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O agrarismo brasileiro na interpelação de Caio Prado Jr.

Raimundo Santos - 1999
 

Em seu já famoso balanço do século, Eric Hobsbawm confirmou na "fatalidade histórica" dos camponeses a predição do Manifesto comunista segundo a qual o antigo mundo agrário, como tudo que parecia sólido no ancien régime, também haveria de desaparecer com a generalização da modernidade [1].

A bibliografia da história comparada já descreveu em três grandes modalidades a trajetória dos camponeses nos processos de "construção do mundo moderno": ora eles seriam o grande entulho a ser removido ao longo do tempo para a vinda do capitalismo liberal (classes empedernidas durante a Revolução Francesa, domesticadas somente após dois impérios); ora classes subjugadas pela violência como nas experiências de modernização conservadora alemã e japonesa; ora, ainda, grupos disponíveis à mobilização das revoluções comunistas como um outro tipo de processo modernizador (Moore Jr., 1983).

O marxismo tomou o destino dessas classes agrárias tanto como objeto sociológico quanto como tema relevante da sua ciência política. Enquanto sociologia, ele sempre as tratou como coadjuvantes de uma história realizável por um sujeito universal de definição moderna e vocação à urbe. São emblemáticos o paradigma da expropriação camponesa de O capital e os escritos de Marx sobre a dominação britânica na India, o texto engelsiano sobre a situação dos camponeses na França e na Alemanha, especialmente o argumento que Lenin opôs à tese do comunitarismo russo como atalho à desintegração do mundo agrário invadido pelo mercado.

Numa perspectiva de Ocidente, o líder bolchevique imaginou um trânsito do tradicional para o moderno menos doloroso e de ganhos emancipatórios para camponeses potenciais aliados de um movimento político de constituição de uma nova ordem social. Lenin transitou de uma compreensão da questão agrária a partir da teoria social (tema da "penetração do capitalismo na Rússia" contra o por ele chamado romanticismo econômico), até chegar a uma teoria política "aplicada" - conceito de "governos provisórios" de universalização da democracia política, noção de aliança operário-camponesa como hegemonia - que apontasse solução ao paradoxo de uma modernização conduzida por classe diversa ali onde fosse débil o impulso burguês, como sugerido no Manifesto comunista. Em Duas táticas da socialdemocracia russa, vale repetir, ele recusara a utopia dos populistas russos, contrapondo-lhe uma mobilização agrária associada a uma coligação pluriclassista de centralidade popular, portadora de impulso suficiente para conduzir os camponeses a um nível mais elevado de civilização, à vida urbana plena generalizável no mundo agrário, como, depois, sinalizam os textos sobre a eletrificação rural e a Nova Política Econômica das concessões à pequena produção, a partir de 1921.

O próprio marxismo chinês, por definição, não haveria de reivindicar superioridade para o campesinato. O Partido Comunista Chinês teve de conciliar a tensão de sua práxis de Oriente com o marxismo-leninismo oficial pós-17 e de acomodar, numa síntese proveitosa, o conceito de classes sociais como componentes antagônicos da sociedade em mutação, que recolhe de Marx, e a dissertação leniniana do partido político, este elevado a força por excelência de ruptura com o mundo dos camponeses e dos intelectuais-administradores-guardiães da ordem feudalista e colonial (Pishel, 1986).

Contido pela bolchevização que a Internacional Comunista (IC) impunha aos PCs, Mao Tsé-Tung, como se sabe, terminaria radicando o seu cálculo estratégico numa associação tripartite entre intelligentsia, operários e campesinato no Exército-Partido Comunista, locus de formulação e agente difusor de uma ideologia de modernização. Durante a revolução cultural, bem depois, quando da crise de legitimidade do novo sistema institucional, é que o maoísmo como tal teria se notabilizado como força mobilizatória de alto componente ético-educativo e exibido traços utópicos, embora as suas inspirações agrárias já não fossem tão visíveis.

De qualquer modo, nessa tradição marxista comunista, o problema camponês se define a partir do deciframento da formação social segundo a leitura da lógica da modernização agrária que lhe é específica; as classes do pretérito iriam ter os seus movimentos sociais depentes da interpelação da ponta moderna e urbana dos grupos subalternos. O novo corpus marxista-leninista da IC vai alterar a compreensão da política enquanto auto-aprendizado da dimensão do geral; e o leninismo vai se reduzir à função redutora dos valores artesanais e da dispersão próprios aos camponeses; estes, condenados a perder importância na saga histórica da classe operária, como observou Stalin, ao prescrever alianças concêntricas segundo a confiabilidade - a princípio, unidade até com os camponeses ricos; mais adiante, camponeses médios, pobres; e, afinal, com grupos semi-assalariados, assalariados, afastada qualquer veleidade utópica. Depois, como ideologia da nova ordem, o marxismo-leninismo se converteria em cultura política mobilizável para sedimentar, a partir da concentração produtiva forçada, um processo de "intelectualização comunista" das antigas classes em laboratório de homogenização social presidido pela política (Stalin, 1941).

