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As esquerdas em crise

Adelson Vidal Alves - Setembro 2017
 

Fornazieri, Aldo e Muanis, Carlos (orgs.). A crise das esquerdas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017. 264p.

É do conhecimento de todos que a política em geral vive momentos de questionamento e tensão, sobretudo no que diz respeito a sua face institucional. Neste universo, incluímos a crise das esquerdas, que se faz até mais longa e complexa que a de outras vertentes intelectuais, ideológicas e políticas, devido a sua natureza crítica e plural. As raízes, as causas e os horizontes desta crise seguem sendo um debate que envolve partidos políticos, movimentos sociais, organizações da sociedade civil e também o mercado editorial. Este mostra ter grande fôlego, testemunhado em publicações diversas e qualificadas. Tamanho vigor pode ser verificado em obras como esta, que reúne entrevistas, ensaios e artigos de vários acadêmicos, intelectuais e militantes da esquerda brasileira.

O livro inicia-se com uma longa entrevista do filósofo Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação do governo Dilma. Debatendo "Utopia e a redução dos danos", Ribeiro faz uma reflexão sobre a prática de esquerda, suas ambições e seus limites de ação, usando quase sempre como pano de fundo a experiência do Partido dos Trabalhadores, dentro e fora do governo federal. Conceitualmente, ele parte da conhecida definição de Norberto Bobbio, que delimita a diferença entre esquerda e direita a partir da visão sobre as desigualdades. Enquanto a direita as naturaliza, a esquerda defende que as diferenças sociais resultam da prática social; por isso, deve haver interferência da política e do Estado para a correção das distorções que nascem da dinâmica sistêmica.

Janine, a partir dai, vai discutir as orientações práticas e teóricas que a diversidade das esquerdas assume ou deverá assumir. Ao falar de utopia, o entrevistado localiza uma "extrema-esquerda" que se diferenciaria e até entraria em choque com uma esquerda que se move dentro da realidade, em uma perspectiva de redução de danos. Esta última teria se convencido da necessidade de construir alianças, fazer concessões, operar pacientemente dentro do capitalismo, seja para amenizar os prejuízos que provoca, seja para superá-lo.

Enquanto conversa, o filósofo demonstra grande simpatia pelo petismo, a quem defende como um governo de priorização social inédita na história recente do país. Seus argumentos vão até mesmo ao ponto de criticar a imprensa nos moldes da conhecida narrativa lulista, que trata a mídia como "golpista". Ainda que com ligações claras com o PT e sua história, Renato Janine Ribeiro consegue operar uma autocrítica rara nos meios da esquerda brasileira. Os erros na visão sobre os direitos humanos, o uso continuo de campanhas de difamação contra dissidentes e outras reflexões mostram a capacidade do entrevistado de reconhecer descaminhos na história do campo progressista.

Em seguida, temos o ensaio de Tarso Genro, advogado e conhecido dirigente petista. Ainda que usando de uma escrita refinada, Genro se mostra previsível, repetindo diagnósticos cansados do campo ao qual sempre pertenceu. Inicia com a proclamação da falência da social-democracia e do socialismo de tipo soviético. A primeira não teria conseguido vencer as desigualdades por onde passou, enquanto o socialismo real desembocou no autoritarismo.

Na visão do ex-ministro de Lula, a democracia - percebida pela esquerda democrática como campo privilegiado da luta dos subalternos - acaba por se reduzir a um objeto manipulado pelo capital financeiro, que exerceria controle extralegal sobre os direitos econômicos dos povos. Vai além, ao afirmar que o Estado moderno é quem assegura esse domínio. Uma reedição do velho marxismo que trata o Estado só como o "comitê executivo das classes dominantes". De positivo, Genro consegue perceber a distância entre o pensamento formado nas academias e as decisões pragmáticas dos dirigentes partidários. As reflexões dos primeiros seriam lentas, com gradual efeito sobre a luta política; são as burocracias partidárias que tomam as decisões urgentes do presente.

Com Sérgio Fausto, diretor-executivo do Instituto Fernando Henrique Cardoso, o livro alcança um dos seus momentos mais ricos. Em entrevista, Fausto discute a velha preocupação da esquerda: a igualdade. Qual seria o ponto certo da igualdade? Uma igualdade de oportunidades ou de resultados? Com argumentos claros, ele detalha a tese segundo a qual a igualdade de oportunidades é uma saída democrática importante, mas ela precisa garantir um equilíbrio mínimo no ponto de partida, sem falar que a política deve garantir vida digna mesmo àqueles que não "conseguiram chegar". Ao contrário de Genro, ele não é fatalista quanto ao papel do Estado. Para Fausto, ainda que reconhecendo a influência do poder econômico, não podemos abolir por completo as potencialidades estatais. O Estado produtor poderia estar perdendo para o setor privado, mas é de grande serventia para a regulação, sobretudo a regulação do capital financeiro. Sérgio Fausto faz críticas a uma esquerda que "idolatra o Estado" e não poupa nem o PSDB, tratado como um partido que se desconectou da sociedade, perdendo base social.

