Daniela Aragão Daniela Aragão 7/07/2015

Com a benção de Dorival

Não tenho muita facilidade para precisar datas, mas faz certamente uns doze anos que conheci um dos Sescs de São Paulo, por meio de uma apresentação inesquecível do cantor e compositor Claudio Nucci (foto ao lado), em homenagem a Dorival Caymmi (foto abaixo, a direita). Recordo-me de que não havia propriamente um palco, no centro plano do amplo salão, na mesma altura da platéia, encontrava-se o cantor acompanhado por seu violão e munido de sua voz belíssima e de um repertório impecável.

Sutis lances de luz ora vermelha, ora azul, ora amarela iluminavam o artista, que me trouxe Caymmi num dos momentos de mais rara beleza jamais visto. É certo que a obra de Caymmi é frequentemente revisitada, muito além do esmerado trabalho dos filhos Nana, Dori e Danilo. A cantora Jussara Silveira gravou um álbum tocante, com arranjos arrojados e belos que valorizaram sua voz delicada em consonância com a música de tão vastos caminhos de Caymmi.

Tanto gostei da apresentação de Claudio Nucci, que fui ao lançamento de seu cd no extinto "Armazém Digital", no Rio de Janeiro, e voltei para casa com o repertório do show condensado no cd. Ouvi inúmeras vezes da primeira a última faixa, a cada audição impressionava-me mais a compreensão profunda que Claudio Nucci possui do universo Caymmiano. Uma simplicidade que suponho advinda de muito trabalho, aliado a uma sensibilidade de artista inteiramente entregue a verdade da criação. Nucci deixou neste seu primeiro álbum dedicado a Caymmi o registro de seu entendimento agudo, por isso muitas vezes alegre e doído da beleza profunda imanada em cada verso e nota do criador baiano.

Tive a honra e satisfação de entrevistar Claudio Nucci para minha coluna mensal no site acessa e ainda ganhei de presente a oportunidade de ouvir seu cd recém lançado, que novamente contempla o universo de sublimes canções do mestre Dorival Caymmi. Se o disco anterior já havia me impactado, este é o resultado emocionante e grandioso de um ourives da voz e do som, que mergulhou com intensa coragem e devoção na mais pura essência do criador Caymmi.

Em "Claudio Nucci revisita Caymmi", a simplicidade e o lirismo caminham de mãos dadas, inseparáveis, como nos versos pungentes de Juca Filho para "Da cor de algodão". Linda e luminosa celebração, que comunga num ágape cheio de molejo e swing, a chegada no céu do mestre baiano portador dos cabelos branquinhos e macios como uma nuvem de algodão: "De camisa listrada e violão/O meu samba mandou lhe chamar/O cabelo da cor de algodão/pé descalço na areia do mar/sereia vem no arrastão/ no seu colo sonhar faceira/gozando a canção praieira/ que incandeia o coração/e no céu da Bahia então/aquarela de som e sol/no dia que vem surgindo/ com a benção de Dorival".

Grande parte dos músicos que gravam Caymmi revelam a predileção por seu universo de canções praieiras, já Nucci neste disco deixa evidente sua destreza no trânsito pelas canções, que não se fecham exclusivamente no mundo dos mares, pescadores, jangadas e sereias. "Sargaço mar", pérola praieira Caymmiana, leva uma condução rítmica que retoma a força do legado africano nas congas, que evoluem em ondulações sonoras envolventes como uma espécie de mantra.

A voz de Nucci, de timbre muito belo e afinação precisa, demonstra sua sintonia ainda mais visceral com Caymmi. No álbum anterior ele manteve as composições num registro um pouco mais alto, conforme a tessitura de seu alcance vocal na época. Com a passagem dos anos, as notas mais graves chegaram com a naturalidade do transcorrer do tempo, o que lhe possibilitou cantar no mesmo tom de Caymmi, proporcionando a nós ouvintes uma sensação de cumplicidade plena entre intérprete e criador.

Nucci adentrou tão intensamente na criação do mestre, que o som peculiar do violão do compositor é revisitado em sua integridade: "Mantenho a organicidade do violão e voz e de maneira ainda mais radical. Percebi ao ouvir novamente o violão de Caymmi, que ele tinha uma afinação diferente. Todo violão é normalmente afinado, de baixo pra cima, (mi, si, sol, ré, la, mi). A afinação de Dorival era um tom abaixo disso (ré, la, fa, dó, sol, ré) então o violão soa mais grave, mais misterioso. Se é que existe, soa como um "violão barítono".

Ouço as canções e a força orgânica do som parece realizar-se bem ao meu lado, como se Nucci estivesse tocando aqui e agora. Pura beleza crua e cristalina, trabalho certeiro de um artesão de apurada sensibilidade minimalista, que incide no cerne da essência sintética e inigualável da criação Caymmiana. Voz, violão e percussão não excedem, nem carecem. Seguem na viagem sonora tão rica de lirismo, como na emocionante "Peguei um Ita no norte": "Peguei um "Ita" no norte/Pra vim pro Rio morar/Adeus, meu pai, minha mãe/Adeus Belém do Pará". Um disco de tão elevada beleza, com certeza traz a benção de Dorival que sorri no sorriso de Xangô.


Daniela Aragão é Doutora em Literatura Brasileira pela Puc-Rio e cantora. Desenvolve pesquisas sobre cantores e compositores da música popular brasileira, com artigos publicados em jornais como Suplemento Minas de Belo Horizonte e AcheiUSA. Gravou, em 2005, o CD Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso.

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