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Uma reflexão sobre a civilização brasileira

Maria Alice R. de Carvalho - Março 2008
 

A revolução passiva - iberismo e americanismo no Brasil veio a público, pela primeira vez, em 1997 e obteve o Prêmio Sérgio Buarque de Holanda, conferido pela Fundação Biblioteca Nacional ao melhor ensaio brasileiro publicado naquele ano. Reunindo artigos produzidos ao longo da década de 1990 e que já circulavam em influentes periódicos das ciências sociais, o livro não teve sua forma questionada, tendo sido recepcionado, justamente, como obra inteiriça e sólida, contribuição inegável à tradição do ensaísmo nacional.

Caso raro de convergência entre as motivações do autor e o acolhimento de seu público, a coletânea foi concebida e seria assimilada a partir de uma só questão central - a expressão assumida pelo conceito gramsciano de revolução passiva no contexto brasileiro. De modo que o subtítulo Iberismo e americanismo no Brasil, longe de ressuscitar a conhecida contraposição de ideais que sempre obsedou a imaginação social nativa, tem, no livro, a intenção de caracterizar a natureza da nossa revolução burguesa, autocrática e alongada no tempo, em que o novo não cancela a antiga ordem social, sendo, ao contrário, tributário de elites políticas reformadoras que deflagram um programa de transformações sob a cláusula restritiva do "conservar-mudando", isto é, sob a condição de que tais transformações confirmem e atualizem o seu domínio.

É assim que, segundo o autor, em diversas estações do longo processo de modernização brasileira, se pode constatar a "complexa fusão" entre o gênio político da Ibéria e a imposição de rumos americanos à sociedade brasileira - convergência tensa, por certo, algumas vezes encenada por elites de distinta origem social e cultural, porém empenhadas, em comum, na adequação do Brasil ao relógio do Ocidente moderno.

Antecedentes

A discussão sobre revolução passiva, para o autor, não era nova. Desde a década de 1970, quando publicou Liberalismo e sindicato no Brasil [1], Luiz Werneck Vianna adotara tal categoria como recurso interpretativo dos casos retardatários de desenvolvimento capitalista, em que a implantação da ordem mercantil-burguesa não se faz acompanhar do triunfo político da burguesia e tampouco é precedida pelo derruimento revolucionário do antigo regime.

Sua análise, naquele momento, em plena vigência da ditadura militar, ecoava o debate que travou no âmbito da esquerda brasileira e de segmentos influentes da resistência liberal-democrática ao regime, cujas concepções preconizavam a ruptura com o "arcaico", com o legado de uma história colonial malsã, sob o argumento de que, somente a partir da efetiva constituição de uma ordem social competitiva, poderia a classe operária preparar-se para exercer ação histórica distinta [2]. A contrapelo de tais concepções, Liberalismo e sindicato no Brasil trazia a novidade de caracterizar a passagem à ordem burguesa no Brasil como um caso de "revolução sem revolução", deslanchada sob a égide do Estado corporativo da década de 1930.

Assim, ao entender a imposição da estrutura burocrático-autoritária sobre o sindicalismo brasileiro como uma ordenação estatal do mercado com vistas à alavancagem do capitalismo, Werneck Vianna não deixava de evidenciar, na década de 1970, os traços de continuidade que aquele novo giro do autoritarismo político mantinha com a agenda modernizadora do ciclo autoritário precedente.

Por conseguinte, o que poderia ser a obra revolucionária da burguesia já ia longe no Brasil, ainda que tributária de um programa de ação de sucessivas gerações de elites conservadoras, para cujos propósitos foram imprescindíveis a expropriação política dos setores subalternos da sociedade e a intensificação das formas de controle sobre eles. De acordo, pois, com o autor, não se tratava de refundar, revolucionariamente, a ordem social, mas de erodir as bases de legitimação do poder autoritário, movimento em que os modernos personagens da sociologia brasileira se encontrariam com a política, ampliariam seus recursos de cidadania, podendo traduzi-los em instrumentos efetivos de emancipação.

Em Liberalismo e sindicato no Brasil, como se vê, as referências teóricas que predominam são o Lenin dos estudos agrários, consolidados em O desenvolvimento do capitalismo na Rússia [3], cujo conciso e brilhante Prefácio à 2a edição contém uma estilização dos modos retardatários de passagem à ordem burguesa - as chamadas via americana e via prussiana de desenvolvimento capitalista -, e o Gramsci das famosas notas sobre o Risorgimento italiano [4].

Do primeiro, Werneck Vianna extraiu a sugestão de que as soluções democrática ou autoritária de modernização capitalista dependeriam do papel desempenhado nesse processo pelo mundo agrário, reconhecendo na via prussiana o caso paradigmático de uma transição burguesa reacionária, em que as elites agrárias tradicionais se apropriam do Estado e lideram o trânsito ao moderno, preservando suas formas autoritárias de controle social.

De Gramsci, por sua vez, Werneck Vianna relevaria as questões associadas à interação entre a infra-estrutura material e a dimensão intelectual-moral das formações sociais em mudança - o que significava atentar para o papel da cultura como racionalização reflexiva do movimento das forças produtivas, mediante a qual os personagens antagônicos do modo de produção, uma vez portadores de "interesses corretamente compreendidos", disputariam a hegemonia do processo de transformações em curso.

Tal como em Lenin, Werneck Vianna reconhecia no tratamento que Gramsci concedeu ao Risorgimento italiano uma dimensão teórica, e não meramente descritiva, tomando-o como caso exemplar de um conceito de validade mais geral: o de "revolução sem revolução" ou "revolução passiva". Sob esse conceito, Gramsci formalizou a situação em que mudanças moleculares são deflagradas em uma dada formação social - assim foi com as formações patrimoniais européias atingidas pela "exportação" dos efeitos da Revolução Francesa, no período da Restauração -, podendo acontecer que tais mudanças sejam assimiladas localmente pelas forças da tradição, por condensações culturais e políticas anacrônicas, ou, alternativamente, interpeladas por intelectuais de novo tipo, homólogos às transformações estruturais em curso.

Em ambos os cenários, afirma Gramsci, a "revolução" prosseguiria, ainda que, na hipótese de vir a ser assimilada pela tradição, não produziria impacto visível nas relações sociais, e a sua extrema lentidão conferiria à sociedade a aparência de imobilidade. No primeiro caso, para Werneck Vianna, o império dos fatos [5]; no outro, o do ator - o qual, mediante avaliação adequada das circunstâncias que bloqueiam o triunfo imediato da novidade histórica de que é portador, se torna capaz de disputar a hegemonia do processo de mudança, em uma longa "guerra de posições". O fenômeno, portanto, da revolução passiva compreenderia duas possibilidades: aquela em que as mudanças avançam de modo bem mais lento e, em larga medida, arbitrário; e aquela em que o ator, buscando o consenso, imprime direção e maior velocidade às transformações em curso.

