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Ana Júlia Carepa: o encanto acabou?

Lúcio Flávio Pinto - Abril 2007
 

A cabeleireira e a esteticista da governadora se tornaram assessoras especiais do governo. Ficaram nos cargos por um mês, até a denúncia pela imprensa. Obrigado a demiti-las, o governo diz que foi um acidente. O culpado? Ora, o mordomo. São confusões secundárias ou há essas confusões porque só o secundário predomina? Três meses depois, Ana Júlia Carepa chega à mídia nacional. Mas isso não é mérito.

Segundo a revista Istoé, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva previu que a administração da sua correligionária Ana Júlia Carepa no Pará será "um desastre". É difícil provar que realmente o presidente fez a inconfidência, mas se a nota não passou de maldade da revista, a governadora do PT está contribuindo para dar-lhe credibilidade. Antes de completar três meses no exercício da mais elevada função pública no Estado, Ana Júlia adquiriu notoriedade nacional. Não por algum feito administrativo excepcional, que ainda não apresentou, mas por fatos escabrosos, que podem dar-lhe um péssimo estigma: a de campeã do nepotismo na atual temporada.

Para esse tipo de deslize o presidente Lula já deu sua contribuição, mandando buscar o cãozinho da família em carro oficial, com ar-condicionado e tudo, ou ao patrocinar excursão do filho com os amigos ao Palácio da Alvorada. É sempre assim: os notáveis costumam encarar o serviço público como uma extensão de suas vidas privadas, permitindo-se todos os tipos de desfrutes do poder.

Mas Ana Júlia exagerou: ela simplesmente assinou os decretos que, no dia 14 de fevereiro, autorizaram a contratação de sua cabeleireira, Manoela Figueiredo Barbosa, e de sua esteticista, Franciheli de Fátima Oliveira, como assessoras especiais, lotadas no gabinete da governadoria. No dia 22, um mês depois, os fatos foram noticiados pela Folha de S. Paulo. No dia seguinte o assunto foi para a primeira página do jornal, dono da segunda maior tiragem na imprensa nacional.

Segundo uma fonte, também duas enfermeiras pessoais da governadora, que lhe deram assistência no hospital Porto Dias, onde Ana Júlia foi operada, acabaram na assessoria especial do governo. À falta dos nomes, não foi ainda possível apurar se a informação é verdadeira. Em fevereiro havia 649 assessores especiais na governadoria. Já é quase dois terços do exército de aspones ao fim da gestão de Simão Jatene.

Em resposta à matéria do jornal dos Frias, a Coordenadoria de Comunicação Social divulgou nota oficial. Disse que as duas profissionais foram contratadas indevidamente, por um "equívoco administrativo", mas já estavam sendo exoneradas (o que foi efetivado na edição do Diário Oficial do dia seguinte) "e os valores pagos serão devolvidos aos cofres públicos".

Para livrar-se da situação incômoda, o governo tratava de reafirmar "sua compreensão da importância do papel fiscalizador da imprensa e que, em qualquer circunstância onde tenha sido cometido equívoco ou falha administrativa, o fato será imediatamente apurado e sanado, como sempre foi a prática da governadora e do Partido dos Trabalhadores".

Boa declaração de princípios, mas o leite já estava derramado. Para a consumação do acidente, vários equívocos foram cometidos. A governadora assinou os dois decretos sem atinar para os nomes da sua cabeleireira e da sua esteticista. Não é incomum que autoridades firmem sua rubrica em papéis oficiais sem dar maior atenção ao que estão fazendo. O escorregão não recomenda o gestor, mas o pecado pode passar de venial a mortal em virtude de suas conseqüências.

Qual é o áulico palaciano que, conhecendo as duas profissionais da beleza, se precipitou em contratá-las sem consultar a governadora? Foi o mesmo que fez chegar os escorregadios papéis à sanção de Ana Júlia, sem adverti-la sobre a circunstância dos atos? Esse desastrado servidor já foi identificado e punido - com a demissão, para ser coerente com o destino dado à cabeleireira e a esteticista? E as duas, se pudessem, não iriam à justiça cobrar os dias que efetivamente trabalharam, dinheiro que perderão pela retroatividade de suas demissões?