E na memória brasileira, há algo parecido e que pertença a esse mundo intelectual? É grande o consenso em reconhecer nas Ligas Camponesas e nos sindicatos comunistas do pré-64 o marco dos novos movimentos sociais agrários, por onde, pela primeira vez, grandes contingentes pediam passagem para o sistema político nos primeiros anos 50. Até que não seria difícil considerar a controvérsia do PCB com Julião como um bom registro da concorrência entre as duas articulações sociopolíticas principais dessa época. Reconhecê-la como tradução brasileira daquelas teorizações, porém, já seria bem mais difícil. Com frequência, Caio Prado Jr., outsider e comunista rebelde, aparece na historiografia discutindo a tese da feudalidade, mas a sua obra ainda ainda não foi visualizada como momento alto de uma qüerela com foros de nossa "clássica "discussão sobre o tema da natureza das relações do campesinato com a política.

Tematizando a marca do nosso mundo agrário em sua dissertação sobre o "capitalismo colonial", Caio Prado Jr. precocemente adiantou o argumento com o qual irá negar caráter estrutural aos nossos "restos feudais", cuja superação os comunistas viam como uma revolução agrária e antifeudal, transformada numa "teoria" que o historiador considerava a grande viseira do seu partido. Caio Prado Jr. se colocou na contracorrente da própria tradição, com uma argumentação bem interessante e que pode ser considerada chave de leitura de um debate verdadeiramente expressivo daqueles tempos. Se aqui - deslocando a conotação antiga - por agrarismo entendermos a "significação" das lutas agro-reformistas, segundo o protagonista social que se privilegie nas ideologizações dos seus atores políticos, poderíamos revisitar aqueles dois agrarismos do final dos anos 50 e começo da década de 60, o camponês, de Julião, e o "sindical", do PCB (se lido como queria o militante ilustre), como as interfaces de um emblema que ainda não esmaeceu na memória brasileira e, quem sabe, ainda hoje seja um incômodo em nossa cultura política.

Lido o anticampesinismo caiopradiano como dissertação de publicista, isto é, de um autor que interpela para potenciar a ação do protagonista político, ele se torna bastante qualificador do modo como nos 50/60, tanto no discurso comunista como até mesmo em alguns autores nacional-desenvolvimentistas, se problematizava a questão agrária. A interpelação de Caio Prado Jr. ao PCB daquela época de irrupção dos camponeses na cena política pode ser reconstituída a partir de duas dimensões interligadas - a da (sua mais conhecida) argumentatação oposta à tese da feudalidade; e a da crítica à práxis agrária concentrada na luta pela terra, segundo Caio Prado Jr., uma priorização que só fazia subestimar, se não muitas vezes até mesmo "oblitera(r) por completo o que realmente se apresenta(va) na realidade do campo brasileiro. A saber, a profundidade e extensão da luta reivindicatória da massa trabalhadora rural por melhores condições de trabalho e emprego" (Prado Jr., 1ª ed., 1966; 1978a: 53).

O que se segue não constitui mero reprise de um passado, com clichês e imagens sobre o comunismo brasileiro, mas um exercício de história intelectual a partir de um (grande) texto, tomado como referência de leitura de outros menores e do material não-convencional aqui habilitado como peças valiosas para retratar as intenções dos protagonistas (Skinner, 1995). Não nos estenderemos, no entanto, em considerações sobre o contexto histórico-intelectual da época, como se pede a este tipo de exercício, supondo-o referido nos próprios temas e questões que fluem na qüerela agrarista, para assim não aumentarmos o presente texto.

Esperamos chegar a uma aproximação ao nosso "debate clássico" a partir de duas elaborações intelectuais explicitadas (na ensaística; em debates congressuais, resoluções, imprensa partidária etc.) que, parece-nos, recortam os termos da controvérsia agrarista: de um lado, a "pressão" de Caio Prado Jr. para levar o seu partido a considerar a verdadeira "dialética econômica" do campo brasileiro - grande empresa, assalariamento - como o dado estratégico ao qual todos os aspectos da questão agrária deviam se referenciar. De outro, o movimento "reativo" do PCB, recusando-se a ouvir o seu militante, preferindo viver as vicissitudes a que o levava a tese feudalista. Mas esta disjuntiva não revela toda a história do caminho de pedras andado por esse partido para se livrar de um antigo campesinismo instrumental e reconhecer as razões do seu historiador, num processo de adaptações gradativas, marchas e contramarchas. Daí ser pertinente associar a obra militante de Caio Prado Jr. ao "pensamento agrário" dos textos pecebistas mais dissertativos produzidos no contexto das mudanças da política comunista que tem início a partir de meados dos anos 50.

