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Em Barcarena, caulim tem maior acidente industrial

Lúcio Flávio Pinto - Julho 2007
 

Mesmo que não tenha havido contaminação da água, o vazamento de caulim produzido pela Imerys em Barcarena foi o maior acidente industrial já registrado no Pará. Não é o primeiro nem será o último que acontece na região, em parte pelo excesso de concentração de fábricas. Serve de alerta para o futuro: um novo acidente pode ser muito mais grave.

O vazamento de caulim produzido pela empresa Imerys Rio Capim Caulim, no dia 11, foi o maior acidente industrial com danos ecológicos já registrado no Pará. Mesmo que a profundidade e a amplitude do acidente ainda não pudessem ser adequadamente definidas uma semana e meia depois do fato, quando este texto foi escrito, é inquestionável a sua gravidade. Tanto pelos efeitos imediatos, ou mais duradouros, como pelo seu significado de advertência.

O acidente da Imerys é apenas mais um na série de acontecimentos semelhantes que vêm se repetindo no distrito industrial de Barcarena, a 50 quilômetros em linha reta de Belém. Pela simples probabilidade estatística, eles deverão continuar a se repetir porque a área já abriga a maior concentração industrial do Pará e um dos pólos litorâneos mais importantes do país acima da Bahia. Há um preocupante adensamento de atividades produtivas com grande potencial de agressão ao meio ambiente.

A própria trajetória da Imerys, que passou da Construtora Mendes Júnior para uma multinacional francesa, a maior produtora mundial, serve de testemunho. Em 1996 a empresa iniciou sua operação com uma capacidade instalada de 250 mil toneladas anuais de caulim, argila usada no revestimento de papéis especiais. Depois de quatro expansões, assumiu a liderança do setor, com um milhão de toneladas. O acidente aconteceu exatamente quando ela implanta a quinta expansão, para 1,5 milhão de toneladas, consolidando sua posição diante de outras duas concorrentes: a Pará Pigmentos (PPSA), que se aproxima de um milhão de toneladas, e a Caulim (Cadam), com 700 mil (a única das indústrias situada fora de Barcarena), ambas controladas pela Companhia Vale do Rio Doce. Até o final da década, a produção de caulim do Pará ultrapassará três milhões de toneladas, confirmando a posição do Estado como o terceiro produtor mundial (talvez até o segundo), responsável por quase 100% da produção nacional, 95% dela destinada ao exterior.

Já seria um dado a considerar, mas ele se combina com outras realidades. Ao lado da Imerys funciona a maior de todas as fábricas de alumina, a Alunorte, que também está em expansão, de 4,2 milhões de toneladas para 6,6 milhões. Sua vizinha é a 8ª maior metalúrgica de alumínio do mundo, a Albrás, que só não ampliou sua fábrica porque precisa de muita energia, indisponível no momento.

Sua principal acionista, a CVRD, associada a um consórcio japonês, já está providenciando uma grande termelétrica, de 600 megawatts, para assegurar o crescimento da Albrás. O problema é que a usina funcionará à base de carvão mineral, um poderoso agente poluidor, que está na causa da triste façanha que a China consumou no mês passado: passou os Estados Unidos como o país que mais suja a atmosfera da Terra.

Logo, a Alunorte terá a companhia da ABC, uma nova indústria de alumina (insumo para a produção do metal de alumínio), numa associação da CVRD com a China, que a deslocará do topo do setor, com produção de sete milhões de toneladas. Quando estiverem em plena carga, as duas fábricas serão responsáveis por quase 30% da produção mundial de alumina, algo jamais concebido - e provavelmente não recomendado.

Mas ainda não é tudo: uma empresa argentina utiliza uma pequena quantidade do alumínio líquido da Albrás para transformá-lo em cabos, vergalhões e condutores, na única atividade além do simples lingote, que é mandado para o exterior, atendendo 15% de toda demanda de metal do Japão. Ainda há mais: o grupo Cosipar vai começar neste ano a produzir ferro-gusa e placas de aço, também usando carvão mineral.

O sítio de tantas atividades, que transformam minérios em insumos ou bens semi-elaborados através de banhos de ácidos ou de energia, é um dos mais complexos e delicados estuários do Brasil. Uma região que só começou a ser estudada a sério recentemente, depois de vários desacertos e problemas. O desconhecimento obrigou a Portobrás a rever a construção do terminal de Vila do Conde ao descobrir que as estacas de metal foram atacadas pela craca, em função da salinidade das águas do estuário nos momentos em que o mar avança, fator inteiramente desconsiderado no projeto do porto.

Num dos pontos de confluência desses múltiplos cursos d’água está a capital do Pará, com 1,4 milhão de habitantes. E, sob sua influência, mais 600 mil habitantes pelo menos. A expansão da produção nessa área seguiu um ritmo tão alucinante, demarcado pelo interesse econômico, que os aspectos ecológicos e sociais foram subestimados, quando não totalmente ignorados. O acidente da Imerys alerta para esse descompasso. Uma nova ocorrência pode se tornar um completo desastre.

