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Sobre a cultura política do Partido Democrático 2

Alfredo Reichlin - Outubro 2007
Tradução: Josimar Teixeira
 

Gianni Toniolo nos convida a refletir sobre o fato de que a "grande mutação" a que estamos assistindo é de alcance maior em relação até mesmo àquele grande "salto" da condição social do homem que foi o advento da revolução industrial. E nos lembra que os homens de então precisaram de décadas para se darem conta das implicações [Ver aqui a primeira parte deste texto].

Convida-nos, pois, a não ter medo. E tem razão. Um grande partido não nasce do medo, mas da esperança. Podemos dizer o que quisermos sobre os custos desta grande mutação, mas o fato é que as portas de um novo progresso não se fecharam, mas se escancararam. É suficiente o fato de que estamos assistindo à mudança mais rápida e impressionante da presença do homem na cena do mundo. Não penso só nas ondas migratórias. Só no último decênio, um bilhão de jovens asiáticos saiu da escuridão milenar de aldeias miseráveis e entrou na rede dos consumos, dos carecimentos, da informação. Com absoluta necessidade, pois, de novas identidades e também - naturalmente - o risco de que, na ausência de outros valores, o vazio seja preenchido pela violência criminosa e pelos fundamentalismos religiosos.

Criou-se, em definitivo, um vazio de soberania. É verdade que o Estado não desaparece de modo algum. Mas o que se registra é seu enfraquecimento como o lugar exclusivo da representação política e, portanto, como o fiador dos direitos e dos deveres. A novidade é esta: é o enfraquecimento daquilo que até agora deu base à democracia política e forma às sociedades modernas, fornecendo a elas as razões do "estar junto" (além, inclusive, do puro interesse econômico-corporativo) e, portanto, o sentimento de um destino comum.

Abriu-se, assim, uma grande questão de democracia. E, ao mesmo tempo, de segurança e de identidade. Pode-se dizer mais: de sentido, de significado. E a razão está no fato de que a ultrapassagem das fronteiras nacionais se faz acompanhar da colocação em questão do conjunto de regras, de corpos intermediários, de relações consolidadas, costumes e identidades culturais que formam a sociedade. Abre-se, assim, uma enorme interrogação, que, embora inexpressa, emerge todo dia do noticiário: uma sociedade pode existir se for apenas uma soma de indivíduos? Se sim, a que preço?

Este é o problema não resolvido, e é grande a contradição que o novo partido deve chamar sobre si. Por um lado, a evolução das coisas intensifica a complexidade, as interdependências, cria redes e, portanto, aumenta os conhecimentos, multiplica as informações, acentuando assim as demandas e os carecimentos dos indivíduos: carecimentos não só materiais, mas de relações, de responsabilidades para com um mundo que só pode viver se "estivermos juntos" (pensemos no uso dos recursos naturais e na necessidade de regular as grandes migrações). Por outro lado, enfraquecido o velho Estado-nação, não se vê mais quem dita regras, proporciona garantias, impõe uma ordem e uma "forma" a esta sociedade.

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É neste quadro que se mede o anacronismo da disputa, que nos ocupou tanto, entre aqueles que não querem "morrer socialistas" e aqueles que não querem "morrer democratas-cristãos". Do que se está falando? A Europa de hoje está anos-luz distante seja da que viu o europeísmo católico baseado na chamada economia social de mercado dos Adenauer, dos De Gasperi e dos Koll, seja da socialdemocrata do compromisso com o capitalismo industrial, seja, mais ainda, de um eurocomunismo improvável.

Desde então, tudo mudou. Terminou, com o velho mundo industrial, aquele tipo de embate político e social. A Europa não é mais o centro do mundo, e a "questão social" está cada vez mais determinada por um mecanismo de acumulação que explora muito mais do que os recursos criados pelo trabalho assalariado. Torna-se dominante o problema da qualidade do desenvolvimento e da sua sustentabilidade. E, se for verdade que esta evolução está cada vez mais condicionada pela ação do homem moderno e pelo uso que ele está fazendo de uma nova ciência, isto significa que precisamos de um novo humanismo.