Caio Prado Jr. participa desse debate com uma teorização que vinha de longe. Já no livro de 1933, está delineado o ponto do qual o historiador paulista não se afastará: o "caráter geral da colonização" que particularizara o caso brasileiro, ao ter havido aqui uma grande mobilização de recursos e mão-de-obra vindos de fora para tocar a grande empresa voltada para o mercado externo (Prado Jr., 1933). Tal capitalismo agrário consagrar-se-ia mais ainda em Formação do Brasil contemporâneo (1942), onde ele expõe o seu circulacionismo de referência ("A análise da estrutura comercial de um país revela sempre, melhor que a de qualquer um dos setores particulares da produção, o caráter de uma economia, sua natureza e organização. Encontramos aí uma síntese que a resume e explica") (Prado Jr., 1942: 226). O equívoco, diga-se à margem, tem sido cobrado por alguns marxistas-leninistas brasileiros, mas há também quem o considere parecido ao deslize de Gramsci, o qual, ao minimizar a economia, iria chegar a uma rica teoria política - aqui também o equívoco se constituíra num "erro fecundo" capaz de dar conta da sociedade colonial "mais externamente determinada"; e, de fato, havia-lhe permitido elaborar naquela obra uma teoria do Brasil Colônia hoje considerada definitiva [2].

Até hoje constitui ponto pouco trabalhado o destino da teorização de Caio Prado Jr. no PCB. Ela vai estar presente em várias controvérsias e fóruns desse partido, mas não tem pleno curso. Antes de 1947, não podemos ainda localizá-la; de forma incisiva, ela está no IV Congresso desse ano; nos V e VI congressos, de 1960 e 1967, especialmente neste último ao qual ele dedica A revolução brasileira - sem falar na ensaística publicada, e muito lida fora do PCB, no decênio de 1955 a 1964 na Revista Brasiliense. Se Caio Prado Jr. é a própria retidão comunista, o seu marxismo-leninismo e visão de socialismo real são os mesmos do seu partido, onde a raíz das divergências? Na análise de conjuntura, quando um, nas páginas daquela revista, e o outro, na sua própria imprensa, interpretavam os acontecimentos políticos da época? O PCB, valorizando os "aspectos positivos" do governo (JK, Jango), Caio Prado Jr., sem tanto otimismo?

Em uma larga experimentação, Caio Prado Jr. segue diversas trilhas para tornar cada vez mais incisivo o seu argumento contraposto à idéia de revolução agrária antifeudal. Já na Tribuna de Debates do IV Congresso de 1947 (adiado e só realizado em 1954), ele voltara ao tema da origem da economia agrária estruturada para o sistema produtor da grande empresa mercantil, a fazenda brasileira mais se parecendo com a fazenda de escravos romana do que com qualquer formação social representativa do feudalismo [3].

Num dos seus textos escritos para o V Congresso de 1960, encontramos uma problematização da questão agrária a partir de um recorte "mais diretamente político". Ou seja, por conta da apreciação que Caio Prado Jr. fazia da correlação de forças presentes naquela conjuntura, segundo a qual não era possível avançar mais o processo de transformação agrária, ele passa a defender então a tese de que a libertação da terra (das travas à "livre mercantilização") mediante tributação poderia vir a ser (mutatis mutandis, como a nacionalização em Lenin) o "passo inicial e preliminar" de uma reforma agrária (aqui o ponto a destacar) que tanto favoreceria as massas de sem-terra como estimularia a economia agrária, melhorando a oferta de empregos e as condições de trabalho para o grupo social estratégico: os assalariados e semi-assalariados. Isto é, uma "reforma agrária mista", camponesa e fundamentalmente de revitalização da economia agrária de grande empresa. (Prado Jr., 1960a; in Santos, 1996b). Por fim, na última obra importante, a de 1966, Caio Prado Jr. retoma o ponto, em boa parte já desenvolvido na ensaística da Revista Brasiliense (Prado Jr., 1979), e completa o argumento. Agora denuncia o "apriorismo conceitual" (que levara o PCB a importar os modelos da IC e a construir com eles a sua imagem de Brasil), mobilizando a conceituação leniniana de antifeudalismo, cujos pressupostos - economia camponesa, extração não-econômica do excedente, ocupação efetiva da terra, empresariamento da produção, etc. - não encontrava correspondência no país.

O que se pareceria mais com a economia camponesa - a pequena produção - restringia-se a áreas de pouco peso econômico e importância secundária (a região das Ligas Camponesas, entre a zona da mata e o agreste, no Nordeste; o Oeste do Paraná e o Centro-Norte de Goiás e o "alto interior do país": os sertões do Nordeste, da Bahia e de Minas Gerais). E isso não poderia sustentar uma reforma agrária de tipo camponês. O ponto sempre reiterado: parcela esmagadora do trabalhador rural vinculava-se aos principais setores produtivos como vendedores de força de trabalho, único grupo social capaz de protagonizar o processo de mudanças no campo (Prado Jr., 1966).

Caio Prado Jr. fará da desatenção para com o assalariamento a debilidade política do agrarismo do seu partido. Eis aqui a interpelação: "No que se refere à questão agrária, o Programa de 1961 (sic) inclui dois itens, um relativo à 'reforma agrária', consistente na desapropriação das grandes propriedades incultas ou pouco cultivadas, abolição da meia e terça, entrega de títulos de propriedade aos posseiros, estímulo ao cooperativismo, assistência, etc.; e outro item, colocado em passagem largamente apartada da primeira e com o mais variado sortimento de assuntos de permeio, referente à extensão da legislação trabalhista para o campo", observa ele comentando aquele texto, para assim revelar a natureza do problema: "A proposição dessas medidas não se apresenta, contudo, de forma sistematizada, ligada e articulada em conjunto que inspire uma interpretação adequada da realidade brasileira" (Id.).