Durante a década de 1980, as referências teóricas presentes em Liberalismo e sindicato no Brasil assumem pesos distintos na agenda intelectual de Werneck Vianna, sendo Gramsci, visivelmente, a mais forte inspiração de seu novo programa de pesquisa. O tema da revolução passiva persistiria, como persistiriam as indagações referentes à vida cultural das formações sociais em mudança, muito especialmente o Brasil, cuja modernização burguesa conhecia uma nova estação.

Seus textos de intervenção política registram essa guinada [6]. Eles contêm o diagnóstico de que à notável aceleração da acumulação capitalista sob o regime militar correspondia um progressivo deslocamento do segmento das elites que havia dirigido a longa marcha da modernização brasileira até ali, bem como da cultura política que lhe fora afim - o Estado e a esfera pública, tidos, desde a Revolução de 1930, como estratégicos à modernização e à democratização brasileiras, passaram a ser vistos como obstáculos ao livre desenvolvimento da sociedade e, muito especialmente, como lugares institucionais de reprodução dos padrões hierárquicos e socialmente iníquos que predominaram em nossa história.

Tal mudança cultural, contudo, não refletiria apenas uma transferência de poder no âmbito das elites. Como na reflexão gramsciana acerca das interações entre infra-estrutura e superestrutura, ela traduzia, para Werneck Vianna, transformações estruturais profundas, visíveis, por exemplo, na emergência de novos atores organizados, notadamente o novo sindicalismo do ABC, que, originado pelo ciclo de modernização fabril do pós-64, nascia sobre distinta plataforma produtiva, em descontinuidade com o sindicalismo precedente e, em largo sentido, contrário às suas razões políticas - o novo sindicalismo tinha como horizonte o mercado, a indústria de capital privado, o mundo dos interesses, e não a república [7].

Dessa perspectiva, o vasto movimento de opinião que, enraizado na esquerda acadêmica e no liberalismo histórico das elites políticas e intelectuais de São Paulo, viria a se fortalecer nas décadas de 1970 e 80 em torno de uma interpretação negativa da história do país e de um novo sentido atribuído à idéia de democratizá-lo, não era alheio ao andamento da revolução passiva brasileira. E nele, segundo Werneck Vianna, a classe operária - fato e, virtualmente, ator daquele processo - teria abdicado de disputar a liderança do transformismo em curso, entendendo que a principal tarefa de seu partido, o Partido dos Trabalhadores, deveria consistir na formação de uma vontade popular autônoma, na construção, como intelligentsia, de um novo sistema de valores, na formação, enfim, de uma nova cultura da sociedade civil contra a velha cultura estatista brasileira.

Ecoando as lições de Gramsci, Werneck Vianna dirá que o PT agia como "um apóstolo iluminado e não como um político realista", o qual, compreendendo a sua inscrição na "guerra de posições", é capaz de alterar o registro da solução transformista, imprimindo nela uma dinâmica em que a mudança se imponha à conservação. Abdicando do tema republicano, da política de alianças pluriclassistas e da disputa hegemônica pelo legado cultural da nossa civilização, o PT se constituía, malgrado suas intenções, em uma outra face do "partido paulista", agindo em desconformidade com a política de democratização do Estado brasileiro e aderente à particularidade regional da modernização capitalista.

O resultado político desse apostolado de sociedade civil seria a captura do PT pelo moderado programa de afirmação do "novo", esquecido da dialética inscrita no andamento da revolução passiva, que faria da tradição reinterpretada e tornada lastro de uma política hegemônica em prol da mudança a via possível de acesso ao que Gramsci chamou de "novíssimo".

Sobre o conceito de revolução passiva

O impacto dessa dissociação entre o político e o social - visível na divisão das forças democráticas durante a desastrada sucessão presidencial de 1989 - continuaria a animar os textos de intervenção política de Werneck Vianna, impondo-lhe também uma ampliação de sua pesquisa teórica, cujos resultados são os que, em larga medida, encontram-se neste A revolução passiva, urdido ao longo da década de 1990. São duas, as principais características desse movimento do autor: em primeiro lugar, o tema do transformismo continuaria a ser inquirido a partir de seu duplo registro, o da modernização-conservação e o da mudança - e, nesse último, com ênfase especial na problemática do ator.

Assim, pela original démarche que Werneck Vianna imprimia à sua leitura sobre o Risorgimento, o conceito de revolução passiva, extraído do caso italiano de modernização, seria "completado" pelo recurso a um outro texto de Gramsci, Americanismo e fordismo [8], momento em que aquele autor incorpora a formação social norte-americana à sua reflexão, nela destacando, segundo Werneck Vianna, a possibilidade de uma modernização permanente e progressiva, dada a especial articulação, naquele país, entre Estado e sociedade, entre supra e infra-estrutura.

Em segundo lugar, e complementarmente ao conjunto anterior de questões, Werneck Vianna implementaria uma linha de investigação histórica sobre a tradição brasileira, percorrendo algumas das principais interpretações sobre o Brasil. Tal programa, em certo sentido, já lhe havia ocorrido alguns anos antes, quando tomou a iniciativa de organizar um grupo de estudos sediado no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro - Iuperj, que, sob o título Americanismo e iberismo, reuniu pesquisadores de diferentes instituições, voltados à análise dos chamados americanistas e iberistas brasileiros [9].

Porém, na fase mais ativa do grupo, seu idealizador concentrou-se na obra de Alexis de Tocqueville, notadamente A democracia na América [10], em óbvio diálogo com o gramsciano J. Femia [11], que, defensor da idéia de que o jacobinismo e a "guerra de movimento" são aspectos inextricáveis do pensamento político de Gramsci, recusa a possibilidade de se extrair de Americanismo e fordismo uma teoria de alcance geral, entendendo-o como particular ao contexto norte-americano, um caso nacional irreprodutível em razão de sua radical singularidade. Foi ainda no curso dessa investigação sobre o conceito de americanismo em Tocqueville e Gramsci, quando os demais membros do grupo já começavam a apresentar seus resultados de pesquisa e a freqüência às reuniões começou a rarear, que Werneck Vianna daria partida à sua leitura crítica de alguns autores brasileiros, em especial Tavares Bastos e Oliveira Vianna.

No que se refere ao tema do transformismo, o destaque conferido por Werneck Vianna ao problema do ator implicou, naqueles anos, um vivo debate com o campo gramsciano e, muito especialmente, com os autores que reconheciam nas notas do Risorgimento uma contribuição concernente ao papel predominante da superestrutura e do front cultural na superação da modernização autoritária. Para estes, portanto, justificava-se a ação partidária devotada à formação de uma vontade popular autônoma, de notação jacobina, que, pelo exercício de uma contra-hegemonia, preparasse o momento em que a revolução passiva se investisse da forma de "guerra de movimento" [12].

