Um filme brasileiro, seja l? o que isto for... Produ?es nacionais instigantes emplacam mais no exterior do que em seu pr?prio pa?s de origem

Nilson Alvarenga
Luzes da Cidade
20/04/2006

O cinema latino-americano tem conseguido recentemente uma forte repercuss?o no contexto dos festivais internacionais, especialmente europeus, e, n?o por acaso, esse tema tem encontrado lugar na m?dia impressa e on line. Por motivos que dificilmente se conseguir? explicar teoricamente, mas que est?o enraizados historicamente em nossa cultura cinematogr?fica, esses filmes s?o melhor recebidos no exterior do que em seus pa?ses de origem. Considere-se o recente sucesso que "Cinema, Aspirinas e Urubus" (foto) obteve no Festival de Cannes, de onde saiu com o Pr?mio da Educa??o Nacional da Fran?a, enquanto por aqui o que faz sucesso mesmo s?o os "Se eu Fosse Voc?" da vida.

? luz dessa situa??o um tanto paradoxal, de um cinema que prima pela inventividade est?tica, no caso, de matriz neo-realista, e obt?m aplausos fora do Brasil, mas pouco ? visto por aqui, onde um cinema que requenta - ainda que bem, mas requenta apenas - f?rmulas junto a um p?blico formado pela telenovela faz estrondoroso sucesso, a proeza do filme de estr?ia de Marcelo Gomes instiga pelo menos duas considera?es.

A primeira considera??o diz respeito a essa dessintonia entre o p?blico brasileiro, que espera ver no cinema ou o modelo aventuresco americano ou o novel?stico tupiniquim, e os filmes com menor poder de "di?logo com o p?blico", que acabam obtendo sucesso na Europa. Essa dessintonia ecoa uma outra, que remonta ao contexto da repercuss?o do cinema brasileiro na Europa, especialmente na Fran?a, na ?poca do Cinema Novo.

Facilidade

H? quem defenda que, por tr?s daquela repercuss?o, havia uma estrat?gia deliberada dos cinemanovistas: conquistar um p?blico culto europeu para que um determinado p?blico letrado brasileiro, formado pela cr?tica jornal?stica, cr?tica acad?mica e classe art?stica em geral, mas tamb?m os respons?veis pela pol?tica cultural, enfim, um p?blico formador de opini?o, pudesse olhar para o cinema brasileiro n?o do ponto de vista exclusivo do modelo americano, baseado na id?ia da divers?o cultural, mas da possibilidade de uma cinematografia pr?pria, com tem?ticas e estrat?gias est?ticas mais enraizadas localmente, capaz de a??o cultural efetiva. Uma vez conquistado aquele p?blico formador de opini?o, assim reza a tese de Alexandre Figueir?a no livro "Cinema Novo: a Onda do Jovem Cinema e sua Recep??o na Fran?a", as classes populares poderiam vir a ser influenciadas a ver no cinema brasileiro um instrumento para pensar o Brasil e faz?-lo pensar pela sua pr?pria cabe?a.

Sabe-se que o projeto cinemanovista n?o vingou, pois, no momento em que a pretensa estrat?gia come?ava a surtir efeitos, com filmes hoje cl?ssicos como "Os Fuzis", "Vidas Secas" e "Deus e o Diabo na Terra do Sol" obtendo aplauso internacional (franc?s, sobretudo), explodiu por aqui o golpe militar e, mais tarde, explodiria tamb?m o preconceito um tanto resignado, hoje moda, contra o Cinema Novo, acusado de herm?tico, reacion?rio e o diabo a quatro.

Ent?o, quando filmes como "Cinema, Aspirinas e Urubus" - que dialoga com um "Vidas Secas" (foto) e Nelson Pereira, mas tamb?m com os contemporan?ssimos Abbas Kiarostami e Carlos Sorin - fazem sucesso na Fran?a, mas n?o por aqui, a quest?o retorna. J? n?o estamos no contexto dos cinemas nacionais contra Hollywood nem do monstro da subalternidade cultural frente ao cinema americano. Os tempos s?o outros, e os problemas e solu?es tamb?m o s?o. Mas a quest?o sobre o que querer e esperar do nosso cinema n?o ? uma quest?o idade, e sim de verdade, parafraseando Paulo Cesar Saraceni.