Ele aponta para a duplicidade de orientação daí decorrente e volta citar este outro trecho da referida resolução do V Congresso (na verdade, de 1960): "A fim de impulsionar a organização das massas do campo é necessário dar atenção principal aos assalariados e semi-assalariados agrícolas. Sua organização em sindicatos deve constituir a base para a mobilização das massas camponesas". Para Caio Prado Jr. a primeira proposição não passava de um "cochilo" em relação à ortodoxia antifeudalista e, como "réstia de bom senso", ela logo se desfazia no capítulo do mesmo texto "Normas de ação prática", do qual ele volta a citar esta outra passagem ("incoerente"): "A organização dos camponeses deve partir das reivindicações mais imediatas e viáveis como a baixa das taxas de arrendamento, a prorrogação dos contratos, a garantia contra os despejos, a permanência dos posseiros na terra e a legitimação das posses etc." Caio Prado Jr. queria mostrar como tal ambigüidade levava o PCB a priorizar a questão da luta pela terra e como esta concentração "só freava" a mobilização do grupo estratégico radicado na ponta moderna da agricultura.

O historiador paulista - nisso, ao contrário do PCB - parece querer apontar, abertamente, para um "Ocidente" agrário, mas não consegue transcender a própria dissertação, inspirada na idéia "clássica" de grande empresa, até uma teoria do conjunto da formação social que lhe desvendasse a natureza do processo modernizador; e/ou daí formular uma estratégia política de alcance nacional, como será o caso do revisionismo político do seu partido após-54. Sua maior contribuição vai consistir na proposta de generalização da lei trabalhista para varrer do mundo rural os resíduos pretéritos, como observava ele, mais de origem escravista.

Contrapondo-se a uma teoria da revolução brasileira à Oriente que atribuía ao PCB, Caio Prado Jr. mostrava, ademais, a ilusão do antiimperialismo burguês - a outra peça da teorização pecebista -, inclusive causa do envolvimento na "aventura janguista" e da derrota de 64, como chega a dizer; e, mais, denunciava a fragilidade do "industrialismo artificial" (Id.); daí as razões da sua rejeição ao que ele já chamara no debate de 1960 de "pecebismo político das improvisações da tática da frente única" (Prado Jr., 1960b). Esta teria sido a grande barreira e a esquina do desencontro do publicista com o seu partido.

Já foi mais de uma vez lembrado que depois ele continuaria se recusando a reconhecer importância ao desenvolvimentismo da "internalização do mercado interno" pós-64 (Prado Jr., 1966; 1978b), vendo sempre como traço da formação brasileira contemporânea a contradição entre o que ele chama de formas remanescentes do Estatuto colonial e a construção (inconclusa) de uma economia voltada para as necessidades da população, através de um Estado verdadeiramente nacional (Sousa Freitas, 1993) [4]. Em sua valorização das intuições "gramscianas" de Evolução política do Brasil, Carlos Nelson Coutinho lamenta a acentuação caiopradiana no tema do atraso, viés que não só o impedia de ver o intenso desenvolvimento das forças produtivas nacionais após-64 como também a importância da questão democrática (Coutinho, 1990) [5].

Em lugar de incursões num "marxismo nacional" - capitalismo colonial, capitalismo agrário - mas sem questionar a sua própria tradição [6], o PCB terá que ultrapassar a sua "couraça ideológica" stalinista (Vinhas, 1982) para abandonar a política "de revolução no curto prazo" (um ônus da tradição, cujas versões recorrentes "golpismo" e "pressa pequeno-burguesa" ele próprio denuncia em inúmeros documentos) e superar o agrarismo instrumental do Manifesto de Agosto de 1950 (Carone, 1982) que visualizava nos conflitos agrários pontos de apoio da futura Frente Democrática de Libertação Nacional, segundo o discurso, uma coalizão a ser dirigida pela classe operária e o seu partido comunista, ao modo da experiência chinesa.

A política desenhada na Declaração de Março de 1958 importava recuperar a idéia de frente única dos tempos do antifascismo, reencontrada naqueles anos golpistas pós-54, e exercitá-la de maneira permanente; na verdade, com a emergência da articulação pluriclassista do nacionalismo, ela se reatualizava e, cada vez mais, passava a ter foros de "nova política". Aliás, é aí quando também começa a aparecer uma tendência, usando expressão atual, à tática melhorista da sociedade, isto é, uma nova percepção segundo a qual "transformações de qualidade, sem as de quantidade", sem uma acumulação de forças, tornava irreal o projeto de mudança social e levava inevitavelmente para o aventureirismo político. Essa era uma das tentativas, após a crise do estalinismo, de repensar o socialismo em associação com a política que se praticava, como se pode visualizar no artigo de Marco Antonio Coelho chamado "A tática das soluções positivas" (Coelho, 1960) [7].