Desconsideradas, pois, as mediações mais sutis de cada um dos textos em questão, pode-se dizer que duas conseqüências, de alcance teórico e político, decorriam dessa ênfase na dimensão superestrutural do Risorgimento - a primeira, a prescrição da ruptura política, da derrubada (e não da derrota) do autoritarismo, da adesão apenas tática à democracia, entendendo-a como "luta pelo socialismo em dois tempos"; a segunda, a percepção dos intelectuais como intelligentsia, isto é, como representantes do "espírito do povo", agentes libertários no exercício de um mandato racional, descasados das classes sociais e mesmo substitutivos delas.

Contrário à atribuição de ênfase na dimensão supraestrutural do Risorgimento, Werneck Vianna dirá que, nos Quaderni, o ponto de partida de Gramsci consistiu em buscar a superação da sociedade capitalista mediante a condução direta das forças produtivas por seus próprios portadores - isto é, por um ator que se movesse com os pés fincados na estrutura e dela extraísse a política adequada à mudança. Segundo o autor, não seria outro, aliás, o motivo que teria levado Gramsci a incorporar a América à sua sociologia histórica comparada.

Afinal, como se lê em Americanismo e fordismo, aquela sociedade demograficamente racionalizada, em que não há sedimentações sociais do passado - as chamadas "classes parasitárias", termo recorrente nos escritos gramscianos - e em que toda a vida do país está baseada na produção, seria um caso de feliz oportunidade para que, nas palavras de Gramsci, os próprios "portadores sociais das forças produtivas" viessem a modelar a supraestrutura, criando no tecido mesmo da sociabilidade as condições para o exercício do autogoverno.

Dessa perspectiva, a América se constituiria em um contraponto crítico à Europa, notadamente ao papel preponderante que a política assumiu no velho continente e que ensejou um tipo de domínio burguês no qual o Estado, historicamente "inchado" pela inscrição em massa do estrato de intelectuais na vida pública, realiza uma invasão da vida social, modelando - e principalmente contendo - a estrutura.

Segundo Werneck Vianna, no Risorgimento encontra-se a perspectiva conceitual adequada à análise do processo de modernização burguesa dos países da Europa continental no período da Restauração, isto é, a análise dos casos exemplares de formações burguesas retardatárias, nas quais a estrutura é fraca e as variáveis-chave da sociologia gramsciana - população e controle social - não são diretamente jurisdicionadas por mecanismos econômicos. Nelas, os intelectuais exerceriam as funções de consenso e coerção do Estado burguês, contendo e limitando os personagens do mundo da produção em sua busca por autonomização social e política.

Seria, pois, a partir da observação desses casos de predomínio das superestruturas que Gramsci formularia o conceito de Estado ampliado, que, a rigor, consiste em uma identificação entre Estado e sociedade civil operada "por cima", isto é, em uma estatalização da vida social. Significa dizer que toda a dinâmica social, suas instituições, seu sistema de orientação hegemônico, sua produção legislativa e jurisdicional seriam projeções da esfera estatal, constituindo uma complexa malha democrático-burocrática que não poderia existir sem o protagonismo dos intelectuais [13].

O "eixo Risorgimento-Americanismo"

Outra, porém, segundo Gramsci, seria a história da formação norte-americana, outra a sua vida intelectual e outro o papel que ali teria a política, evidentemente que bastante diminuído pelo efeito de uma organização social em que a clivagem entre público e privado não teria a proeminência verificada na Europa continental. Tendo, então, como referência A democracia na América, Werneck Vianna dirá que, anteriormente a Gramsci, Tocqueville já havia concebido, sob a noção de "interesse corretamente compreendido", uma forma imediata de articulação entre o interesse privado e as atribuições ético-morais que a tradição iluminista sempre reservara ao Estado – expressas, exemplarmente, na noção rousseauniana de vontade geral.

Da perspectiva tocquevilliana, o público, na América, não guardaria relação de exterioridade em relação à vida social, sendo a vontade geral o resultado contingente de ações coletivas enraizadas no próprio interesse dos indivíduos. Lá, portanto, aduziria Gramsci, o Estado não "invade" o social, uma vez que, na sociedade racionalizada norte-americana, são as próprias classes produtivas que detêm o domínio político. A proeminência caberia, pois, à estrutura, o que simplificaria a malha supraestrutural e enfraqueceria, irremediavelmente, o papel estratégico dos intelectuais como mediadores entre o Estado e o mundo da produção.

De acordo com Werneck Vianna, teria sido essa aquisição teórica - a doutrina do "interesse corretamente compreendido" - que permitiu a Tocqueville conceber a formação social norte-americana como, nos termos de Gramsci, um caso simplificado de revolução sem revolução. Simplificado, repita-se, mesmo em relação à Inglaterra, outro caso nacional a que Gramsci não aplica o conceito de Estado ampliado. Isso porque, à diferença da modernização inglesa, cuja preservação das virtudes públicas dependeu da resistência aristocrática à cultura igualitária - isto é, de uma agência não homóloga à ordem mercantil, que corrigiu os excessos democráticos com valores e instituições de uma outra era -, a América tornou o interesse a única matéria sobre a qual se poderia assentar uma noção de moralidade e de direitos compatível com os novos tempos, com o avanço do estado social da igualdade.

Na Inglaterra, portanto, a democracia fora moderada pelo peso do passado; na América, diversamente, o interesse se emancipa de valores e instituições tradicionais, a sociabilidade domina a política e lhe impõe seus fins, fazendo do público o resultado da tradução dos interesses em direitos. Enfim, ao conceber o americanismo a partir dessa inextricável associação entre o mundo dos direitos e a idéia de bens privados ao alcance de todos, Tocqueville manteria aberta a dialética "virtude/interesse", projetando-a como um movimento expansivo e ininterrupto da revolução democrática universal [14].

Daí que, no contexto do americanismo, o desenlace da revolução passiva não seja o de uma revolução nacional-popular operada por ator capaz de completar a obra republicana de Maquiavel [15], isto é, por intelectuais ou partido que se desprendam das atribuições necessárias ao funcionamento do Estado burguês, identifiquem-se, normativamente, com a nova eticidade emergente da sociedade civil, e, em conseqüência, concebam a ampliação da república como momento preparatório para uma guerra final de movimento.

Em direção oposta, dirá Werneck Vianna, a descoberta gramsciana do americanismo - ou, nos termos do autor, "o eixo Risorgimento-americanismo" - mantém a revolução passiva como um problema e um processo em aberto, a depender da universalização da direção política e ideológica do homem-coletivo, desse novíssimo ator que extrai sua identidade das fábricas taylorizadas e do desenvolvimento das forças produtivas.