Humanismo é uma palavra imponente, que merece uma reflexão atenta. Sinto muito o peso do silêncio de tantos intelectuais. E acredito tenha chegado o momento de elaborar não uma nova ideologia - por favor -, mas de começar a formular o problema de um pensamento que, de qualquer modo, volte a partir dos grandes fatos.

O que poderia ou deveria ser a política no mundo novo? Depois de Maquiavel e da autonomia da política não mais legitimada pela Igreja, depois da Revolução Francesa e dos direitos do cidadão, depois da descoberta marxiana de que a estrutura jurídica não pode ser separada das relações de produção, talvez tenha chegado o momento de compreender que não mais se sustenta uma política que não se alimente desta exigência de novos direitos e mesmo de conhecimentos, para dar um significado inclusive moral à existência dos indivíduos e ao futuro da condição humana. Será este o tema do novo humanismo? Será preciso voltar a ele, mas não tanto para definir a fisionomia ideal básica do novo partido (coisa prematura), quanto para indicar, pelo menos, um leito comum no qual culturas diversas possam continuar a viver juntas e a coabitar.

Dir-se-á que não é realista propor temáticas deste tipo no debate sobre o novo partido. Penso o contrário. Não me parece realista que um partido possa nascer sem abrir uma discussão sobre a necessidade de começar a responder àquele vasto mundo, sobretudo juvenil, o qual não vê razão para militar hoje à esquerda. Uma razão que, afinal de contas, consiste em crer que é possível e justo lutar por um mundo melhor.

E é também por isso que o Partido Democrático deve ser - diria que é obrigado a ser - um partido novo. De outro modo, será um episódio insignificante do pequeno teatro da política. Para não sê-lo, deve partir das novas tarefas que nos desafiam. Porque é sua natureza nova que permite a uma parte de nós não renunciar à idéia de que no futuro se reapresentará uma demanda de socialismo, e, ao mesmo tempo, permite a outros conceber um sujeito unitário do reformismo como o lugar em que as razões do laicismo convivem com as aspirações éticas e religiosas, que - diz Scoppola - representam a razão fundamental para empenhar na política a condição de crente.

Mas qual parte do mundo católico se encontra neste terreno? De fato, esta é uma pergunta difícil. A Igreja "quase política" do cardeal Ruini se deslocou à direita, no sentido de que parece ter abandonado a grande fase da reconciliação com o mundo moderno. Não pretendo me aventurar neste terreno. Tenho a impressão, no entanto, de que, por trás de certas arrogâncias e certos triunfalismos, existe uma atribulação muito profunda. De que medo nasce esta cruzada contra o "relativismo", que chegou a pôr em discussão a laicidade do Estado como fiador dos direitos iguais e, portanto, da democracia?

Ninguém nega às religiões o direito de intervir no espaço público. Coisa diferente é uma cruzada contra uma idéia de relativismo que confunde o grande pensamento moderno, de Descartes até o Iluminismo, com niilismo e negação de toda verdade e todo valor. Isto é, com algo que é o contrário da sua substância fundamental, que consistiu em dar à razão humana um fundamento que não pretenda se subtrair ao devir do mundo. Pode-se discutir este pensamento, mas é difícil negar que ele pôs a consciência humana diante de novas e mais altas responsabilidades em relação ao sistema de preceitos das filosofias medievais.

Mas o problema que aqui interessa não é filosófico. Sobre esta base maniqueísta, formou-se na Itália uma nova direita: os chamados "ateus devotos", que se apóiam nos temores das pessoas para proclamar a necessidade de uma (impossível) sociedade fechada: uma espécie de "fortaleza branca", que ergue o estandarte das cruzadas contra os infiéis. O nascimento do Partido Democrático comporta - não o ocultemos - um conflito com esta posição.