No entanto, vindo muito mais do pragmatismo do que de um aggiornamento, a reorientação da práxis agrária seguirá um caminho bem mais sinuoso. Se, por um lado, o afastamento do PCB em relação ao antigo campesinismo espelha a tradição da idéia de superioridade da classe operária e de subsunção do tema agrário ao da aliança operário-camponesa, de outro, reafirmado este último como ser princípio irrenunciável, aquele mesmo movimento que levava o PCB rumo ao sindicato e ao paradigma caiopradiano, simultaneamente exigia uma "verdadeira política comunista" de privilegiamento do aliado camponês como marca revolucionária; e levava-o a abafar os arroubos dos dissidentes de 56/57 que justamente pediam revisão daquele cânone como condição para que a política se ampliara além do pólo popular.

Pragmático, trabalhando uma espécie de teoria "possível", o núcleo dirigente sobrevivente à crise do stalinismo encontraria a "solução" que poderíamos chamar de politização da questão agrária, ou seja, inscrevê-la, de certo modo à Lenin, na lógica de uma formação social sob impacto de um capitalismo nacional em expansão. Agora, no novo enfoque, diversamente do marxismo estagnacionista, ao modo nacional-desenvolvimentista, tinha centralidade a noção dos "obstáculos estruturais" (ressignificados à Mao Tsé-Tung como "contradições fundamentais"), vale dizer, o industrialismo opondo a nação ao imperialismo, chocando-se com o atraso rural e o monópolio da terra, e dinamizando a sociedade civil e a vida política nacional no sentido da democratização. Quem sabe não foi esse novíssimo processo de democratização que pôs "em circulação" entre os comunistas brasileiros dois opúsculos leninianos bem emblemáticos: Duas táticas da socialdemocracia russa, famoso pelo etapismo, e O programa agrário da socialdemocracia russa, ambos citados na publicística naquela época [8].

Em lugar de continuar preso à ortodoxia, o PCB abria uma trilha que o levaria a redimensionar os lugares e a hierarquia dos atores sociopolíticos-chave da construção da frente única - além da burguesia nacional, proletariado, assalariados rurais, semi-assalariados e camponeses, as classes médias urbanas (em seu texto de 1962, Nelson Werneck Sodré já realçara o protagonismo político) serão agora valorizadas pelo PCB como "aliado fundamental", em pé de igualdade com os camponeses.

Na nova orientação, teria havido uma espécie de ressignificação parcial da questão camponesa. De problema nacional-camponês, como na "teoria" da aliança operário-camponesa da tradição, ela passou a ser redefinida a partir do parâmetro de uma questão nacional-antiimperialista em um país em franco processo de modernização. A questão nacional aqui era vista como industrialização e desenvolvimento (na Declaração de Março; nas Teses e na Resolução do V Congresso de 1960; e também em Nelson Werneck Sodré).

É com esse tipo de percepção que o PCB do pós-54 vai reconhecer, em conflito com o próprio terceiro-mundismo, o poder altamente mobilizatório do nacionalismo, em contraste com a debilidade e isolamento das lutas camponesas dos primeiros anos 50. Pela via intuitiva, a nova práxis agrária consistiria em estimular uma mobilização dos camponeses queimportava, desde logo, em acesso à cidadania e ganhos reais (as chamadas "medidas parciais de reforma agrária"), avanços só garantidos à medida que um (ou sucessivos) governo(s) "nacional e democrático(s)" afirmasse(m) programas de reformas estruturais. Por certo tal processo reformador ainda se encontrava indefinido em muitos pontos, mas se pode dizer que o PCB da época já não tinha dúvida de que o mesmo significava, quanto menos, uma etapa da revolução brasileira, de desenvolvimento industrial com democracia política, segundo o discurso, um processo a se constituir no plano da política através de muitas mediações, descontinuidades e gradualismo, sem a subversão da ordem social [9].

Percebido o nosso mundo rural menos como um mundo de completa feudalidade sob invasão de um capitalismo desintegrador das suas virtualidades autárquicas, aqui se propunha a questão agrária como tema da incorporação dos camponeses à modernização nacional, em lugar de uma "regeneração" social, como se pensou na ponta populista do debate russo do tempo de Lenin. Do nacional-desenvolvimentismo ao PCB, a nova identidade nacional se chamava desenvolvimento. Aquela incorporação será vista ora como processo de integração à economia monetária em reforço ao impulso industrialista (Cepal, Iseb, etc.); ora simultaneamente como incorporação ao "mercado interno" e como processo de extensão da cidadania e de "substantivação" da democracia política.

Contudo, a política pecebista de mobilização camponesa com base numa operação junto a um ator moderno não se revestia de consistência moderno-sindical. Com o relançamento recorrente do "fim último camponês" (em diferentes passagens da Resolução do V Congresso) , isto é, mal resolvido o agrarismo camponês, o realismo daquela práxis não significava adesão ao "Ocidente" agrário caiopradiano. Não ficava claro se já se entendia plenamente que era o grupo moderno quem abria passagem para os "camponeses", ou ainda se se esperava que seriam estes quem haveriam de protagonizar, em última instância, uma revolução/reforma agrária de tipo camponês. Nestes termos, quando o mundo real limitava-lhe a preferência "modernista" de sindicalismo mais puro, o partido era compelido a disputar e ter de se envolver com a camada social onde se conformava o cenário camponês. Sem a dissertação de Caio Prado Jr., o PCB "não tinha" como não terminar submetendo-se às pressões dos seus setores "orientalistas", às vezes lhes dando combate, noutras conciliando, especialmente quanto eles denunciavam o revisionismo de direita (descentramento dos componeses na frente única), e cobravam-lhe autodefinição revolucionária, debilitando a centralidade que a idéia de frente única ocupava na conduta do partido em relação ao processo político em curso.

