Quem argumenta que a crise que assola o PaÃs tem no governo Temer sua principal causa parece ter vivido fora do Brasil por, pelo menos, uns dez anos. Por alguma razão, ideológica ou incógnita, desconhece o que se passou aqui. A profundidade da crise econômica - com o desemprego beirando a casa de duas dezenas de milhões, as finanças dos Estados em calamidade pública e a insegurança generalizada - tem nos levado, perigosamente, muito próximos à situação de insolvência vivida pela Grécia em passado recente. Este desastre, considerado o maior da nossa História, não foi obra de um governo que, fora a interinidade, alcança pouco mais de quatro meses.Â
A crise deriva diretamente das medidas adotadas pelos governos do PT, especialmente o de Dilma Rousseff. Quando o mundo já prognosticava que o modelo nacional-desenvolvimentista, com o Estado centralizando o investimento e promovendo os "campeões nacionais", era um projeto ultrapassado ante os ditames da globalização e nefasto a um desenvolvimento mais equilibrado e competitivo, a então presidente Dilma adotou precisamente essa opção, provocando desequilÃbrio financeiro, recessão e desemprego, com toda a sua carga de desorganização da economia.
Os efeitos da crise econômica e as revelações de um sistema mafioso de poder que promoveu no Estado e nas empresas públicas um nÃvel de corrupção inaudito encheram de indignação uma sociedade cada vez mais informada. E ela desceu à s ruas. O projeto de Dilma e do PT tornou-se, então, insustentável e seu principal aliado, o PMDB de Michel Temer - que havia ajudado (e muito) a reeleger Dilma -, foi se distanciando do núcleo de poder (que, na verdade, pouco frequentou) e resolveu abandonar o governo. Não é verdade que Temer não tenha a legitimidade do voto. Ele foi eleito com Dilma e com o voto dos petistas. Talvez se possa dizer, ao contrário, que foi o PMDB que reelegeu Dilma.
Após o impeachment e a assunção definitiva de Michel Temer, o PaÃs pôde começar a se reorganizar. Mas os déficits e as disfunções acumuladas revelaram-se de tal monta que se tornou evidente que a travessia até bom porto, com a recuperação do crescimento e o estabelecimento de um clima de diálogo entre as forças polÃticas, seria cheia de obstáculos e necessitaria de paciência e sobriedade.
Declaradamente, o de Temer é um governo de transição cujo objetivo central é rearranjar o PaÃs para chegar de maneira mais equilibrada a 2018. É a tal travessia, pinguela, corda bamba, seja lá o nome que se queira dar. Para isso o apoio de uma base parlamentar é essencial e configura seu principal ativo polÃtico.
Mas a dimensão polÃtica não gira em torno de si, sem substância e projetos para superar a crise. É imperativo realizar reformas e algumas delas estão sendo aprovadas pelo Congresso, com mudanças maiores ou menores. Contudo, esse andamento não é pacÃfico nem portador de estabilidade absoluta. Os mais afoitos diagnosticarão crises terminais a cada turbulência e não faltará quem faça uma exumação da "Nova República" com o intuito de defender o que não defendeu na ultrapassagem do regime civil-militar para uma nova ordem polÃtica democrática, lá pelos idos de 1986/88.
É notório, todavia, que o governo Temer não conseguiu extirpar a crise ética. A composição do pessoal governante do Executivo vem apresentando diversos problemas em razão da trajetória anterior do seu "núcleo duro", quase todo ele comprometido com problemas de corrupção herdados do perÃodo petista. Ministros foram substituÃdos, evidenciando, em alguns casos, que o problema é mais grave e profundo: trata-se da resiliência do velho patrimonialismo, que teima em solapar a res publica, razão pela qual multidões saÃram à s ruas desde 2013.
Não à toa, em 2016 as manifestações massivas de rua elegeram esse como seu alvo preferencial. As que visaram a atacar aspectos das reformas que o governo está pondo em marcha foram pouco massivas e, regra geral, descambaram para a violência. O que é negativo para o debate polÃtico em torno das reformas, que não têm consenso assegurado nem dentro da base governista.
Mas há uma mudança que merece atenção. Embora a Lava Jato permaneça como fator ineliminável da conjuntura polÃtica e ação exemplar de intransigência republicana que deve ser saudada, a imperiosidade das reformas tornou mais evidente para a opinião pública a necessidade de se repensar um projeto para o PaÃs. Em suma, que o PaÃs se encontra numa encruzilhada histórica e há necessidade de um aggiornamento democrático do capitalismo brasileiro, alterando os fundamentos da relação entre Estado e sociedade. Nesse cenário desafiador, só a polÃtica poderá ajudar-nos a suplantar dificuldades, preconceitos e vazios diante de um PaÃs em ruÃnas e que vive sob ameaça de crispação, com uma esquerda "desarmada" e perdida entre a inércia do corporativismo e um maximalismo retórico e anacrônico.
As saÃdas não serão fáceis e não estarão exclusivamente nas ações da Lava Jato. O imperativo das reformas atualizou a conjuntura e não se poderá fugir dele, sob pena de adiarmos a resolução dos problemas do PaÃs e reproduzirmos um sistema polÃtico sabidamente em colapso. Pode ser que as reformas não sigam nem a velocidade nem a organicidade desejada, mas parece não haver outro caminho.
2017 não se anuncia como um ano com turbulências mais débeis do que foi 2016. Por ora não se divisa nem sarneyzação nem dilmização de Temer. A consigna "diretas já" não é mais que uma retórica preguiçosa e inútil, que não enfrenta os desafios que o PaÃs tem diante de si. A partir de uma posição de intransigência democrática e republicana, a Nação precisa se unir e realizar essa travessia, procurando construir, ao mesmo tempo, novos horizontes para os brasileiros.
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Alberto Aggio é historiador e professor titular da Unesp.
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