Para Gramsci, em suma, estava em curso a gestação de uma nova era mundial e, nela, a América, tal como em Tocqueville, teria uma lição a ensinar à Europa. Se, para Tocqueville, o vulcão sobre o qual se assentava a velha civilização era a irreversibilidade da marcha da igualdade, para Gramsci tratava-se do caráter inexorável da valorização do trabalho e do trabalhador, especialmente na sua forma racionalizada norte-americana. À diferença que, para Tocqueville, tal movimento prescindiria de um ator; ao passo que, para Gramsci, a naturalização que a hegemonia burguesa tentaria emprestar à "marcha dos fatos" poderia ser quebrada no próprio campo da revolução passiva, por um ator que, nascido do coração do mundo da produção, concedesse transparência ao processo em curso e se afirmasse como dirigente das "forças da antítese", dando passagem à mudança, derrotando a conservação. Nesse momento começaria a ser gerada uma vida estatal construída a partir "de baixo", em um movimento permanente de acumulação molecular. Esse o sentido do americanismo em Gramsci, essa a revolução continuada que, segundo ele, já se pusera em andamento no mundo, irradiada pela eticidade originária da fábrica fordista.

Foi com base na aproximação entre Tocqueville e Gramsci - uma aproximação que não proveio de mera analogia, mas do tratamento conceitual que imprimiu à questão do americanismo - que Werneck Vianna pôde reconhecer o giro teórico presente nos Quaderni. Ele consiste, a rigor, na identificação das possibilidades de geração de uma nova vida estatal originada da sociabilidade moderna, o que, no contexto estatólatra da década de 1930, quando Gramsci produzia suas notas e se generalizavam soluções nacionais de planificação, representava óbvio dissídio em relação às teorias em voga, do que são ilustrações as obras de Max Weber e Carl Schmitt, com suas ênfases na política como vontade de poder do Estado-nação.

É certo que, nos anos 30, o que Gramsci vislumbrou como a nova era mundial do trabalho taylorizado era um horizonte, não uma realidade, e que, dessa perspectiva, a descoberta teórica de uma vida estatal que emerge da estrutura configurava-se mais como aposta do que propriamente como resultado da observação de uma modernização globalizada. É que, assim como havia destacado os efeitos da "exportação" da Revolução Francesa no período da Restauração, Gramsci acreditava que, sob a influência da Revolução de 1917, poder-se-ia conhecer, por movimentos moleculares de natureza similar, a universalização de uma nova ordem planetária, derivada da sociabilidade e eticidade nascidas da fábrica - situação em que a América e a União Soviética, caso depurada de seus "desvios" estatólatras, freqüentariam uma mesma geografia.

Desde aí, a questão que deveria ser enfrentada por Werneck Vianna - e que assumiu prioridade na sua agenda intelectual ao final da década de 1990 - consistia na necessária atualização do significado do americanismo no contexto contemporâneo, quando a ordem industrial do modelo Ford-Taylor foi ultrapassada e se verificou o deslocamento da centralidade da categoria "trabalho" nos processo de formação da sociabilidade.

Por fim, como decorrência também do diálogo que Werneck Vianna promoveu entre Tocqueville e Gramsci, tornou-se mais clara a distinção que formulou entre as duas possibilidades inscritas na revolução passiva. A primeira delas - o império dos fatos - seria mais compatível com o andamento que Tocqueville identificou no processo de democratização do mundo, isto é, uma revolução entendida como vigência ininterrupta de uma "dialética sem síntese", para fazer uso da expressão crítica que Gramsci mobilizou contra o liberal Croce.

De acordo com Werneck Vianna, dessa realização do moderno pela via do americanismo tocquevilliano resultaria a acumulação de transformações moleculares em ondas reformadoras sucessivas, ainda que não necessariamente capazes de se projetar na política. Já a segunda possibilidade inscrita na revolução passiva é a que consagra o papel de dirigente político do "homem coletivo", o qual compreende a sua inscrição no processo transformista e estende as mudanças do plano estrutural ao Estado, mediante radical democratização de suas instituições.

Nesse caso, segundo Gramsci, a tese da modernização burguesa conheceria uma antítese capaz de disputar a hegemonia dominante, ao tempo em que animaria a sociabilidade, preparando-a para o exercício do autogoverno. Tal foi, em resumo, a contribuição teórica que Werneck Vianna reconheceu no "eixo Risorgimento-americanismo" e que, como o leitor notará, preside o conjunto de reflexões contido neste A revolução passiva.

Revolução passiva à brasileira

A démarche de Werneck Vianna, contudo, não estaria completa sem o mergulho que realizou na tradição brasileira. Quanto a esse movimento, qualquer tentativa de apresentação sintética de seus resultados correrá sempre o risco de omitir passagens importantes. Considerados, porém, apenas os aspectos tratados nesta coletânea, são três, e fortemente integradas, as principais questões formuladas por Werneck Vianna. A primeira concerne à contextualização da revolução passiva brasileira no período da Restauração européia.

O tema, como se vê, é de grande amplitude e significa parear o nosso processo de modernização com os casos de formações burguesas retardatárias tratados por Gramsci, entendendo-o, analogamente, como aquele que, no âmbito da América Ibérica, se destacaria por tão vivos compromissos entre o ímpeto modernizador e as resistências do passado [16].

No Brasil, como enfatizado por Werneck Vianna, o processo de independência não consistiu em um movimento revolucionário nacional-libertador, sendo, ao contrário, iniciativa do príncipe herdeiro da Coroa portuguesa. De modo que a mesma origem das revoluções passivas européias estaria contemplada na formação do Estado-nação no Brasil, uma vez que a migração da corte portuguesa em direção à sua então colônia atlântica foi um dos efeitos da Revolução Francesa, cujas conseqüências, se não foram desprezíveis do ponto de vista da evolução política local, seriam, contudo, limitadas socialmente, pela conservação dos fundamentos da agro-exportação escravista que orientaram a colonização do Brasil.

Assim, o liberalismo, que, em todo o chamado ciclo revolucionário francês de 1789 a 1848, se fizera influente na modernização molecular de sociedades patrimoniais da Europa continental, conheceria, no Brasil, aclimatação mais recessiva. Presidirá, como se sabe, a modelagem das novas instituições políticas após a independência, porém não oferecerá resistências de monta à escravidão, chegando mesmo a intensificá-la, ao fazer dela o esteio restaurador das estruturas econômicas herdadas do período colonial.

