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O marxismo no fogo cruzado

Duarte Pereira - Outubro 2006
 

Carlos Nelson Coutinho. Intervenções: o marxismo na batalha das idéias. São Paulo: Cortez, 2006. 191p.

Lula não levou no primeiro turno, mas é provável que seja reeleito no segundo. Uma coisa é certa, porém: vença Lula ou ganhe Alckmin, as contra-reformas neoliberais serão retomadas; a política econômica de caráter neoliberal será aprofundada, com a única inflexão de buscar simultaneamente a aceleração do crescimento, já reclamada até mesmo pelo FMI; as políticas sociais continuarão sendo basicamente assistencialistas, com ênfase em programas como o Bolsa-Família e o ProUni; e a política externa prosseguirá tímida e ziguezagueante, movida essencialmente pela preocupação de abrir mercados para as grandes empresas nacionais ou transnacionais, sediadas no Brasil.

Em outras palavras: ganhe Lula ou vença Alckmin, o grande capital continuará distribuindo as cartas e o modelo capitalista neoliberal será consolidado no Brasil, ainda que numa forma mitigada, social-liberal. E esse modelo será consolidado tanto no plano econômico, quanto nos planos político e ideológico, pois não se pode esquecer que o neoliberalismo carrega consigo o neopopulismo e o neo-individualismo.

Comentando os resultados polarizados do primeiro turno, o presidente Lula ressalvou que não pretende dividir o país em ricos e pobres, mas garantir que todos sejam ricos. Como, no sistema capitalista-imperialista, não pode haver ricos sem que haja pobres, nem burguesia sem que haja proletariado, nem um pequeno núcleo de nações poderosas e superdesenvolvidas sem que exista uma grande periferia de nações frágeis e subdesenvolvidas, o sentido desmobilizador do comentário do presidente Lula é evidente.

Nessas circunstâncias adversas, os militantes e intelectuais que não renegaram o socialismo nem o transformaram numa simples referência de valores para reformar o capitalismo, têm pela frente dupla e árdua tarefa: a de voltar-se para o esforço de aprofundar seus vínculos com as classes trabalhadoras e com movimentos sociais como o estudantil e o feminino, mas também a de retomar a reflexão crítica sobre a intrincada realidade nacional e internacional e sobre a necessidade de reinventar o projeto socialista, elaborando estratégias e táticas de ação que o viabilizem, ainda que de forma progressiva.

É muito estimulante, nesse sentido, a leitura do último livro de Carlos Nelson Coutinho. Trata-se de uma coletânea de palestras e entrevistas concedidas nos últimos anos, como o próprio autor esclarece em "Nota prévia" ao livro, acrescentando: "São diversos os temas tratados, mas tal diversidade não anula o fio vermelho que julgo atravessar todas as intervenções, ou seja, a tentativa de contribuir para uma análise marxista de importantes problemas teóricos, políticos e culturais do presente" (p. 11).

Carlos Nelson, que foi um militante destacado do PCB, depois do PT, e foi recentemente um dos intelectuais que ajudaram a fundar o PSOL, destaca também na "Nota prévia": "Contribui ainda para assegurar a relativa unidade dos textos o lugar que Antonio Gramsci ocupa em quase todos eles. Gramsci é não só objeto explícito de duas das intervenções, mas também a fonte de muitas das categorias de que me valho para abordar os vários temas tratados nesta coletânea, que vão desde os conceitos de democracia e de sociedade civil até a atual crise do PT e do seu governo, passando pela evocação do clima intelectual dos gloriosos anos 60 do século XX" (p. 11).

Além da relevância dos temas abordados, os textos apresentam outra virtude: são curtos e acessíveis, facilitando a leitura de quem não disponha de muito tempo ou não esteja familiarizado com alguns dos autores e conceitos utilizados. Aliás, os textos não estão dispostos em ordem cronológica, mas numa progressão temática, que procura, aparentemente, facilitar a compreensão e fundamentação dos textos posteriores a partir dos precedentes. Ainda assim, tratando-se de textos autônomos, podem ser lidos na ordem que mais motive o leitor.

Não é preciso concordar integralmente com o autor para tirar proveito de suas reflexões instigantes, perpassadas por um saudável empenho antidogmático.

Eu faria, por exemplo, uma ressalva à seleção dos textos: no capítulo 10, que aborda "As metamorfoses do PT e o governo Lula", além das duas entrevistas transcritas, nas quais Carlos Nelson anuncia sua saída do PT e debate as causas da derrocada do governo Lula, o livro poderia ter incluído o artigo "O governo Lula ou o estreito fio da navalha", escrito por Carlos Nelson em novembro de 2002 para ser publicado pela revista do PT, Teoria e Debate, no mês seguinte. No referido artigo, Carlos Nelson, como muitos outros intelectuais de esquerda na época, ainda saudava a eleição de Lula como "a maior vitória política da esquerda em nosso país" e conclamava a esquerda do PT, bem como movimentos sociais, como o MST, a "apoiar enfaticamente o governo Lula" para evitar sua cooptação por tentações conservadoras. A meu juízo, tornado público na época, a cooptação já havia ocorrido antes mesmo da eleição. Incluído o artigo, ficaria melhor documentada a evolução sofrida de Carlos Nelson e de tantos outros intelectuais de esquerda da filiação ao PT à criação do PSOL - reflexo, sem dúvida, de uma conjuntura difícil de ser interpretada e, mais ainda, de ser enfrentada.

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Duarte Pereira é jornalista.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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