Como está avaliado nos seus próprios documentos (PCB, 1967), às vésperas da derrota do governo Goulart, o PCB iria oscilar entre cumprir um papel de "esquerda positiva" para garantir "frente ampla" à continuidade do reformismo goulartiano, como pedia Santiago Dantas (Marçal Brandão, 1995); ou se deixar paralisar pelos resíduos da sua antiga cultura política de revolução. Inclusive a Declaração do Comitê Central de dezembro de 1962 (PCB, 1962) testemunha a dúvida então introduzida no gradualismo da política das "soluções positivas" e de reformas parciais e abre a porta para o chamado combate à "conciliação de direita" de Jango, acenando com a idéia da formação de um outro governo mais disposto a acelerar o tempo das reformas de base. O texto "O povo exige reformas de base" (PCB, 1963) também mostra como a direção partidária ainda procurava conciliar a orientação gradualística com a priorização radicalizante dos temas substantivos e das soluções de curto prazo, como revela José Antonio Segatto, ao fazer um balanço dessa tendência em alguns dirigentes comunistas, inclusive de identificação com a tese da reforma agrária radical (Segatto, 1995).

Esses matizes na práxis política mostravam a sombra da antiga mentalidade comunista sobre a clarividência de certas áreas desse partido que também reclamavam realismo e prudência diante da marcha da conspiração golpista. A rigor, o PCB se debatia entre o experimento de renovação democrática da sociedade, ainda muito frágil no conjunto partidário, e a cultura política própria à tradição terceiro-internacionalista.

E Caio Prado Jr.? Às vésperas de 64, em um artigo publicado no último número da Revista Brasiliense, ele volta a se queixar das correntes de esquerda (não só do PCB) por elas continuarem insistindo quase unicamente no aspecto da reforma agrária da divisão de terras ("reforma agrária radical", "terra para quem nela trabalha"), com grande prejuízo da tarefa principal - impulsionar a grande força potencial de "renovação da economia agrária" [10].

O historiador paulista apóia a sua interpelação no exemplo dos trabalhadores canavieiros de Pernambuco que haviam lutado durante o ano de 1963 pelo cumprimento da legislação rural-trabalhista e desenvolvido uma mobilização que rapidamente se espalhou, obteve o apoio do governo Arraes e amealhou ganhos salariais expressivos, de resto, provocando efeitos dinamizadores na economia da região de Palmares. Ao invés de inclinar-se à radicalização das Ligas Camponesas, Caio Prado Jr. via a luta pela terra restrita a regiões excepcionais, como era o caso de posseiros das zonas pioneiras (Oeste do Paraná, Goiás...) e dos foreiros de alguns zonas de importância secundária do Nordeste. Enquanto na principal frente de luta, a dos trabalhadores rurais da zona canavieira do Nordeste, dos cafezais de São Paulo e Paraná, da zona cacaueira da Bahia etc., isto é, como diz ele, "na generalidade do país", a questão agrária marchava muito lentamente (Prado Jr., 1964).

O "apressamento da transformação e da renovação da economia agrária" - nisto consistia a reforma de estrutura pregada por Caio Prado Jr. - tinha sua chave de compreensão e solução no exemplo de Pernambuco, mas para isso ele considerava inadiável para mudar a mentalidade das esquerdas que privilegiavam a luta pela terra, sob pena de permanecerem na "estéril agitação por objetivos, no mais das vezes, na situação atual e no momento que atravessamos, muito além e mesmo inteiramente fora do realizável" (Id.).

Após 64, A revolução brasileira irá servir de argumento contra o gradualismo pecebista e o dualismo do paradigma que lhe teria servido de base, sendo usado por alguns grupos de dentro e de fora do PCB que se radicalizaram [11]. Após várias divisões, o PCB não só não radicalizaria o seu agrarismo camponês latente, como no pós-64 serão mais freqüentes os "cochilos" intermitentes de valorização do assalariamento e do sindicato (ver textos do VI Congresso de 1967 e outros, in Nogueira, 1980) [12].

Em meados dos anos 70, à margem da antiga controvérsia, uma reflexão de parte da intelectualidade pecebista produziria uma releitura não-clássica da formação social, lançando um outro olhar sobre o papel das classes agrárias na constituição do capitalismo brasileiro (Ribeiro, 1975; especialmente Vianna, 1976). Nos textos dessa (e quiçá última importante) vertente intelectual comunista, chama a atenção a interlocução com a bibliografia dedicada à modernização das sociedades agrárias, especialmente Lenin, Gerschenkron, Lukács, Gramsci e Barrington Moore, presenças que constituem uma constante em vários dos autores conhecidos na passagem dos anos 70 para a década de 1980 como "eurocomunistas" brasileiros (Santos, 1996a). São fortes os indícios de que tal influência os induziu a ver no tema do prussianismo - revoluções "pelo alto", especialmente a dissertação gramsciana sobre o Risorgimento - um novo paradigma explicativo da formação social brasileira, tornando-o depois chave para revalorizar a mobilização pela democracia política do pós-64 em termos de uma estratégia de reversão do elitismo da vida política brasileira; possibilidade vista cada vez mais como uma "verdadeira revolução" (Vianna, 1981).

