mais de 500 milh?es de crian?as) vivendo abaixo da linha de pobreza, definida pela ONU (Organiza??o das Na?es Unidas) como sendo pessoas que vivem com menos de 1 d?lar/dia, o que seria o m?nimo necess?rio para a sobreviv?ncia. Segundo o estudioso norte-americano Phillip Harten, de cada 100 pessoas no mundo, 13 passam fome diariamente.

Em se tratando de Brasil, os dados s?o igualmente assustadores. O Mapa da Fome, elaborado pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econ?mica Aplicada) em 1993, revelou a fome e a indig?ncia de 32 milh?es de brasileiros (algo pr?ximo ? popula??o total do Canad? ou da Argentina). Nesse estudo, considerou-se como indigente a pessoa cuja renda familiar mensal correspondesse, no m?nimo, ao valor de aquisi??o de uma cesta b?sica de alimentos que atendesse aos requerimentos nutricionais recomendados pela FAO/ONU e OMS (Organiza??o Mundial da Sa?de). O Nordeste brasileiro apresentou o mais alto ?ndice, com 40% de sua popula??o em estado de indig?ncia.

No meio rural a situa??o ? ainda mais grave, com 50% da popula??o abaixo da linha da pobreza. Se pensarmos que 32% da popula??o brasileira est? no campo, podemos visualizar que um grande contingente populacional encontra-se em situa??o de mis?ria e fome no meio rural. ? justamente a? que encontramos os mais altos ?ndices de desnutri??o infantil. Situa??o ainda mais cr?tica ? a dos trabalhadores rurais sem terra. Estima-se que, no pa?s, existam 4,8 milh?es de fam?lias sem terra para viver e trabalhar. H? tamb?m a situa??o dos pequenos agricultores que, mesmo possuindo terra, n?o disp?em das condi?es m?nimas necess?rias para gerar o sustendo de suas fam?lias.

Um dos mais importantes indicadores da qualidade de vida em um pa?s ? a taxa de mortalidade nos menores de 5 anos, considerada como o n?mero de crian?as que morrem antes de completar 5 anos de idade para cada mil nascidos vivos. Embora seja considerado como a 8? economia do mundo, o Brasil ocupava, em 1999, a 89? posi??o no ranking da mortalidade dos menores de 5 anos (40 crian?as por mil nascidos vivos), posi??o dividida com o Vietn?.

Para se ter uma id?ia do que isso significa, o 1? lugar ? ocupado por Serra Leoa (316 crian?as/mil nascidos vivos) e a ?ltima posi??o (187?) ? dividida pelos pa?ses: Jap?o, Noruega, Cingapura, Su?cia e Su??a (4 crian?as/ mil nascidos vivos). Acima de n?s est?o: M?xico, na 97? posi??o, Paraguai, na 98?, Argentina, na 123? e Uruguai, na 139? posi??o. Por curiosidade, Estados Unidos e Cuba dividem a mesma 158? posi??o.

Na identifica??o das causas da mortalidade infantil, temos que lembrar que sa?de e nutri??o s?o fatores inter-dependentes, ou seja, s? se tem sa?de atrav?s de uma boa alimenta??o e, ao mesmo tempo, ? necess?rio um organismo saud?vel para aproveitar todos os elementos que uma boa alimenta??o oferece. Assim, quando se analisa as causas da mortalidade entre os menores de 5 anos, dif?cil ? se identificar qual a porcentagem de mortes devida ? desnutri??o e/ou a car?ncias nutricionais.

Entre as principais causas de morte na inf?ncia, despontam as doen?as infecciosas e parasit?rias e as doen?as do aparelho respirat?rio, entre outras causas externas onde a desnutri??o aparece. Normalmente, as causas de morte devido a defici?ncias nutricionais s? s?o reconhecidas quando a desnutri??o ? identificada como principal causa que levou ao ?bito, o que pode revelar a exist?ncia de um registro sub-estimado, no pa?s, da rela??o entre o ?bito infantil e o comprometimento nutricional.

Mas a maior causa de morte de crian?as no Brasil, principalmente de beb?s, continua sendo a diarr?ia, provocada por doen?as intestinais geralmente fruto do deficiente acesso ? ?gua tratada e rede de esgoto adequada, situa??o vivida por um grande n?mero de pessoas em todo o pa?s.

Uma taxa de 72% de nossa popula??o tem acesso a instala?es adequadas de saneamento b?sico; desse total, 81% est? na cidade e apenas 32% no meio rural. No nosso vizinho Uruguai, 93% da popula??o tem acesso ao saneamento b?sico, independente de estar na zona urbana ou rural. Em melhor situa??o est? o Paraguai, que d? cobertura em saneamento a 95% de sua popula??o (rural e urbana).