Guilherme Boulos fala a partir dos movimentos sociais. É uma entrevista com respostas bem previsíveis, uma reflexão que parece ser homogênea no círculo político em que Boulos atua. Ele divide a esquerda latino-americana em dois grupos, já que reconhece ter pouco conhecimento sobre a realidade europeia. Por um lado, fala sobre modelos chavistas de governo, que seriam aqueles em que se operam reformas estruturais sustentadas nos movimentos das ruas, e aqui se incluem Equador, Bolivia e Venezuela. Por outro lado, haveria governos de esquerda que se sustentam em pactos pluriclassistas, como fez o PT no Brasil. O líder do MTST (Movimentos dos Trabalhadores Sem Teto) vê conquistas neste segundo grupo, mas limitadas pela falta de ruptura. Os pactos conseguem sobreviver quando a economia capitalista vai bem; no entanto, nos momentos de crise, o pacto se desfaria, como aconteceu com o PT. Neste aspecto, ele tem toda a razão.

Mas Boulos repete o enredo narrativo da esquerda desalojada do poder, tratando o impeachment sempre como golpe, mostrando pessimismo quanto às "instituições burguesas" e apostando muito mais nos movimentos sociais que na política institucional e nos instrumentos universais que sustentam as democracias modernas, como os partidos políticos.

Cícero Araújo e Ruy Fausto assinam juntos um belo artigo que analisa não só as questões relacionadas à democracia como também a esquerda e as alternativas apresentadas por este campo. Parte-se do PT como o núcleo avaliativo e acumulador das esperanças e também das forças de esquerda brasileira. Os autores, assim como seus colegas da coletânea, reconhecem as vitórias sociais das gestões petistas, mas são críticos ao reconhecer os limites de um partido que abandonou por completo qualquer perspectiva transformadora. Diante da derrota do socialismo real, o Partido dos Trabalhadores apareceu como alternativa à onda neoliberal da década de 90, porém perdeu força mobilizadora e originalidade, e hoje retrocede ao defender ditaduras ditas de esquerda, resumindo-se a existir como mais uma poderosa máquina eleitoral bem distante de sua utopia fundadora.

O artigo, ainda, traz a preciosa contribuição quanto ao papel das classes médias, tão hostilizadas por parte da esquerda, a qual, de forma simplória, expõe a tese esdrúxula de que as camadas médias seriam tão somente fascistas, racistas ou conservadoras. Quem não se lembra do discurso ridículo da filósofa Marilena Chauí? Cícero e Fausto, ao contrário, fazem uma análise lúcida sobre o fenômeno das classes médias.

Finalizando o livro, chegamos à contribuição de Aldo Fornazieri, um de seus organizadores. O artigo talvez seja o de maior elegância acadêmica, abrangendo as questões históricas que perturbam a esquerda. Os ingredientes teóricos que enriquecem o escrito de Fornazieri vão de Marx a Gramsci, de Poulantzas a André Gorz, de Althusser a Bourdieu.

O autor parte de uma crítica fundamental: a crítica ao marxismo ortodoxo, que ainda influencia grandes setores da esquerda mundial. O marxismo aqui criticado é aquele que trata o socialismo como um futuro glorioso e inevitável da história, que teria leis naturais. Ainda que reconhecendo a contribuição pioneira do filósofo alemão, Fornazieri nos oferece elementos de debate importantes, os quais expõem uma nova realidade global que contraria Marx e suas previsões. O operariado fabril, por exemplo, teria deixado de ser o coveiro histórico do capitalismo. Definitivamente, o mundo de hoje é bem diferente daquele de Marx do Manifesto.

Fornazieri, seguindo no debate sobre Marx, vai nos mostrar a avaliação marxista da realidade das classes sociais, ora composta empiricamente, ora formada a partir de uma consciência que constrói as disputas contemporâneas do capitalismo. Com um conhecimento raro dos conceitos do fundador do socialismo moderno, o autor passeia em temas que tocam no imperativo da política, nas relações entre socialismo e democracia e na importância da economia na construção do ser social. E sempre se serve, claro, de teóricos tão renovadores como Gramsci, assim como de clássicos do marxismo militante, como Lenin.

A crise das esquerdas não pretende esgotar o tema e muito menos apresentar fórmulas perfeitas para solucionar a problemática da esquerda contemporânea. No entanto, trata-se, sem dúvida, de mais uma contribuição para nos ajudar a renovar o pensamento da esquerda com o que mais se exige dela, isto é, a luta por igualdade e liberdade, com respeito ao pluralismo.

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Adelson Vidal Alves é historiador.

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Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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