A ensaística de Ivan Ribeiro constitui um marco importante. Integrante desse segundo movimento de resgate da política de frente única, agora desde um marxismo ampliado, esse autor percebia que, com a evolução da agricultura no após-64 em direção oposta ao estagnacionismo remanescente do nacional-desenvolvimentista, fazia-se necessário equacionar a questão agrária de um novo modo. Primeiro, era preciso reconhecer que o latifúndio não só não impedira o fortalecimento do capitalismo, como tampouco aguçara as suas contradições com as frações industrial e comercial da burguesia; e, segundo, que, pela modernização acelerada, a agricultura já deixara de ser o locus dos setores mais atrasados da economia (Ribeiro, 1975; 1988).

Ribeiro se volta para o tema (caiopradiano) do capitalismo agrário sob a égide da grande propriedade, olhando, porém, para um conjunto de transformações agrárias ao modo prussiano que progressivamente adaptavam a agricultura, substituindo gradualmente os procedimentos "feudais" por procedimentos burgueses.

Nesse tipo de formação social, onde "misérias modernas" coexistiam com "misérias antigas", a reforma agrária manteria o seu papel de liquidação dos anacronismos, sem isso significar - aqui se distanciava da noção de "obstáculo estrutural" - que a sua não-realização interditasse o industrialismo, como se acreditou até bem entrados os anos 60. Se não se devia subestimar a importância econômica de uma nova área reformada, a cumprir uma dupla função de ampliar o setor de pequenas e médias propriedades (produzir bens alimentícios, absorver mão-de-obra), tampouco se devia cair no exagero do pré-64 que colocara a reforma agrária como premissa do desenvolvimento capitalista nacional (Id.).

Daí a reforma agrária não poder se limitar a um processo de tipo camponês ("a terra para quem nela trabalha"). Não se justificaria a criação de uma economia camponesa no setor moderno da agricultura, onde se deveria ampliar a luta por melhores condições de trabalho, aplicar a legislação trabalhista e aumentar o associativismo, como insistira Caio Prado Jr.. O que não implicava, prossegue Ribeiro, menosprezo à economia familiar camponesa a qual, por não ser ainda capitalista, uma reforma agrária à americana poderia trazer-lhe grandes benefícios e representar um progresso considerável (Ribeiro, 1983).

Ultrapassando a ambigüidade do conceito de democracia como incorporação econômico-social dos camponeses, o propósito de Ribeiro era deslocar a problemática da reforma agrária do "estrutural" para o âmbito do "institucional", como ele depois esclarece, e chegar a uma outra maneira de pensar politicamente a questão agrária, "com o objetivo de tornar possível aos camponeses e trabalhadores rurais entrar no jogo político enquanto força de classe e com individualidade", isto é, levá-los para dentro do sistema político (Id.).

Ivan Ribeiro se mantém atento ao processo do "modernização excludente" que levava a uma diferenciação "para baixo", com a dissolução das pequenas propriedades e a transformação dos camponeses em trabalhadores volantes e assalariados nos pequenos centros urbanos regionais, num contexto de fragmentação social, processo já bem descrito pela bibliografia. Ele percebia também que se os camponeses perdiam a sua definição econômico-revolucionária, "eles" adquiriam nos (ou em interação com) os grupos sucedâneos um protagonismo de novo tipo, gerando processos políticos outros, convergentes inclusive com a penetração da mídia no campo, o qual acelerava ainda mais a erosão da ordem de mando oligárquica da nossa sociedade agrária (Id.).

Interrompido pela morte do ensaísta em 1987, este argumento já apontava para um trânsito da confirmação pessimista, nas proximidades do fim do milênio, do "destino histórico" dos camponeses, como vaticinara Marx, à retomada de uma idéia inspirada na vocação emancipatória do melhor da tradição marxista - a idéia de que o mundo rural não tem por que não se conciliar com a democracia e a modernidade, do mesmo que as cidades.

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Raimundo Santos é professor do CPDA da UFRRJ.

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Notas

[1] "A mudança social mais impressionante e de mais longo alcance da segunda metade deste século e que nos isola para sempre do mundo do passado é a morte do campesinato" (Hobsbawm, 1995 : 284).

[2] Na interpretação de Carlos Nelson Coutinho, no seu primeiro texto Caio Prado Jr. teria coincidido com Gramsci ao descrever traços de revolução "pelo alto" e de "revolução passiva" na modernização brasileira da segunda metade do século passado (Coutinho, 1990).

[3] A revista Cadernos do Nosso Tempo, do Ibesp (depois, Iseb), publicou no seu número 2, de jan./jun. 1954, uma resenha daquele debate ("Três etapas do comunismo brasileiro", sem autoria, in Schwartzman, 1982).