E da? uma segunda considera??o: muito se falou nos ?ltimos dez anos sobre diversidade, termo que virou quase jarg?o na letra da cr?tica cinematogr?fica e, sobretudo, no esp?rito dos produtores ap?s a chamada Retomada do cinema brasileiro. Em nome da diversidade, filmes dos mais variados tipos foram e t?m sido feitos, para bem ou para mal.

Diversidade aparente

Para bem: nesse "h? de tudo um pouco", estamos, ressalte-se desde logo, numa situa??o potencialmente mais interessante do que em outros momentos da hist?ria do cinema no Brasil, em que as dicotomias dominavam - os cr?ticos da Cinearte versus os cineastas independentes dos ciclos regionais na d?cada de 1920; a chanchada da Atl?ntida versus o cinema de qualidade da Vera Cruz na d?cada de 1950; o Cinema Novo versus o "cinema subdesenvolvido" nos anos sessenta... e por a? vai.

No entanto, para mal, cabe refletir: embora do ponto de vista da produ??o possamos de fato falar em diversidade, da perspectiva do espectador m?dio brasileiro, aferida pelos n?meros de bilheterias, o que h? na verdade ? uma certa unilateralidade, baseada na expectativa quase un?nime de um certo tipo de padr?o cultural marcado pela aus?ncia de experi?ncia est?tica e pela repeti??o das f?rmulas cine-novel?sticas hollywoodiano-globais, repeti??o que acaba determinando quase sumariamente que filmes como o de Marcelo Gomes sirvam para p?blicos estrangeiros, mas n?o para o nosso. Ou seja, a capa da diversidade na produ??o esconde a unilateralidade de expectativas do p?blico, o que, por sua vez, repercutir?, claro, diretamente no setor da distribui??o, interessada, at? por quest?es de sobreviv?ncia, no retorno imediato.

N?o entenda o leitor que se queira aqui defender um determinado tipo de cinema em detrimento de outro. Isto nos levaria a um extremo oposto, igualmente unilateral. Trata-se, antes, em primeiro lugar, de colocar em quest?o a t?o propagada e pouco refletida id?ia de diversidade do cinema brasileiro e, em segundo lugar, de indagar o porqu? do p?blico brasileiro continuar cindido entre os consumidores de divers?o e os formadores de opini?o: este, um p?blico cr?tico mas que, por for?a das circunst?ncias, v?-se enclausurado nos circuitos alternativos, restritos aos grandes centros culturais, incluindo a? tamb?m os festivais nacionais ou internacionais; aqueles, p?blico j? conquistado noutros lugares que n?o as salas de cinema, a saber, pela televis?o.

Respostas nada simples

Colocadas as quest?es, acho que o leitor ter? j? percebido que n?o poderemos encontrar respostas simples para elas. S?o quest?es historicamente enraizadas no cinema nacional: o discurso da produtividade, em geral defendido pelos produtores, versus o discurso da inventividade, em geral defendido, com menos armas, pelos criadores; al?m da velha dicotomia entre um p?blico "iniciado" e um p?blico "m?dio", sem falar no "popular".

Frente ? primeira quest?o, podemos continuar a perguntar se a diversidade n?o surge com uma esp?cie de desculpa para n?o se preocupar com projetos a longo prazo para um cinema brasileiro como express?o cultural relevante, e n?o apenas como uma ind?stria e um mercado autosustent?veis e fortes, ou seja, a diversidade n?o como estrat?gia de marketing, mas como pol?tica cultural efetiva.

J? quanto ? segunda quest?o, caminhamos em terrenos mais caudalosos, pois ela envolve pensar dois personagens que nem sempre se reconhecem como tal e que raramente se encontram para tomar uma mesma cerveja, mesmo porque freq?entam bares diferentes: o aficcionado, que s? ver? o cinema brasileiro se Cannes o aceitar, e o desinteressado, que s? economizar? o ingresso do filme americano se o cinema americano, leia-se, Oscar, der atestado de validade ao nosso.

O que mais instiga ? que um filme como "Cinema, Aspirinas e Urubus" ?, como brilhante filme de estr?ia de Marcelo Gomes (na foto acima, ? direita), bem mais que um "filme franc?s feito no Brasil" e, mais ainda, que um "filme americano produzido por aqui". ?s vezes nos esquecemos que ? um ?timo filme brasileiro, seja l? o que isto for, ou melhor, seja l? o que para n?s vier a ser.

Nilson Alvarenga
Luzes da Cidade - Grupo de Cin?filos e Produtores Culturais