É certo que sempre se poderá dizer que, surdamente, encapuzadamente, como escreveu Florestan Fernandes, atuou como "fermento revolucionário", como fator propiciador de alguma diferenciação social e normativa no âmbito da sociedade civil, terminando por corroer, ao longo da segunda metade do século XIX, os fundamentos da ordem senhorial-escravocrata [17]. Mas sua influência "molecular" não se tornaria notável e urgente no âmbito da sociabilidade, em virtude de não ter proposto o enfrentamento da questão agrária, fronteira que os liberais não se dispuseram a ultrapassar.

Nesse sentido, o liberalismo não se converteria em uma ideologia de massa; confinou-se, antes, nos quadros políticos das elites, que o souberam dosar a conta-gotas, subordinando, como lembra Maxwell [18], a matriz do interesse individual às razões do interesse nacional. Em suma, o liberalismo brasileiro não existiu para consagrar a liberdade – nascido sob o estigma da ordem e da autoridade, viveu para fornecer sustentação ideal ao estabelecimento do Estado nacional.

Daí que Werneck Vianna inscreva a solução modernizadora brasileira na ampla galeria de casos nacionais de revolução passiva, considerando-a, a rigor, uma de suas modalidades em que mais fortemente atuou o pólo "conservação", não apenas pela precocidade com que nela se fizeram presentes os efeitos da Revolução Francesa, mas, principalmente, pelo compromisso de suas elites dirigentes com aspectos do colonialismo português, exemplarmente expressos na preservação da escravidão e no territorialismo - esse último rearticulado como política do recém-criado Estado brasileiro para a manutenção do monopólio da terra pelas classes senhoriais.

Na revolução passiva brasileira, conclui o autor, o protagonismo coube aos "fatos", em um andamento excessivamente distendido no tempo - percepção, aliás, que não esteve ausente dos operadores políticos do Império, tal como se depreende da afirmação recolhida de Joaquim Nabuco: "Há duas espécies de movimento em política – um de que fazemos parte supondo estar parados, como o movimento da Terra que não sentimos; outro, o movimento que parte de nós mesmos. Na política são poucos os que têm consciência do primeiro; no entanto, esse é, talvez, o único que não é pura agitação" [19].

A segunda grande linha de inquirição sobre o Brasil diz respeito ao problema da nossa singularidade no contexto do Ocidente moderno, proposição que Werneck Vianna extrai da tradição ensaística brasileira e toma como ponto de partida para afirmar que essa singularidade não resulta da herança cultural que recebemos, ou melhor, não é  manifestação do contínuo reiterar do patrimonialismo ibérico transplantado para nossa formação nacional, tal como a entendem Tavares Bastos [20] e toda uma linhagem de pensadores, de Raymundo Faoro a Simon Schwartzman, cujas análises sobre os males brasileiros remontam à colonização, à nossa histórica apartação da matriz do individualismo utilitário de corte anglo-saxão [21].

Para Werneck Vianna, portanto, o iberismo não consiste em um fato culturalmente herdado, sendo, antes, um certo tipo de solidariedade social e de padrões de associação impostos localmente pelos operadores políticos. Nesse caso, a vertente americanista de interpretação do Brasil assume um papel coadjuvante em sua análise, como simples expressão de um programa normativo, desencontrado das soluções modernizadoras que marcaram nossa trajetória. Avessa a ele, a argumentação de Werneck Vianna recai, coerentemente, na obra de Oliveira Vianna [22], tanto no que ela contém de crítica ao artificialismo da Constituição de 1891, quanto, mais tarde, em plenos anos 30, quando se traduziu na defesa da institucionalidade corporativa.

O aspecto a ser ressaltado é que Werneck Vianna pretende extrair da "ficção metodológica" [23] que os iberistas produziram sobre o Brasil uma teoria da revolução passiva à brasileira, entendida como longa marcha de transformações moleculares administrada por um Estado que invade a vida social, modelando-a. Assim, o evidente privilégio que concede à história, despindo algumas noções de seus conteúdos normativos e ressaltando-lhes as qualidades descritivas, é também a operação metateórica de compreender os conceitos a partir do estudo de sua gênese, isto é, a partir da relação inarredável entre eles e os mundos sociais de que provêm.

Por isso, da mesma forma que o conceito gramsciano de revolução passiva formaliza as experiências históricas de passagem à ordem burguesa sob a derrota das forças sociais do Terceiro Estado, como ocorreu no período da Restauração européia, o iberismo de que fala Werneck Vianna é uma formalização das práticas e instituições do Estado ampliado no Brasil. Sua polaridade, portanto, em relação ao americanismo não se dá no plano da cultura, dos valores, como ideais civilizatórios alternativos - são, antes, dois modelos distintos de articulação entre política e sociedade, em que o primeiro indica a estatalização da vida social mediante o recurso a uma espessa malha de agências intelectual-burocráticas; e o segundo, uma formação estatal econômica, já que prescinde de maiores mediações entre a política e o mundo da produção.

A história do iberismo é, pois, a história do desempenho do Estado brasileiro em sua ação modernizadora. E a análise da obra de Oliveira Vianna permite reconhecê-lo em dois tempos - o da formação da ordem nacional e o da alavancagem do capitalismo no contexto do Estado Novo.

Iberismo e americanismo

De acordo com Werneck Vianna, em 1918, ano de redação de Populações meridionais do Brasil, a preocupação de Oliveira Vianna consistia em "trazer aos responsáveis pela direção do país [...] o conhecimento objetivo do nosso povo", remontando, para isso, à nossa paisagem rural em sua primeira hora, aos seus personagens matriciais e à vigência de uma solidariedade parental e gentílica, que, a despeito de seu papel estruturante naquele mundo, não seria capaz de produzir uma ordem nacional.

Para Oliveira Vianna, nossas elites agrárias, na origem, não se credenciaram como agentes da integração política, como organizadores do Estado nacional, ou, em suas palavras, como instituintes de uma "consciência de solidariedade mais vasta." Daí o esforço de centralização desfechado pela monarquia, do que resultou a gradual subordinação do poder local ao central, do privado ao público, da ação dissolvente dos caudilhos à ação civilizatória do Estado imperial.

Por conseguinte, dirá Oliveira Vianna, a autonomização do Estado brasileiro, isto é, sua sobreposição à sociedade, embora pudesse ostentar uma aparência assemelhada às formações estatais asiáticas, seria responsável, em sentido inverso, pela promoção das liberdades, uma vez que a ele caberia defendê-las contra os caudilhos territoriais - "estes é que, de posse do poder local [...], ameaçam as cidades, as aldeias, as famílias [...]. O poder central sempre intervém para garantir os cidadãos na integridade dos seus direitos, no gozo das suas liberdades, na inviolabilidade do seu domicílio ou da sua pessoa" [24].