[4] Para Luiz Carlos Bresser-Pereira, a resistência provinha do uso da categoria de circulação como critério definidor do capitalismo na fase "ainda juvenil". A partir daí, o historiador pecebista não conseguiria entender o processo de constituição da ordem burguesa-industrial e nunca mais se afastaria da imagem sombria de Brasil (Bresser-Pereira, 1993). A proposição precisaria ser matizada, porquanto, na produção contemporânea, Caio Prado Jr. aceita sem reservas, como se sabe, a ontologia econômica marxista-leninista.

[5] Uma hipótese suplementar sublinharia a natureza terceiro-mundista, própria do marxismo da época. É como se a originalidade dos primeiros textos (1933, 1942) se transfigurasse num simétrico economicismo para caracterizar o Brasil urbano-industrial à hora em que o econômico, antes "esquecido", foi reposto no marxismo-leninismo pleno da obra madura. A conjetura seria a de que, sem diversificar o seu marxismo, ele haveria de encontrar grande dificuldade para dar curso a intuições de sua fase inicial.

[6] É curiosa a ausência de Caio Prado Jr. nas Tribunas de Debate (Voz Operária, Imprensa Popular) por ocasião da controvérsia sobre o XX Congresso do PCUS nos anos 1956/57, nas quais participaram quase toda a intelectualidade comunista, dirigentes e muitos militantes. As páginas da Revista Brasiliense tampouco discutem o stalinismo. Os livros sobre suas viagens à URSS e a Cuba, de 1934 e de 1962, igualmente entusiastas do socialismo real, bem como os volumes sobre filosofia marxista, de 1953 e 1957, sugerem que Caio Prado Jr. deve ter permanecido à margem dessa discussão crucial no PCB.

[7] Esse texto chama a atenção pelo menos por duas passagens. Primeiro, a posição a favor da tese das reformas de estrutura com democracia como via alternativa a 1917, como vinha propondo o PCI desde o XX Congresso do PCUS. O autor concorda com essa nova política de renovação democrática (sic), inclusive aprovada pela declaração conjunta dos comunistas franceses e italianos, de 27 de dezembro de 1958, chegando a citar Enrico Berlinguer para explicá-la: "A palavra de ordem de desenvolvimento econômico e democrático e de reformas de estrutura nada tem em comum, pois, com uma política reformista que se propõe apenas introduzir, pela cúpula, no sistema capitalista, determinadas correções de caráter paternalista. Para nós, uma política de desenvolvimento democrático e de reformas de estrutura significa que, sobre a base do avanço do movimento de massas, podem ser levadas a efeito radicais transformações na esfera da produção, que constituam outros golpes contra as grandes concentrações da propriedade e do Poder". Em outra passagem, Marco Antonio Coelho observa que o novo caminho pressupunha "um clima de democracia, quando haja respeito pelos direitos inscritos na Constituição. Sendo assim, a tática das soluções positivas determina que se trave a defesa das liberdades e o combate pelo aperfeiçoamento do regime democrático" (Id.).

[8] Em vários textos do V Congresso aparecem menções a O programa agrário da socialdemocracia russa, algumas delas até mesmo se referindo às duas vias de transformação agrária previstas por Lenin - a revolucionária e a de adaptações reformistas -, sem contudo projetar no modelo de revolução burguesa e no próprio tema da revolução e da política as dimensões analíticas que serão notadas depois.

[9] Este tema da impossibilidade de 1917 nunca aparece problematizado por completo, embora às vezes fique bem sugerido em algumas proposições que permeiam documentos pecebistas, tais como: desenvolvimento econômico e tendência permanente à democratização, gradualismo e democracia política, sucessão de governos reformistas, via pacífica, tática das soluções positivas, etc., a esboçar o que poderia ser uma espécie de "via política ao socialismo", mutatis mutandis como no caso dos comunistas italianos.

[10] Caio Prado Jr. dirige a sua crítica tanto ao documento "Sugestões iniciais para um programa de governo que faça as reformas de base", enviado a Santiago Dantas em 19/01/64 pela Frente de Mobilização Popular, CGT, UNE, Ubes, Liga Feminina e AP, quanto ao texto do PCB, "Posição dos comunistas", publicado em Novos Rumos, de 20 a 30 janeiro de 1964 (Prado Jr., 1964).

[11] Carlos Nelson Coutinho observa que a argumentação do historiador paulista não só tem outras raízes, como a aproximação dos setores radicalizados à sua obra foi meramente ocasional (Coutinho, 1990).

[12] Valorizando o sentido da interpelação caiopradiana ao desprezo do papel "que já desempenhavam os assalariados agrícolas na vida brasileira", um credenciado publicista do PCB, em 1967, reconhecia: "A verdade é que se notava, durante o governo Goulart, uma limitação da luta dos lavradores pela posse da terra ou por melhores condições de arrendamento. Contrastando com isto, destacou-se bastante a mobilização dos assalariados agrícolas em torno da aplicação das leis trabalhistas no campo (salário mínimo, férias, descanso semanal remunerado, etc.)". Cf. Assis Tavares (1967).

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Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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