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Violência no Brasil é uma anomalia histórica

José de Souza Martins - Novembro 2007
 

No início deste ano, a mídia nacional deu amplo destaque ao caso do menino João Hélio, morto pela ação de bandidos (alguns menores), ao ser arrastado fora de um carro em movimento, por vários quilômetros no Rio de Janeiro. A reação nacional foi de comoção. Esta semana, outro garoto (de 4 anos) foi morto, supostamente dentro de sua casa, na troca de fogo entre traficantes e a polícia. São fatos que já viraram rotina. Pergunta-se: o povo, de tanto conviver com a realidade de violência no país, está perdendo a sensibilidade?

O fato de que atos violentos, e até cruéis, como esses, se repitam com freqüência não é de responsabilidade do povo como tal nem quer dizer que tenham sido por ele assimilados como rotina. Nem é verdade que o povo esteja perdendo a sensibilidade em relação à violência reiterada. Indicação nesse sentido é a de que o Brasil está entre os países que mais lincham no mundo. O linchamento é justiçamento popular e coletivo, evidência da barbárie, sem dúvida, mas também evidência da revolta e do desamparo. É essencialmente uma forma de restabelecimento da ordem onde a ordem já não existe com o vigor que assegure a paz social. Linchamento é a justiça socialmente autoprotetiva. É forte indicação de não conformismo. Em vez de perder a sensibilidade, o povo está se tornando coletivamente violento.

Muitas vezes, a população reage a atos de violência com mais violência ainda, numa clara demonstração de que esta já se tornou endêmica no Brasil, ou, talvez, no mundo. Do ponto de vista sociológico, o que provoca esse tipo de situação? É possível acostumar-se com a violência a ponto de ela fazer parte da rotina das pessoas?

A sociedade brasileira é, historicamente, uma sociedade impotente, cimentada com uma cidadania precária e de superfície. Sociologicamente, é nesses cenários que a violência se difunde. Não devemos esquecer que esta sociedade foi edificada sobre a desigualdade profunda das três escravidões que tivemos: a escravidão indígena, oficialmente extinta em meados do século 18; a escravidão negra, oficialmente extinta em 1888; e a escravidão por dívida, ou peonagem, que nasceu e proliferou em conexão com o fim da escravidão negra e que se arrasta até hoje (temos cerca de 20 mil escravos reconhecidos).

As escravidões, no nosso caso, foram possíveis unicamente através da violência física, por meio da qual os cativos eram e são subjugados. A sociedade brasileira se dividiu historicamente entre os que batiam e os que apanhavam. Na escravidão que ainda persiste tem havido casos comprovados de coação física por meio da chibata, da tortura, da humilhação física e até da morte exemplar para aterrorizar os demais trabalhadores.

A violência no Brasil não é endêmica, é estrutural, constitutiva. Não é uma doença. É uma anomalia histórica. Mesmo brasileiros que acham que não têm nada com isso usam cotidianamente um vocabulário no trato pessoal que vem da cultura da violência e do passado. Os mecanismos sociais que requerem elos sociais violentos sobrevivem do passado e se atualizam. Todos, sem exceção, foram educados nessa cultura de minimização física do outro. Nossa mentalidade nacional e nossa identidade estão impregnadas de violência.

O filme Tropa de elite, que entrou em cartaz a semana passada e que mostra a ação de um esquadrão privilegiado da Polícia Militar, gera debates, por desnudar a tropa de elite, considerada a mais violenta dentro da corporação. Pergunta-se: quem é mais violento: a polícia ou o bandido? Ações truculentas não geram mais violência?

Vi o filme Tropa de elite e no geral gostei por uma razão: o dedo do diretor aponta na direção dos consumidores de drogas (geralmente, ricos e de classe média, além de pobres que também as usam) para sublinhar o fato de que o tráfico não existiria sem eles. Ataca a hipocrisia do discurso sobre direitos humanos na boca dos bem pensantes e dos bem nascidos, mas que nunca se referem aos graves danos sociais que os vícios causam, a começar da indústria e do tráfico da droga.

O filme desnuda, isso sim, a personagem oculta da violência. Não é um filme sobre a tropa de elite e sim sobre a elite por trás da tropa. Essa é a questão essencial do filme e não a violência. De certo modo, o diretor está dizendo que cada um colhe o que semeia. Não é a ação violenta que gera ação violenta, simplesmente. Esse é um aspecto menor do problema. É a crescente desordem social e política o fator principal da violência descontrolada.

A tropa de elite, no caso, expressa um sentimento popular grave, uma ansiedade conservadora pela ordem. O numeroso afluxo de espectadores aos cinemas e já antes do lançamento do filme, nas versões piratas que estão circulando, põe em evidência um linchamento simbólico generalizado e massivo. A tropa de elite faz, simbolicamente, o que a maioria gostaria de fazer: a limpeza, o restabelecimento da ordem. No real, a ação policial parece muito mais reação à crescente violência do crime organizado e bem armado e reação à corrupção policial, aliada do crime, inimiga da sociedade. Não há como tomar partido entre bandido e polícia, pois a população já tomou partido em favor da ordem a qualquer preço. Esse é o dilema: o qualquer preço.

Até que ponto o poder público é responsável pela situação ter chegado a este ponto?

O poder público tem a sua imensa parcela de responsabilidade pela degradação da situação social que redunda em cotidianização da violência. Mas a sociedade tem também uma responsabilidade imensa. As entidades sociais, as devotadas ao tema dos direitos humanos, as igrejas também têm grande responsabilidade, sobretudo porque ficaram cegas em busca de responsáveis e culpados e nada fizeram para saber quais são as causas, conjunturais e estruturais da violência. É no plano das causas que a violência deve ser combatida e não no plano das acusações inquisitoriais.

O que se pode fazer para reverter o atual quadro, ou estamos condenados para sempre, inclusive vendo as futuras gerações moldadas dentro desta perspectiva?

Mudar o atual quadro depende de repressão para demolir os poderes que se ocultam atrás da violência e neutralizar e enquadrar os interesses materiais e políticos que de fato estão por trás das partes em conflito nessa verdadeira guerra social. Para isso é necessário um pacto social e político pacifista e firme dos bons contra os maus. Se insistirmos em fazer de conta que a guerra não é conosco ou de que queremos a paz sem pagar o respectivo preço, então tudo continuará como está, a sociedade mutilada e dividida por um abismo imenso e intransponível.

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Este texto foi publicado originalmente em Reluz, nº 206, da Paróquia São José do Jaguaré, em São Paulo.



Fonte: Gramsci e o Brasil & Reluz.

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