Na década de 1920, então, embora a sociedade brasileira ostentasse evidentes transformações econômicas e culturais, o tema da modernização burguesa não participa centralmente da análise de Oliveira Vianna. Será uma espécie de "presença" ausente, diluída na impressionante caracterização da nossa sociologia rural, na "ficcionalização" de uma origem que servia ao autor para contrastar a "vocação" política do Brasil - a centralização monárquica - com a das democracias representativas do Ocidente liberal.

Como se sabe, foi com base nesse contraste que Oliveira Vianna condenou a institucionalidade liberal republicana como um "exotismo de intelectuais cosmopolitas", que não nos atendia e, ademais, não nos alinhava com a tendência em voga no mundo de valorizar os povos que "se organizam sob critérios objetivos [...], e sabem encarar com serenidade a vida como ela é." Na sua sentença crítica: a República brasileira era institucionalmente anglo-saxã em uma sociedade sem liberdades civis; era racionalista em tempos de experimentalismo social; era, enfim, liberal-democrática em um ambiente em que "governo do povo" era sinônimo de "governo de clãs", e no qual somente um Estado centralizado poderia defender a liberdade contra a opressão exercida pelos caudilhos.

Mas no decurso de uma década, quando a dinâmica urbano-industrial se tornou mais buliçosa e os personagens daquele novo cenário começaram a reivindicar sua inclusão política, brandindo o texto constitucional em defesa da lisura do processo eleitoral ou da justiça livre - ambas demandas que animaram a Revolução de 1930 e seriam frustradas nos anos subseqüentes -, Oliveira Vianna transitará da crítica ao liberalismo à proposição de uma nova organização nacional, em que o modelo de Estado centralizado do Império brasileiro viesse a se atualizar e conduzir o projeto de modernização do país.

Nesse sentido, segundo Werneck Vianna, imediatamente após o golpe de Estado de 10 de novembro de 1937, a promulgação da nova Constituição foi justificada como um necessário ajustamento do país "ao espírito do tempo", que estaria a reclamar uma identidade entre Estado e nação, impensável sob o arcabouço liberal. A nova forma do Estado deveria sobrepor-se a todos os interesses, subordinando-os à vontade geral, à vontade da nação, de que seria efetiva materialização. Sua missão precípua será a de generalizar seu escopo para enfrentar o particularismo e, nesse movimento, subordinará os trabalhadores urbanos no interior da estrutura corporativa, atribuindo-lhes identidade pública.

Sobreposto como ente moderno e racional a uma sociedade tida como atrasada e ameaçada por forças centrífugas regionais, o Estado Novo visou exercer uma tutela pedagógica sobre ela, impondo uma configuração orgânica ao que antes era disperso e invertebrado. E, a partir daí, como afirma Werneck Vianna, "Estado e sociedade, solidariamente articulados por meio das corporações, não se comportariam como esferas contrapostas, tal como ocorria no sistema político liberal, mas realizariam uma unidade sob o imperativo da vontade nacional, dando origem a uma democracia substantiva, em oposição à democracia meramente formal dos liberais" [25].

Em resumo, para Werneck Vianna, Estado imperial e Estado Novo, figuras do Estado ampliado brasileiro, teriam sido os lugares de operação de uma intelligentsia empenhada em adequar o país ao espírito do tempo, organizando as instituições que deveriam fazer avançar o moderno, o racional-legal, o desenvolvimento da infra-estrutura material contra o arbítrio e a compressão de que a sociedade era acometida pela dominação de grupos e indivíduos particularistas. Nesse caso, segundo o autor, em que pese a invasão que realizaram no âmbito da sociedade, não haveria nessas formas estatais qualquer reificação da cultura da velha Ibéria, pensada como um fim em si mesma - nem no século XIX nem nos moldes em que ela foi reeditada sob o salazarismo, de que a ditadura Vargas foi contemporânea.

Ao contrário, os traços prevalecentes da ação do Estado ampliado brasileiro, a saber, a impessoalidade, a generalidade e o caráter abstrato da razão nacional, em um contexto em que homens e mulheres viviam à mercê do favor pessoal, sujeitos à dependência pessoal e às políticas de clientela, representavam um avanço da agenda da igualdade, um "fato" da nossa revolução passiva, ainda que imposto "de cima", sob pesada ausência das instituições da liberdade.

Portanto, para Werneck Vianna, a lei e as instituições do direito tiveram no Brasil, desde sempre, um papel virtualmente educativo, mesmo no Estado Novo -  mais até nesse caso, quando o direito corporativo pretendeu constituir-se em uma "escola de civismo", mediante a qual os interesses seriam elevados à esfera pública, dada a subsunção do mundo do trabalho à razão do Estado.

É claro que, na concepção dos ideólogos estadonovistas, o sentido desse modelo não era o de produzir autonomia, mas o de exercer ação pedagógica acerca do bem-comum, centrada nas idéias de colaboração e de harmonia entre as classes sociais. Porém, ao criar as instituições que aproximaram os indivíduos do Estado e ao conceber a economia como sistemicamente articulada à política e à organização social, produziram a conversão dos trabalhadores em cidadãos [26] - primeiro, é certo, uma cidadania subsumida aos fins nacionais, mas, a partir de 1946, uma cidadania afirmativa, de forte notação republicana, que ganhava impulso à medida que se ampliavam as liberdades e que os sindicatos, a despeito de sua camisa-de-força legal, passaram a abrigar processos tendentes a uma efetiva autonomização do mundo do trabalho, em um movimento que teve seu curso interrompido pelo golpe militar de 1964.

Promover sociabilidade, em suma, foi intenção de uma intelligentsia jurídica, cuja obra, segundo Werneck Vianna, esteve permanentemente voltada para a atenuação do desajuste entre uma ordenação conservadora e uma prática modernizante, administradas, ambas, pelo Estado. Nesse caso, o americanismo no Brasil, isto é, o processo mediante o qual a sociabilidade se torna o campo de que emerge a vida estatal, talvez não encontre sua base originária na planta fabril, mas nessa já longa tradição jurídica e na sedimentação de direitos que lhe foi correspondente [27] - problema que Werneck Vianna formulou a partir da análise da evolução política brasileira e que tem ocupado primeiro plano nas pesquisas que vem desenvolvendo desde a publicação deste A revolução passiva.

Finalmente, a terceira questão sobre a trajetória de modernização do Brasil contida nesta coletânea refere-se às recentes transformações verificadas nas ciências sociais do país [28]. Há algumas justificativas plausíveis para a inclusão desse texto no âmbito de uma reflexão sobre a revolução passiva brasileira. Inclusive a que o toma como o que aparentemente pretende ser: a história da constituição de um campo científico, a partir das controvérsias que o animaram no período compreendido entre o início da década de 1960 e meados dos anos 80, quando, como se sabe, as disputas acadêmicas em torno das noções de moderno, modernização e termos afins se referiam a divergências políticas quanto às formas de luta contra a ditadura militar.

