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O romantismo e a idéia de nação

Célia N. Galvão Quirino - Fevereiro 2006
 

Com este livro Bernardo Ricupero retoma uma clássica discussão sobre a formação da nação brasileira e as idéias que a conformaram. Romantismo e idéia de nação caminham juntos não apenas no Brasil. A literatura romântica e seus temas, a cultura e a política brasileiras, logo após a independência, são os elementos que permitem pensar essa junção. Não é um tema novo e tem caráter universal, embora em cada região do mundo tivesse adquirido características próprias. Com acurada investigação Bernardo Ricupero procura encontrar quanto e como o romantismo foi uma expressão literária que permitiu criar e difundir a idéia de nação no Brasil. Melhor, fazer os assim designados brasileiros acreditarem que eram uma pátria.

Talvez, o romantismo, pelo seu desenvolvimento em determinado momento histórico europeu, seja, de todas as idéias importadas, a mais adequada a nossa própria situação econômica, social e política pós Independência. Os temas românticos e a maneira de tratá-los pareciam, com alguma criação, servir como uma luva para fazer nascer um espírito nacional e encontrar uma identidade que juntasse todos os brasileiros. Todos, mesmo os de origem européia e os aqui bem nascidos, com direito ou não à cidadania, poderiam se sentir igualmente privilegiados ou igualmente desgraçados de pertencer a esta grande pátria. Os escritores românticos brasileiros, após a independência, como se estivessem empreendendo uma cruzada, realizaram uma intervenção deliberada utilizando-se da literatura, para criar e difundir uma idéia de nação.

O romantismo brasileiro permitiu que se louvasse e se cantasse a estonteante natureza e os seus reais nativos, mas também que se chorasse e se lamentasse a tragédia de não sermos a Europa. Afinal, apesar de todas as maravilhas havia, além do fato "impolítico e abominável" da escravidão, como lembra Roberto Schwarz, a pobreza cultural da imensa maioria, muitas vezes iletrada, mesmo entre os mais poderosos economicamente. A verdade, como explica Ricupero, é que "a escola, instrumento clássico de exercício de hegemonia, não teria" tido "maior importância no Império". Se esta informação estava em contradição com a idéia de liberdade e com a herança iluminista dos românticos e dos intelectuais brasileiros, é verdade também que muitos dos ricos senhores, donos de escravos e dominadores, não haviam passado por nenhuma escola e boa parte deles não sabia sequer ler ou escrever. Porém, a maior contradição era encontrada na própria louvação realizada pelos cantantes, pois, elogiava-se a beleza, o caráter, a honra, os valores dos naturais da terra, mas estes precisavam ser educados, civilizados e na verdade o que se exaltava no índio eram os valores de uma sociedade e de uma cultura, aristocrática, ideal, inexistente. O que se esperava e se propunha era que os "bárbaros" fossem educados. Para a chamada elite pensante, aí incluído o rei europeu e sua corte européia, a saída era, cantando e louvando o país, passar longas temporadas na Europa. Lá se formavam e lá aprendiam a engrandecer o Brasil. Como afirma, no clássico Raízes do Brasil, mestre Sérgio Buarque de Hollanda: "trazendo de países distantes nossas formas de vida, nossas instituições e nossa visão do mundo e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos uns desterrados em nossa terra". Teria sido dessa forma que se construiu a idéia de nação brasileira? São essas imensas contradições que se encontram no nascimento da nação e que marcaram nossa visão do Brasil até hoje, que a cuidadosa análise de Ricupero retoma e procura esclarecer.

Muitos historiadores e estudiosos da literatura e da política já se debruçaram sobre esse tema. Mas, a pesquisa e a discussão que se apresentam neste livro sobre o assunto, não são apenas um mero retorno. Essa retomada analisa, apreende e expõe as várias propostas anteriores, algumas já consideradas clássicas, incorporando com imenso cuidado e demonstração acurada as interpretações teóricas que se aproximam do seu objetivo. Usando as mesmas palavras do autor, este trabalho percorre "um caminho que é ao mesmo tempo lógico e histórico" e quer responder "porque a nação foi uma preocupação do romantismo brasileiro e se, ao longo do período de maior influência romântica ela começou a ser estabelecida no Brasil". Finalmente, "qual era a idéia de nação que os românticos brasileiros podiam elaborar entre 1830 e 1870". Para realizar essa trajetória Ricupero mostra como se estabeleceu a "identidade comum" de seus habitantes. Os seus passos partem da criação de símbolos, da "invenção das tradições", tal como ensina Hobsbawm, terminando, quando se tornou possível elaborar um "dialeto político cultural", o que, no caso e no período citado, teria sido tarefa do romantismo. Para o autor "restaria apenas avaliar se esse dialeto teve sucesso em converter-se em língua ou, em termos gramscianos, se uma determinada filosofia tornou-se senso comum, estabelecendo efetivamente a idéia que os brasileiros fazem da sua própria nação". Assim como o entendimento da lógica é necessário para se bem conhecer o processo, também precisamos ser convencidos de ser esse um bom caminho. A leitura deste livro convence.

Ao construir a idéia de nação a partir dos escritos dos românticos e mostrar como estes são parte de um mesmo todo, tanto em relação ao momento histórico quanto à ideologia presente, Ricupero lembra a importância de também considerar a criação do Estado. O processo é globalizante e, no caso do mundo latino americano, todos esses elementos, embora muito diferentes, parecem ter algo em comum.