Conforme j? dito, a desnutri??o infantil no Brasil alcan?a os n?veis mais altos no meio rural, embora se encontrem ?ndices tamb?m elevados nos bols?es de mis?ria e nas periferias dos grandes centros urbanos. Os estudos nessa ?rea t?m revelado, constantemente, uma grande disparidade regional. Enquanto nos estados do sul encontram-se ?ndices de desnutri??o semelhantes aos dos pa?ses desenvolvidos, nas regi?es Norte e Nordeste esses ?ndices se comparam aos dos pa?ses mais pobres do mundo. Enquanto isso, nas regi?es Sudeste e Centro-Oeste, os ?ndices de desnutri??o infantil se assemelham aos dos pa?ses em desenvolvimento, onde h? n?veis m?dios ou altos de riqueza e acesso relativo aos servi?os b?sicos (?gua, esgoto, educa??o e sa?de).

Segundo dados da UNICEF de 1999, 6% das crian?as brasileiras menores de 5 anos apresentam baixo peso e 11% sofrem de nanismo moderado ou grave, ou seja, apresentam d?ficits acentuados de crescimento. O acesso limitado aos g?neros aliment?cios b?sicos ? a principal causa dessa situa??o, o que ? agravado por condi?es inadequadas de vida. A chamada desnutri??o proteico-cal?rica significa um consumo de alimentos abaixo das necessidades cal?ricas, quando a pouca prote?na ingerida passa a ser consumida para produ??o de energia e n?o para as suas fun?es espec?ficas. Com isso, o desenvolvimento do organismo ? interrompido ou prejudicado, uma vez que n?o h? prote?na dispon?vel para promover o crescimento, nem mesmo calorias suficientes para garantir as demandas energ?ticas decorrentes desse processo.

Al?m do grande d?ficit cal?rico que atinge grande parte da popula??o brasileira (consumo em calorias inferior ?s necessidades energ?ticas do indiv?duo), temos hoje, no pa?s, graves defici?ncias nutricionais espec?ficas, como a car?ncia de ferro, iodo, c?lcio e vitamina A, que atingem principalmente as crian?as.

As defici?ncias de c?lcio e ferro s?o devidas principalmente ao alto custo dos alimentos mais ricos nesses nutrientes, leite e derivados para o c?lcio, e carnes e v?sceras para o ferro. ? grande o n?mero de crian?as que apresentam raquitismo em todo o pa?s, gerado por um consumo muito baixo de alimentos ricos nesse nutriente. Preju?zos ao crescimento freq?entemente ocorrem em fun??o de um consumo insuficiente de c?lcio, quando a oferta de leite e derivados ? crian?a ? muito baixa, principalmente ap?s o desmame completo. Embora hortali?as de folha, como a couve e o almeir?o, entre outras, possam tamb?m fornecer quantidades razo?veis de c?lcio na alimenta??o di?ria, nem sempre esses alimentos est?o dispon?veis, sendo t?o raros quanto o leite em muitas regi?es do pa?s e para muitas fam?lias de baixa renda. Por isso, o incentivo ? produ??o de hortas caseiras pode ser uma a??o preventiva t?o importante para a sa?de das crian?as.

Com rela??o ? defici?ncia de ferro, apesar de o feij?o ser uma fonte relativamente boa desse nutriente e esse alimento ser parte importante do h?bito alimentar de nossa popula??o, a quantidade de ferro ingerida em uma alimenta??o ? base de arroz e feij?o normalmente ? insuficiente para fornecer a quantidade desse elemento necess?ria para promover o perfeito crescimento e desenvolvimento da crian?a, o que leva a um alto ?ndice de anemia por car?ncia de ferro no pa?s (estima-se que 40% de nossas crian?as sofram de anemia ferropriva), que pode ser agravada pelas infec?es recorrentes. Al?m de gerar uma baixa resist?ncia imunol?gica, a car?ncia de ferro prejudica o desenvolvimento cognitivo, podendo levar a dificuldades no aprendizado.

Mulheres em idade f?rtil tamb?m s?o grandes v?timas da anemia no Brasil, o que pode levar a complica?es no per?odo da gesta??o e aumentar os riscos no parto. Basta citar que temos um dos mais altos ?ndices de mortalidade materna na Am?rica Latina. Programas sociais de baixo custo poderiam minimizar o problema, atrav?s de um acompanhamento adequado ?s gestantes e orienta??o alimentar espec?fica. O est?mulo ao aleitamento materno ? tamb?m uma a??o importante na preven??o da anemia em crian?as menores de 2 anos.

A hipovitaminose A ? ainda uma das principais causas de cegueira em crian?as em todo o mundo, e ? gerada, principalmente, por um consumo insuficiente de vegetais e frutas, embora as v?sceras animais possam se constituir tamb?m em boas fontes desse nutriente. No Brasil, essa car?ncia ocorre mais na regi?o Nordeste, principalmente no semi-?rido nordestino. A defici?ncia de vitamina A agrava o quadro da desnutri??o e da diarr?ia, assim como leva ? queda da resist?ncia imunol?gica.