O importante é que a discussão seja séria e não se limite às relações formais entre Estado e Igreja, mas se eleve até o tema que neste ponto se impõe e que não é o da religião, mas o de quais diferentes concepções do mundo e da sociedade estão realmente em campo. Este me parece ser o tema real. Por um lado, a idéia de uma sociedade fechada; por outro a busca de uma nova sociedade mundial, aberta, que assuma as novas demandas postas pela globalização, os problemas até mesmo antropológicos postos pelas novas ciências, as ondas perturbadoras da imigração, os riscos para o ecossistema.

O que me interessa é o papel que deve desempenhar o Partido Democrático. Os católicos democráticos desempenharão o seu, e em parte já se pronunciaram. Pessoalmente, eu, laico, parto de Gramsci. Da sua pergunta sobre se o o velho laicismo "ainda fosse capaz de satisfazer as necessidades intelectuais do povo". Daí ele deduzia, precisamente, a necessidade de criar um novo humanismo adaptado às necessidades do mundo moderno, em contraposição à visão dominante: abstrata, mesquinha, excessivamente individualista e egoísta.

Muito tempo passou desde então, e seria a hora de os descendentes de Gramsci se interrogarem sobre se o papel deles não é, afinal de contas, desfazer-se da caricatura do laicismo reduzido a uma mísera ideologia do egoísmo social, que, enquanto proclama o indivíduo como o único sujeito, não opõe a menor resistência à poderosa ideologia que faz do mercado o árbitro quase absoluto do destino de todo e qualquer ser vivo, rico ou pobre, branco ou negro.

A resposta a esta espécie de "pensamento único" é, de fato, uma grande razão de diálogo e de encontro. Não devemos buscar veleidosas sínteses ideológicas nem contar com o fato de que a mensagem cristã se reduza a uma espécie de religião civil. E muito menos pedir, em nome de um projeto político para o governo do mundo, a renúncia àquela fé que transcende a condição humana.

Deve-se respeitar quem crê não se encontrar o reino de Deus nesta Terra. Mas pensamos na extraordinária importância que teria a abertura de um novo diálogo entre a esquerda e as forças que sentem ser tempo de reviver a revolução cristã como indagação, como caminho, como impulso para a paz entre os homens e para a convivência entre eles, e, portanto, como algo cuja natureza é incompatível com o integrismo.

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É paradoxal que os DS tenham sofrido uma cisão motivada pela acusação de que o Partido Democrático se colocaria à direita em relação ao conjunto das forças socialistas e democráticas. Na realidade, tudo requer que se construa um lugar mais amplo, no qual as paixões morais e o compromisso moral de parte tão grande do cristianismo, junto com o grande pensamento iluminista e laico da Europa culta, possam se encontrar com as forças históricas do socialismo, num processo de contaminação. O Partido Democrático não significa, de modo algum, uma subestimação das razões pelas quais a esquerda tem necessidade absoluta de uma nova Europa como o lugar em que se possa organizar um poder político global.

Não sei se a nova Constituição européia, sobre a qual tem se discutido, já representa uma resposta que vá nesta direção. Parto de uma certeza e de uma dúvida. A certeza é que o vazio cada vez mais perigoso e destrutivo para a esquerda, representado pela separação entre o poder da economia e o poder da política, não pode ser preenchido pelos velhos poderes do Estado-nação. A dúvida é que possa existir um "governo mundial" da globalização. Qual? A ONU? Daí a importância - parece-me - da tese que propõe a construção de funções políticas globais e de ordenamentos supranacionais capazes não de expropriar as nações, mas de estimular suas virtudes e capacidades, dando a elas recursos que superem o âmbito nacional.

Em outras palavras, seria preciso pensar em instituições e ordenamentos externos que não cancelem as funções que só o Estado nacional pode desempenhar, na qualidade de fiador de identidades históricas e culturais, produtor de bens públicos (pensemos na instrução e no capital humano), fator insubstituível de coesão da sociedade, mas instituições que resolvam problemas de ordenamento, de regras e de funções de modo a restituir soberania aos Estados (e não subtrair), tornando-os capazes de gerir grandes problemas, como a pesquisa, a emigração, a defesa do ambiente, os direitos humanos, a segurança.