Por isso, sente o autor a necessidade de realizar uma contrapartida entre o processo de formação da nação e do Estado brasileiro e o argentino. Embora ambos os povos tivessem saído de uma situação colonial, tivessem realizado sua independência política, precisavam e queriam ser realmente autônomos e livres. Além disso, sabiam que necessitavam ter identidade nacional e criar uma cidadania; ter o sentimento de pertencer a um povo e serem donos do território, mesmo que nada possuíssem ou que o pertencer fosse considerado uma desgraça. O que Ricupero mostra é que lá como cá, o romantismo teve o papel de criação e de invenção da nação, mesmo que, em ambos os casos, não possuíssem a patente.

Costuma-se dizer que o Estado brasileiro se formou antes da nação. Teria sido originário do Estado português que, ao se instalar em território brasileiro, permitiu a interiorização das condições para o país e que, uma vez independente, já estariam prontas todas as categorias necessárias à implantação de um Estado moderno. Estado este que, apesar da extensão do território e do povo disperso, da manutenção dos poderes locais, de não ter construído um aparato burocrático racionalizado e sem se preocupar em manter a legitimidade do uso exclusivo da violência, contrariando os ensinamentos de Weber, viria a ser e se manteria, como o português, fortemente centralizado e unido. Por um lado, a exclusividade do uso legítimo da violência parecia ter se concentrado na defesa do território e na manutenção da União, por outro, teria sido o imperativo da crença da existência da nação, que permitiram que o território e o Estado não se esfacelassem.

A idéia do Estado-Nação é uma idéia nova no século XIX. Implicava o reconhecimento da existência de uma nação glorificada pelos nacionais e de um Estado Moderno. Essa era uma idéia que as ex-colônias tinham que realizar. Como os processos de formação do Estado Moderno e da nação não são necessariamente concomitantes, a formulação da idéia de nação apenas retira do que existe e dos sonhos dos seus habitantes o que pensam que são e o que gostariam de ser, ou seja, da ideologia construída pelos pensantes e acreditada pelo seu povo. A política, como o Estado, no nosso caso específico chega para organizar, sem atropelar muito, o poder que já existe. Afinal, o que se realizou não foi uma revolução.

Tal como o dito popular brasileiro de que há "leis que pegam e leis que não pegam", o Estado, como o organizador dos poderes da nação, cria regras que em princípio são para todos os nacionais, mas nem todas pegam e nem todas atingem a todos. Assim como a nação francesa saída da revolução necessitou substituir o rei pela deusa nação e pela idéia de fraternidade, de que todos os franceses eram irmãos, a decantada nação brasileira, na qual a caracterização do brasileiro prevalece sobre a de classe, região etc., não transforma os nacionais numa irmandade de iguais. A construção da idéia de nação e do Estado é necessária, forte e centralizadora, embora romântica, no momento que se segue à independência.

Não é sem propósito que os românticos brasileiros buscassem, sobretudo, nos românticos franceses e na própria França a inspiração para suas idéias nacionais. Aqui, como lá havia rei. Lá tinha havido um Império, aqui este estava presente. Lá os ideais políticos falavam de liberdade, aqui a independência significava libertação, liberdade para criar e inventar tanto na construção do Estado, como na imagem de nação. Como declara Ferdinand Denis, citado por Ricupero: "A América deve ser livre em sua poesia como no seu governo".

O romantismo na Europa havia sido consumido por liberais, conservadores e revolucionários, aqui foi ao mesmo tempo liberal e conservador. Não foi à toa que os dois grandes partidos durante o Império assim se denominaram copiando o modelo inglês.

A agradável e instigante leitura deste livro nos remete a temas e discussões que pareciam estar esquecidos e que são tão importantes para a compreensão de todos nós, habitantes deste país, de nossas origens e de nossas atuais relações com o mundo contemporâneo. Afinal, esta obra é uma exploração sobre quem somos, como somos e que idéias fazemos de nós mesmos.

As questões que sempre estão sendo colocadas recebem do autor uma análise cuidadosa, não procurando tratá-las como respostas definitivas mas procurando esclarecer e enriquecer o debate, sempre atual, sobre quem somos. Assim, é retomada a velha e polêmica discussão sobre quanto os românticos fizeram poesias e discursos criando apenas mitos e quanto os mitos eram necessários, embora não correspondessem à dura realidade. É claro, não bastava o discurso, saído da necessidade, exaltar o que não era real, era também preciso acreditar nele. A melhor conclusão para todos nós brasileiros seria se, ao final, fosse possível constatar que não apenas a bela descrição da nação elaborada pelos nacionais fosse pura ideologia, mera aparência enganadora do real, mas também que tudo que acreditamos existir de pior e que é creditado ao caráter do povo brasileiro: a malandragem, a preguiça, a basófia, a desonestidade, enfim, todos os nossos vícios, tudo, tudo fosse pura ideologia.

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Célia N. Galvão Quirino é professora aposentada do Departamento de Ciência Política da USP, autora de Dos infortúnios da igualdade ao gozo da liberdade – uma análise do pensamento político de Aléxis de Tocqueville (São Paulo: Discurso Editorial/Fapesp, 2001), co-organizadora de O pensamento político clássico (São Paulo: Martins Fontes, 2003, 2. ed.) e Clássicos do pensamento político (São Paulo: Edusp, 2004, 2. ed.). Este é o prefácio de Bernardo Ricupero. O romantismo e a idéia de nação. São Paulo: Martins Fontes, 2004.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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