A car?ncia de iodo ? comum no Brasil, uma vez que nosso solo ?, em geral, deficiente nesse nutriente. O acesso ao sal iodado ? uma medida essencial na preven??o dessa car?ncia nutricional.

Muitas alternativas t?m surgido para minimizar ou resolver o problema, como a utiliza??o de alimentos alternativos (como a multimistura) que, muitas vezes, podem ter algum efeito no combate a alguma car?ncia nutricional espec?fica (como a defici?ncia de c?lcio ou vitamina A), mas que n?o solucionam o problema do acesso aos alimentos b?sicos, o que deveria ser garantido a todas as camadas da popula??o brasileira. A desnutri??o s? pode ser combatida atrav?s de um consumo adequado de alimentos, em quantidade e qualidade suficientes para reverter o quadro da desnutri??o e garantir a retomada do perfeito desenvolvimento.

De fato, avan?amos muito nas ?ltimas d?cadas em se tratando da situa??o da inf?ncia no pa?s. Basta lembrar que, em 1960, a mortalidade dos menores de 5 anos era de 177 crian?as por mil nascidos vivos. Os ?ltimos estudos demogr?ficos e sociais mostraram uma queda acentuada da desnutri??o infantil nos ?ltimos quinze anos, embora ainda tenhamos ?ndices elevados em algumas regi?es do pa?s. Os planos econ?micos que geraram relativa estabilidade nos pre?os dos g?neros b?sicos, levaram a uma melhoria no padr?o alimentar de boa parcela da popula??o brasileira, refletindo na queda dos ?ndices de desnutri??o. Por?m, houve uma melhora no acesso aos g?neros de mais f?cil aquisi??o, com pre?os mais acess?veis, geralmente mais ricos em calorias e pobres em alguns nutrientes essenciais, o que n?o levou a melhorias substanciais nos ?ndices das car?ncias nutricionais.

Paralelamente, tem surgido um novo problema alimentar no pa?s, sentido por todas as camadas da popula??o, que ? aumento da obesidade, incluindo a obesidade infantil. Mudan?as nos h?bitos alimentares, com incorpora??o de novos alimentos mais cal?ricos em detrimentos de outros, t?m sido algumas das principais causas da eleva??o nos ?ndices de obesidade. O problema tem sido mais observado em mulheres das classes mais desfavorecidas, provavelmente em fun??o de um alto consumo de alimentos ricos em carboidratos e gorduras (arroz, farinhas, massas, p?es, biscoitos, frituras etc) e pobre nos demais nutrientes, e um baixo consumo de vegetais, frutas, leite e carnes, quase sempre em fun??o do pre?o dos mesmos. A obesidade leva uma maior predisposi??o a uma s?rie de doen?as, como as cardiovasculares e alguns tipos de c?ncer.

Esse fato mostra o quanto s?o necess?rias e urgentes medidas que facilitem e garantam o acesso aos diferentes tipos de alimentos a todos, o que levaria a uma melhora no padr?o alimentar de nossa popula??o e evitaria as graves defici?ncias nutricionais que ainda assolam o Brasil. Somos um pa?s com um potencial agr?cola invej?vel, terceiro maior exportador de produtos agr?colas no mundo, capaz de produzir alimentos em quantidade e qualidade suficiente para garantir uma nutri??o adequada a todos os seus habitantes. Infelizmente, apenas 13% das nossas terras est?o ocupadas com lavouras permanentes e tempor?rias, estando 51% das terras ocupadas com pastagens naturais e artificiais.

Finalizando, no momento de se comemorar o Dia Mundial da Alimenta??o, vale refletir sobre a situa??o do pa?s em que vivemos e sobre o que desejamos ser enquanto na??o. Para isso, vamos lembrar o conceito de Seguran?a Alimentar constru?do pelo grupo de estudos que elaborou importante documento sobre a situa??o alimentar no Brasil, apresentado na 1? Confer?ncia Nacional de Seguran?a Alimentar (Bras?lia, 1994):

"Seguran?a Alimentar significa garantir, a todos, condi?es de acesso a alimentos b?sicos de qualidade, em quantidade suficiente, de modo permanente e sem comprometer o acesso a outras necessidades, com base em pr?ticas alimentares saud?veis, contribuindo para uma exist?ncia digna, em um contexto de desenvolvimento integral da pessoa humana".

Documentos Consultados:
Situa??o Mundial da Inf?ncia ? Relat?rio da UNICEF ? 2001
Panorama Atual da Seguran?a Alimentar no Brasil ? Francisco Menezes/IBASE (Instituto Brasileiro de An?lises Sociais e Econ?micas) - 1998
Pesquisa Nacional sobre Demografia e Sa?de (PNDS) - 1996
Censo Agropecu?rio do IBGE ? 1996
Site visitado: http://www.ibase.org.br


Cristina Garcia Lopes
? nutricionista formada
pela Universidade Federal de Vi?osa.
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