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Três agraristas políticos brasileiros

Raimundo Santos - Fevereiro 2008
 

Resgatar e divulgar as idéias de Caio Prado Jr., Alberto Passos Guimarães e Ivan Ribeiro - eis os objetivos do livro Agraristas políticos brasileiros, de autoria de Raimundo Santos, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e colaborador deste site. Editado pela Fundação Astrojildo Pereira, a obra teve apoio do Nead (Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural) do Ministério de Desenvolvimento Agrário e do IICA (Instituto Interamericano para a Cooperação na Agricultura).

Por que é importante resgatar a produção destes três intelectuais?

Chegar até eles constitui estímulo para que nos lembremos da responsabilidade de pensar um agir conforme parâmetros intelectuais, que é um dos modos mais efetivos de inconformarmo-nos com o atual processo de naturalização do debilitamento dos valores cívico-republicanos.

Vivemos um momento de grande insegurança, que nos vem não só da violência mas também da erosão dos valores, das instituições e particularmente da política, esta que é a competência humana mais habilitada a equacionar soluções para os problemas.

O nosso mundo político ainda nos assegura seguir o curso de melhoria progressiva sob o Estado democrático de direito. Com todo o desgaste, os partidos continuam dando vida ao sistema político. É difícil imaginar a democracia neste país, pelo menos a curto e médio prazos, sem que exista um partido de centro-direita, do tipo do DEM, partidos socialdemocratas, como o PT e o PSDB, e um agrupamento pluriclassista, como o PMDB, além das pequenas siglas que incorporam franjas demasiadamente pobres da sociedade.

De outro lado, temos uma intelectualidade que exerce função importante em uma área "culturalmente iluminada" (lembrando-me de um conceito do isebiano Álvaro Vieira Pinto), hoje larga no país. Contingentes cada vez maiores interagem com essa parte "iluminada" do mundo da nossa cultura de massa, e para tanto a mídia de opinião tem contribuído muito ultimamente.

Trazer até nós aqueles autores, num pequeno empreendimento como o representado por este livro, constitui um gesto em meio a muitíssimas outras iniciativas que ocorrem no país. Caio Prado Jr., Alberto Passos Guimarães e Ivan Ribeiro (jovem ensaísta que morreu, em 1987, no Pará, por ocasião do acidente de avião que vitimou o ministro da Reforma Agrária, Marcos Freire, e outros membros da sua equipe) deram testemunhos criativos do seu tempo, que estimulam a seguir adiante.

Qual é a principal contribuição dos agraristas políticos brasileiros para a compreensão dos conflitos agrários?

Lugar de tensões, de enorme pobreza, mas também de oportunidades, o mundo rural sempre ocupou o pensamento social brasileiro. A importância de relembrar Caio Prado, Alberto Passos Guimarães e Ivan Ribeiro (e outros autores) está em revisitar um modo instigante de conceber as coisas brasileiras.

Façamos um parêntese. Com os textos que escrevi sobre esses ensaístas ("Caio Prado Jr.: valorização do trabalho e sindicalismo rural", "Alberto Passos Guimarães e a revolução agrária não-camponesa" e "Ivan Ribeiro: via prussiana, democracia política e reforma agrária"), temos agora, digamos, apenas o primeiro volume com os resultados da pesquisa "Perfis agraristas brasileiros".

Este projeto, do qual participo no CPDA [Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade] da Universidade Rural, contempla para o ano de 2008 um segundo momento de divulgação, relativo à outra grande matriz que inspira as mobilizações agrárias mais notáveis do último quartel do século XX. Como se sabe, é José de Souza Martins a referência desse agrarismo que tem no MST sua expressão mais militante.

Quanto aos três ensaístas mais antigos, não se cogita neste livro que sejam "intérpretes" do mundo rural de hoje. A idéia é a de que trazem até nós um estilo de pensamento que julgo ter sido - e continua sendo ainda mais agora - útil aos dois maiores atores da reforma do mundo rural: o governo (os governos FHC e Lula) e os movimentos sociais, principalmente a Contag e o MST, quase sempre envoltos num confronto de virulência desnecessária.

Façamos um outro parêntese. Na pesquisa "Perfis agraristas brasileiros", friso alguns rounder points presentes no estilo de pensar o rural brasileiro, característicos de toda uma tradição. Mencionemos um nome que não compõe o livro, Ignacio Rangel, um autor que esteve preocupado no pré-64 com que a reforma agrária redistributivista não se tornasse elemento desestabilizador da democracia.

Caio Prado Jr. também disse naquela época que se carecia de "alicerces políticos sólidos" para encaminhar as reformas de grande porte, como ele considerava as "reformas de base" daquele tempo. O historiador insiste muito num processo de reforma agrária com base em reivindicações trabalhistas e nos sindicatos, "na generalidade do país" (e não assentada em dispersos conflitos de luta pela terra), um processo que daria substância produtiva ao nosso capitalismo de "negócios fáceis".

Outros autores passaram a ver as mudanças agrárias e rurais como resultado de um "reformismo permanente", sem messianismos (por exemplo, Ivan Ribeiro). Esses ensaístas começaram a afirmar uma tradição que vê a reforma agrária como uma reforma agrária ampliada, ou seja, "não essencialmente agrícola", como chegou a propor José Graziano da Silva, em meados dos anos 1990, já atento à diversidade do novo rural do fim do século.

Segundo este reformismo, composto por um conjunto cada vez mais diversificado de medidas e programas, o tema da terra já não serviria mais como meio para operações de poder, em torno da figura do camponês. Não por acaso, este mesmo reformismo desdramatiza o tema, retirando-lhe toda acepção campesinista-revolucionária. Assim, o pequeno produtor é amplamente chamado a exercer - numa nova agricultura familiar - papel socialmente decisivo na renovação do mundo rural, ao lado da grande economia agrária destes nossos dias.

Qual o critério adotado para escolher os textos destes autores, que o livro também apresenta?

Resolvi incluir na segunda parte do livro apenas um texto de cada ensaísta, de modo que o leitor pudesse ter contato imediato com o que acredito ser seu argumento chave. Aliás, penso que nenhum deles é autor restrito ao tema agrário. Nesse sentido, nos meus artigos da primeira parte do volume, espero ter sugerido a associação entre esses "agraristas políticos" e três traços constitutivos da matriz que, às vezes, chamo de conexão Caio Prado–PCB: no caso do historiador, uma interpretação de Brasil; em Passos Guimarães, a habilidade no agir político; e em Ivan Ribeiro, a hipótese prussiana mobilizada proveitosamente na leitura da modernização do mundo rural.

Esses traços não se apagam com o tempo. Os autores do nosso pensamento social - inclusive Martins, hoje visto com reservas pela interpelação ao MST e pela crítica à própria Igreja - não se perdem ao longo do caminho. Ao contrário, suas idéias constituem patrimônio que educa. Por que esses clássicos não podem continuar com sua "pedagogia" de transmissão recriadora de temas e conhecimentos?

Em matéria de compreensão do conflito agrário, o maior perigo é a idéia do "marco zero", que leva a práticas incertas, ao vezo de pesquisas empiristas, de que às vezes se servem atores interessados em despolitizar os temas agrários e rurais. O desafio é voltarmo-nos para o rural, hoje muito ampliado com novos e novíssimos temas, interpelando nossa tradição intelectual. Estamos falando de quem está tanto na esfera acadêmica e na governamental quanto na linha de frente do associativismo.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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