O rompimento da terceira das bacias que acumulam os rejeitos da fábrica de caulim começou a provocar vazamento de material ainda no dia 11, mas só no dia seguinte as autoridades foram comunicadas. Talvez a antecipação pudesse impedir que o conteúdo do tanque, de 450 mil metros cúbicos, vazasse em sua maior parte ou tivesse um resíduo transferido para as outras bacias. Talvez nem o acidente se consumasse se as providências fossem adotadas no momento adequado. Em agosto do ano passado, uma inspeção realizada por técnicos da Sectam (Secretaria de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente) constatou fissuras exatamente na bacia de rejeito que rompeu. Pelo resultado, o problema não foi sanado, o que justificou a decisão da secretaria, de interditar parcial e temporariamente a fábrica, desde o dia do acidente.

A suspensão do funcionamento da fábrica teve repercussão internacional. A Imerys atende a 450 clientes em todos os continentes. De alguma maneira eles poderão ser pressionados por causa da agressão à natureza, tema cada vez mais sensível. Por isso, a fábrica procurou de todas as maneiras minimizar os efeitos do acidente, garantindo que o material, por ser inerte e não conter produtos químicos, apenas turvaria as águas das drenagens mais próximas e com menor volume, logo se dispersando ou precipitando, sem afetar os organismos vivos.

A empresa também negou a presença de produtos químicos, como a soda cáustica, nos rejeitos de caulim, mas sua declaração foi contestada pelos que acham quase inevitável algum tipo de contaminação, mesmo que em baixa proporção. No material vazado o componente predominante é água, mas em 450 mil metros cúbicos de massa total o material sólido e eventuais químicos constituem volume suficiente para provocar impactos negativos na natureza. Certamente os igarapés vão sofrer os efeitos da previsível compactação do fundo pela argila concentrada, que turvou a cor de suas águas e impediu ou prejudicou o processo de fotossíntese.

Para não haver riscos de maiores danos, a população da área diretamente atingida pelo vazamento foi evacuada. Nos primeiros dias, mesmo os banhistas da orla de Barcarena sentiram os efeitos da maior concentração de argila na água da baía. No mínimo, na forma de coceira na pele. Mas os transtornos humanos ainda persistem. Podem até não ser graves, mas prejudicaram os moradores da região, vítimas indefesas nessas eventualidades. Não é sem motivo que o rejeito é isolado em grandes tanques, que devem ser impermeabilizados, para evitar que penetrem no lençol freático ou atinjam as drenagens superficiais.

Evidentemente, nenhuma das indústrias concentradas em Barcarena quer acidentes, mas elas não parecem utilizar os recursos possíveis não só para prevenir que eles aconteçam como para compensar a repercussão negativa das suas atividades. A compensação ambiental e social, se tem sido realizada, hoje ficou defasada pela notável expansão da capacidade de produção dessas indústrias - e, naturalmente, pela multiplicação do seu faturamento.

Elas cumprem as normas legais nos seus aspectos tributário e fiscal, mas talvez porque a relação que mantêm com o Estado, por esse prisma, lhes é altamente favorável, principalmente com a isenção de ICMS que lhes proporciona a Lei Kandir há uma década. Barcarena tem a maior renda per capita do Pará e também a maior receita tributária per capita. Esse é um dado que atrai muito mais gente do que a atividade produtiva pode absorver, gerando problemas sociais graves. Atrai também políticos inescrupulosos ou despreparados para funcionar como liderança positiva em favor da sua clientela, como vem ocorrendo.

A corrida pelo caulim do Pará resulta da qualidade excepcional do minério, com um teor de pureza sem concorrente à altura, e também das restrições que são feitas em outras partes do mundo. A English China Clay, que era a maior de todas, não pôde manter sua produção na Cornualha, em sua própria terra de origem, a Inglaterra, e acabou sendo incorporada em 1999 pela francesa Imetal, que controla a Imerys. O Pará não pode continuar a ser apenas cenário para essas estratégias, sem tirar os benefícios possíveis que suas ricas jazidas de caulim podem lhe proporcionar.

Todos esses elementos compõem um caldo de cultura que ameaça a sociedade, sem que essas grandes empresas se sintam obrigadas a rever o seu papel nesse cenário, que resulta de sua presença. Se não tomarem espontaneamente essa iniciativa, é necessário compeli-las a assumi-la. O acidente do dia 11 foi uma advertência. Espera-se que seja levada na devida conta.

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Lúcio Flávio Pinto é o editor do Jornal Pessoal, de Belém, e autor, entre outros, de O jornalismo na linha de tiro (2006).



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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