José Anísio da Silva José Anísio da Silva 23/05/2014

Meu pai não era desse mundo

paiMeu pai não era desse mundo. Ele mesmo assim se definia. Questionava a forma de organização da sociedade, e por que não dizer das famílias? Tinha um quê de revolta contra o mundo, e não era só, porque, mesmo sem admitir, se colocava como "perseguido" pela Dona Maria, desde pequeno. É que não tolerava mesmo, qualquer tipo de injustiça. Daí talvez, se explica, mais do que nunca, sua inadequação aos tempos de hoje.Tem um caso, narrado por ele, que mostra bem esta realidade: quando criança, e sempre tem um assim, que se achava o valentão da turma. Para destroná-lo, juntou-se a outros colegas e colocaram o marmanjo no chão. Coisas de criança. Que desce cedo entende a mensagem de que a união faz a força. E esta mensagem (antiga e batida) serviu de base para o nosso crescimento na relação com as pessoas.

Nascido em Barão de Monte Alto, perto de Muriaé, desde cedo aprendeu a profissão de marceneiro do pai.

Como o pai, tornou-se craque na madeira. De móveis de encomenda aos poemas de artesanatos que fazia, ele passava o dia inteiro enfiado nos fundos de casa, serrando suas frustrações e enchendo seus dias de prazer, no cuidado com os pedaços de madeira. Que para ele, eram verdadeiros mastros de ouro. Em casa vivíamos o duelo entre o feijão e o sonho. A mãe, preocupada com o que comer, com as horas presentes, ele, o eterno artista, que se conformava com o que o dia oferecia, com o que se tinha, e muitas das vezes, a mesa estava cheia de lugares vazios sobre ela. Apesar de comerciante, ele era um bom comerciante para os outros, para si, não; para as suas produções não sabia colocar preço. Numa linguagem marxista, não tinha noção da mais-valia sobre a sua produção. Vendia a mercadoria por x e a mesma era vendida por 2x. Lucro? Nenhum. Essa parte do negócio irritava muito minha mãe. "Seu pai é um bobo, meu filho"!, não sabe valoriza o que faz. E era assim mesmo. Quantas vezes dava para os outros, aquilo que eles gostavam.

Meu pai não era desse mundo mesmo. Sustentou os filhos para estudar, com dificuldades financeiras. Sempre estudamos em escolas públicas, desde o antigo primário até o curso superior. No meu primeiro emprego, fora da cidade, mandava religiosamente, o que dispunha de dinheiro para ajudar na minha sobrevivência fora de casa.

Meu pai me marcou a alma: me passou valores humanos insubstituíveis e que não tem preço: a generosidade, a alegria de viver, a determinação, a simplicidade e o desapego ao mundo material das coisas, dos objetos e das marcas. Meu pai foi um mestre na arte de viver, diante da mesquinharia do mundo. De horários e convenções sociais, artificiais e mentirosas.

O tempo passa. A vida corre nas águas de um rio. Crescemos, nos tornamos adultos, constituímos família.

Com a proximidade de sua doença, voluntariamente, me aproximei mais dele. Cuidei. Cuidamos. Demos o que temos. Amor, presença física, palavras de fé, solidariedade. Demos a ele, o que ele nos ensinou. Como num grande e doloroso resgate de nossas relações familiares e espirituais, trocamos afeições, ansiedades, esperanças, frustrações, possibilidades, dias sim, dias não. Vivemos, enfim, uma bonita relação humana de pai e filho, de duas pessoas que se amam. O que aprendi desta relação humana? O amor é maior, mesmo com a morte dele. Mas é verdade também. Fiquei um pouco menor!


José Anísio da Silva
Assistente social, mestre em Serviço Social pela UFJF, especialista em Gerontologia pela FUMEC - Fundação Mineira de Educação e Cultura/BH e pela SBGG/MG - Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia de Minas Gerais. Participa ativamente do CMDI/JF - Conselho Municipal dos Direitos do Idoso de Juiz de Fora/MG.

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