Americanização do Brasil

De fato, se tomado a partir de sua substância, o texto esclarece muitas das distinções entre a sociologia praticada pela "escola paulista" e aquela que se instituiu nas diversas agências intelectuais articuladas em torno do Iseb, chamando a atenção para as circunstâncias históricas de seu aparecimento, as concepções disciplinares que portavam e as implicações políticas das suas respectivas análises, que, somadas, configuram a trajetória das ciências sociais no processo de modernização autoritária brasileira.

O ensaio, então, se fecha com o diagnóstico das mudanças recentes experimentadas pelos cientistas sociais - de intelligentsia a pesquisadores especialistas - e com uma aposta na democratização do debate público mediante a crescente aproximação entre a agenda acadêmica e os interesses presentes na sociedade, sendo esse, segundo o autor, sintoma eficiente do andamento da revolução passiva brasileira, em contexto de liberdades políticas.

Independentemente, porém, da relevância das questões substantivas abordadas, o ensaio que encerra esta coletânea sugere também uma reflexão acerca do significado que Werneck Vianna emprestou à idéia de americanização do Brasil. O ponto a destacar, nesse passo, é que, a partir da caracterização do "eixo Risorgimento-americanismo" e da recusa ao papel da intelligentsia como ator dirigente dos processos de mudança - o que significou, como se viu, desatrelar a noção de revolução passiva de um desfecho revolucionário, jacobino -, Werneck Vianna buscará apontar a extemporaneidade da intelligentsia de tipo tradicional, manheimmiano, no atual contexto brasileiro.

Portanto, em movimento análogo ao de Gramsci, cuja imersão na sociologia norte-americana visava responder a uma indagação teórica acerca do ator da revolução passiva nos anos de 1930, Werneck Vianna conceberá uma pesquisa sobre a sociologia dos intelectuais brasileiros, buscando compreender a nova feição desse estrato e sua peculiar inscrição no mundo público - movimento em direção à empiria, que marcou sua produção ao longo da década de 1990 [29].

Tal linha de pesquisa, cujos desdobramentos foram diversos, concentrou-se, inicialmente, na produção de um diagnóstico sobre as ciências sociais no país, chamando a atenção para a abertura das universidades aos segmentos da sociedade que haviam permanecido excluídos de seus bancos, bem como para os efeitos dessa abertura no que concerne ao estabelecimento de fortes nexos entre a nova geração de cientistas sociais e os temas da agenda democrática do país.

Com isso, a principal sugestão dos trabalhos realizados à época consistia em apontar o encontro da reflexão universitária mais recente com o "reformismo social" que caracterizara a origem da sociologia como disciplina - e que, no Brasil, por ter ela nascido desvinculada da sociedade civil e se institucionalizado em contexto autoritário, não fora sua marca de fundação [30].

Daí que a nova ciência social brasileira, portadora, agora, da vocação da "reforma", habitante da universidade democratizada e aclimatada às condições políticas de ampliação das liberdades, será apontada por Werneck Vianna como uma evidência da "americanização" da disciplina - americanização que teria a seu favor não só o caráter especializado que hoje domina a pesquisa social, mas, sobretudo, o perfil de sua nova geração de praticantes.

Neles, segundo o autor, a opção pela ciência não aparece dissociada de motivações para a participação na vida pública, mas a forma preferencial de sua participação não se confunde com a da intelligentsia, isto é, não se configura a partir da auto-atribuição de um mandato racional que desconhece os interesses da sociedade e se impõe a ela, olimpicamente. Enfim, ao identificar no modelo de produção científica e de intervenção social que prosperou na Universidade de Chicago um parâmetro para o entendimento dos processos que - com o intervalo de um século - têm curso nas ciências sociais brasileiras, a conclusão mais óbvia que se pode extrair do ensaio de Werneck Vianna é a de um relançamento das disciplinas sociais a partir de sua recente e produtiva vinculação com a sociedade civil. Mas o alvo implícito do autor será ainda a velha intelligentsia, apontada como um ator político em vias de extinção, deslocado, socialmente, pelo próprio andamento da revolução passiva brasileira.

Há, contudo, uma outra dimensão da "americanização" do Brasil trazida à tona pela agenda de investigação sobre as ciências sociais. Menos evidente no ensaio que encerra esta coletânea, viria a ser desenvolvida, a rigor, em trabalhos subseqüentes, empreendidos também no âmbito do Laboratório de pesquisas sobre institucionalização das profissões intelectuais. Para sua formulação foi crucial, naqueles anos, a incorporação de um conjunto de autores mais identificados com o que se poderia classificar como uma sociologia do conhecimento, de que Bruno Latour seria importante referência [31].

Vista com a perspectiva que o tempo concede e com razoável dose de simplificação, a principal contribuição de Latour aos problemas suscitados pelo tema da americanização do Brasil foi a percepção de que no contexto brasileiro, em que, como diria Gramsci, a estrutura é "fraca" e a sociabilidade não se constitui em um campo de produção de consenso e coesão social, a ciência poderia consistir em uma instância de ampliação da esfera pública. Porque, definida a ciência como requer Latour - ou seja, como resultado contingente de infindáveis controvérsias entre interesses e idéias de indivíduos e grupos -, sua simples existência implicaria a tessitura de redes sociais sob uma linguagem comum (a retórica científica), capaz de fornecer os termos em que o debate entre diferentes públicos se torna possível, de alinhar interesses de procedências diversas e de projetar as condições para o estabelecimento de consensos socialmente fundados [32].

No limite, a persuasiva exposição de Latour permite concluir que a ciência atenuaria os grandes problemas das democracias contemporâneas - a apatia cívica e a perda de referências comuns -, pois a dinâmica universalizadora instaurada por ela, em sendo dialogal, não requereria, contudo, indivíduos politizados ou portadores de argumentos apriorísticos sobre quaisquer dos temas em pauta.

Em outras palavras, se o problema do mundo contemporâneo é o retraimento do espaço público e a conseqüente atrofia das bases do consenso, o rendimento heurístico da descoberta de Latour consiste em conceber a formação do consenso sem o recurso a uma "opinião esclarecida", isto é, a partir, tão somente, da rede de mediações que faz de uma idéia (ou de um artefato, teoria ou máquina) a solução mais universal para os problemas postos por indivíduos e grupos, tornando-a um ponto obrigatório de passagem para todos quantos desejem realizar seus interesses [33].

O ponto é relevante no contexto da reflexão sobre a revolução passiva brasileira, pois, como se pretendeu esclarecer ao longo deste prefácio, o núcleo da coletânea reside na caracterização das possibilidades de extração da vida estatal diretamente da sociabilidade, no que se poderia afigurar como uma teleologia do autogoverno. De fato, a categoria-chave de Werneck Vianna é a sociabilidade, e cada um dos ensaios que compõem este A revolução passiva se desdobra sobre ela, ora de uma perspectiva teórica, ora sob a forma de uma história do pensamento social ou de uma sociologia dos intelectuais e da ciência no Brasil.