A correção de iniciativas erradas, quando feita às pressas, costuma ser, como a emenda, pior do que o soneto. A nota oficial incorreu nessa falha. Ao leitor rigoroso, deixa claro que o governo procurou um bode expiatório não personalizado para crucificar, poupando a chefa. Ao leitor condescendente, terá parecido que a governadora é uma rainha da Inglaterra, que reina (com sua corte de cabeleireira, esteticista, enfermeiras e quetais), mas não governa. O deslumbramento com as seduções do poder a está desviando das obrigações de ofício.

Depois de viajar em aviões de carreira (que permitiram ao Estado economizar R$ 103 mil), Ana Júlia Carepa decidiu voltar atrás na promissora intenção inicial e utilizar o jatinho da ORM Air, tão largamente requisitado pelo seu antecessor, o tucano Jatene. A mudança de hábitos e costumes foi literalmente para o espaço e o discurso moralizador da véspera azedou. Mas não satisfeita em ir de Belém a Brasília no caro vôo fretado, a governadora decidiu esticar para Belo Horizonte. Só que a primeira pernada tinha pelo menos motivação oficial: uma audiência com o presidente da República. Já a segunda era programa estritamente particular: participar da festa de formatura de um filho.

Mas o erário pagou as duas contas. Os 4.529 quilômetros percorridos pelo Citation de Romulo Maiorana Júnior, entre Belém, Brasília e Belo Horizonte, saíram por R$ 101.844,18. As informações fornecidas pela assessoria de imprensa do governo não permitiram desmembrar a despesa para saber em quanto exatamente os cofres públicos foram onerados pela extensão estritamente privada à capital mineira, mas pelo menos permitiu constatar que o ex-marido da governadora, Marcílio Monteiro, secretário extraordinário de projetos estratégicos, a acompanhou para abraçar o vencedor filho do casal. Foi uma festa em família, por conta do contribuinte. Outras poderão ocorrer no futuro, dado o elevado número de parentes e agregados que Ana Júlia carregou consigo para o governo e extensões.

Os observadores mais tolerantes dessas sucessivas cenas de abusos e de contradição explícita debitam-nas na conta dos fatos secundários. A classificação valeria, realmente, se a contrapor-se a elas houvesse o crédito das realizações substantivas. Mas, embora um ou outro setor do atual governo possa apresentar algum fato concreto dotado de alguma significação, o balanço geral indica muita conversa (até bem articulada) e pouca ação de maior envergadura. Ou, em certos casos, confusão pura. Já está claro que, de certa forma surpreendido pelo resultado da eleição, o PT não tinha um programa alternativo de governo para colocar em prática quando assumisse o governo.

O que de melhor pode oferecer nesse primeiro trimestre surgiu exatamente depois da embrulhada das assessoras especiais de salão: a ampliação da faixa de isenção dos consumidores de energia de baixa renda, de até 100 kwh e a redução do ICMS nas contas dos consumidores da faixa seguinte, entre 101 e 150 kwh.

A rigor, porém, esses presentes têm pouca expressão: o Estado perderá pouco mais de dois milhões de reais por mês de imposto, mas o desconto dos que pagarão menos será, em média, de R$ 5 per capita. O efeito substancial seria alcançado se o Estado, corrigindo um abuso dos governos tucanos, reduzisse amplamente as extorsivas alíquotas do ICMS, tanto sobre a tarifa de energia quanto de telefone. Mas renunciar a fatias maiores de receita não é algo que os governantes, viciados em políticas públicas tributaristas, se dispõem a fazer.

Três meses já se passaram. Até agora, o governo da mudança continua a ser uma promessa. Espera-se que episódios cabulosos, como o das assessoras indevidas, não indique um roteiro mais trágico: de que terminou sem ter começado.

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Lúcio Flávio Pinto é o editor do Jornal Pessoal, de Belém, e autor, entre outros, de O jornalismo na linha de tiro (2006).



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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