Parece-me esta a resposta ao problema de vazio democrático criado pela globalização. É a Europa. São novas instituições supranacionais que "vejam" os problemas que a finança, por si só, não vê. Forçar assim também as forças de mercado à aceitação de regras, padrões, iniciativas comuns (moeda única, patentes, regulação das Bolsas), sair da rigidez de velhos modelos e enfrentar problemas novos não mais passíveis de ser governados só pelo mercado e de ser resolvidos sem um novo nível da decisão política.

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Refletindo sobre a natureza em parte nova destes temas, é inevitável perguntarmo-nos o que é um partido no mundo de hoje. Como é possível organizá-lo e fazê-lo viver numa sociedade não mais das classes, mas dos indivíduos? Afinal, os grandes partidos existiram porque eram, uns mais, outros menos, "nomenclatura das classes" e extraíam sua força das fraturas e contradições de uma sociedade que não existe mais. Penso que é inútil discutir sobre o processo constituinte de um novo partido, se não examinarmos esta questão crucial: o que é e para que serve um partido. Porque é absolutamente verdadeiro que acabou o tempo daquilo que se chamou de Estado dos partidos. Não se governa mais só em nome de um bloco social representado pelo partido e pelo sindicato.

Além disso, governar significa cada vez mais: estabelecer regras, arbitrar uma crescente complexidade e variedade de poderes (não só econômicos). Significa levar em conta a dimensão e o condicionamento internacional dos problemas. Comporta o uso de agências e de instrumentos de conhecimento que os partidos não têm.

Então, não são mais necessários os partidos? Responderia que não é assim, porque a grande novidade é que, para garantir o "governo longo" da sociedade, mais do que nunca são necessários organismos aos quais cabe tornar clara e pôr em movimento uma agenda política mais ampla. Esta é a questão. Recua o partido como "dono" do governo, mas avança mais do que antes como fator guia da comunidade.

Em outros termos, o partido parece-nos menos útil como instrumento de poder, enquanto mais do que nunca há necessidade de partidos que se coloquem como direção ético-política e como reformadores da sociedade, na medida em que mobilizem forças, inteligências e paixões. Eis por que o novo partido só será vital se for um partido de mulheres e de homens. Não se trata de conceder alguma coisa à pressão das mulheres para participar do governo da pólis, do qual foram até agora postas à margem. As mulheres voltam ao centro por uma razão bem mais profunda. Digo em poucas palavras: porque o mundo novo precisa de uma humanidade nova e, sem as mulheres, este empreendimento não é possível.

Em síntese, os grandes partidos se fazem com grandes idéias e também com grandes sentimentos. O mundo, tal como é, não está bem. Em amplas regiões do mundo, assiste-se agora à dissolução de todo e qualquer poder estatal, de modo que grandes massas humanas não só são pobres como também não conhecem leis, direitos, instrumentos e serviços públicos elementares. Não sabem mais quem são. E basta observar os rostos desesperados dos miseráveis que desembarcam no nosso litoral e os olhares das suas crianças para nos darmos conta do ódio que estamos semeando e dos espaços enormes que se abrem para a violência, para o tráfico de drogas e o de armas, para a corrupção e a destruição dos bens ambientais, para guerras civis endêmicas. As mulheres e os homens que se preparam para dar vida ao Partido Democrático devem sentir toda a responsabilidade que assumem e a grandeza da mensagem que enviam.

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Alfredo Reichlin foi membro da secretaria, da direção e do comitê central do PCI, além de responsável pelo Departamento Econômico e ministro do "governo sombra" daquele partido. Foi também presidente da Direção Nacional dos DS (Democratas de Esquerda). Recentemente, esteve à frente da comissão responsável pela redação da "Carta de valores" do PD (Partido Democrático). Dirige a Fondazione Cespe - Centro Studi di Politica Economica, em Roma.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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