Desse ponto de vista, o tratamento que Werneck Vianna concede ao tema da americanização consiste, na verdade, na explicitação das condições de possibilidade de que o Brasil se desprenda de sua trajetória européia - com suas espessas camadas intelectual-burocráticas de mediação entre o Estado e o mundo da produção - e desenvolva aquilo que, da América, reside, ainda que em potência, na democracia brasileira, relevados, nesse caso, os homens comuns, seus interesses e direitos.

Nesse sentido, quaisquer dos modos de vitalização da sociabilidade e de ampliação das bases do consenso - como faz Latour, em sua discussão sobre a ciência - são valorizados como expressões do americanismo, distintas, portanto, das figuras do nosso iberismo, do nosso Estado ampliado, que, como se viu, assume, em Werneck Vianna, uma face modernizadora, implementadora, em um certo sentido, da "agenda da igualdade", porém sob ação coativa, cancelando os esforços de autonomização da sociedade e a submetendo a modalidades autoritárias de controle.

De qualquer modo, o tema da americanização, já perfeitamente delineado nesta coletânea, terá seu curso além dela, em trabalhos que vieram a público nos últimos anos da década de 1990 e que continuam a se desenvolver em pesquisas mais recentes [34]. Nesses trabalhos, a ancoragem do problema da americanização despe-se do pressuposto gramsciano de uma valorização universal do trabalho e da eticidade originária das fábricas taylorizadas para caminhar livremente em um cenário pós-fordista, no qual Werneck Vianna atribuirá à chamada "revolução dos direitos" um sentido análogo ao que Gramsci reconheceu como o processo aberto e ilimitado da democratização mundial permanente.

Civilização brasileira, à guisa de conclusão

Bons livros, como se sabe, são bifrontes - revelam programas de trabalho já cumpridos e novos problemas a enfrentar. Ao longo deste prefácio, foram mencionadas algumas temáticas derivadas das pesquisas desenvolvidas por Werneck Vianna nas décadas de 1980-90, que não conheceram completo desdobramento nos ensaios que compõem a coletânea. Portanto, esta última seção se dedica a inventariar os temas que participam da atual agenda do autor, cujas versões embrionárias são facilmente reconhecidas nas páginas deste A revolução passiva [35].

Das frentes de investigação abertas pelos textos de 1990, Werneck Vianna debruçou-se, como já mencionado, sobre aquela relativa ao significado do conceito gramsciano de americanismo no contexto contemporâneo, o que implicaria reconhecer o exercício das funções hegemônicas da fábrica fordista em uma outra agência de vitalização da sociabilidade, que, ademais, como na perspectiva explicitada por Gramsci, preenchesse o requisito da universalidade, isto é, não se afigurasse como traço idiossincrático de uma formação social específica, caracterizando-se, alternativamente, como conceito de validade geral, indicativo do processo de democratização progressiva do mundo.

Além disso, segundo o próprio autor, se admitida a solução que deu ao problema, que consistiu em estabelecer o conceito de americanismo no plano do direito - já que é dele que têm procedido, desde as Constituições do segundo pós-guerra, formas universais e inovadoras de autocomposição social e de animação da cidadania [36] -, ainda assim lhe restaria enfrentar o fato de que, nesse plano, o americanismo se aproximaria mais da perspectiva tocquevilliana do que propriamente da gramsciana, que, como se viu, prevê a existência de um ator, capaz de projetar as transformações moleculares da sociabilidade na esfera política.

Por fim, e decorrente da afirmação anterior, poder-se-ia acrescentar que, para Werneck Vianna, mesmo considerando-se a nova forma que a política tem assumido no mundo - em que, no próprio núcleo do Estado, as instituições e agentes responsáveis pela prestação jurisdicional tendem a se afirmar como forças políticas democratizadoras -, tal modelo de política judicializada não garantiria, por si só, a autonomização dos atores sociais, bem como sua conversão em sujeitos políticos, podendo mesmo perverter-se em uma espécie de "clientelismo jurídico", risco real quando se atenta para o ativismo crescente dos juízes, instados, como são hoje, a se colocarem na posição de mais alta instância moral da sociedade [37].

Em resumo, a hipótese de Werneck Vianna sobre a "migração" contemporânea das funções hegemônicas da fábrica fordista para o direito não é destituída de problemas, reconhecendo o autor, explícitamente, a existência de uma vasta gama de questões derivadas dessa sugestão.

Sintetizando a problematização esboçada acima, pode-se dizer que a atualização do americanismo com base no direito seria possível, desde que atendidos dois requisitos: (a) admitir-se que a judicialização da política e das relações sociais favorece, de fato, o fortalecimento de uma cidadania ativa no âmbito da sociedade civil, capaz de assediar permanentemente o Estado e lhe impor uma agenda de democratização radical de suas instituições; e (b) admitir-se a viabilidade da contenção dos riscos de que tal judicialização reconstitua, por caminho inesperado, as conhecidas funções de uma intelligentsia tradicional - representada, no caso, pelos juízes e demais operadores do direito -, cujas ações, imbuídas de uma racionalidade compensatória e comprometidas com a idéia de "justo", caminhassem no sentido da afirmação de uma democracia substantiva, desconhecendo o próprio "império da lei".

Em outras palavras, para Werneck Vianna, a expansão contemporânea do poder judicial só poderia corresponder positivamente à aposta gramsciana em uma estatalidade nova, extraída de práticas sociais potencializadoras do autogoverno, caso tivesse suas virtudes ampliadas e controlados seus vícios. Assim, a perspectiva construída pelo autor resulta do diálogo singular que promoveu entre vertentes contrapostas da sociologia jurídica quanto ao fenômeno da judicialização - a primeira, representada principalmente por J. Habermas, em quem o tema da participação cidadã no debate público é enfatizado, porém no quadro de uma institucionalidade política previamente limitada; e a segunda, por M. Cappelletti e R. Dworkin, em quem os limites institucionais da democracia representativa são flexibilizados pela "abertura" das instituições do direito à representação de demandas sociais, porém sem atentar fortemente para os riscos dessa flexibilização em ambientes em que inexiste uma sólida cultura da liberdade [38].

Em suma, a crítica de Habermas à expansão do poder judicial é relativizada na reflexão de Werneck Vianna, mediante a incorporação do antídoto que extrai da obra de Dworkin, que consiste, fundamentalmente, em uma visão de continuidade da história, base de um modelo hermenêutico que se sustenta nas tradições, por ver nelas a via de recuperação de uma ordem jurídica formada por direitos constituídos e compartilhados por todos os cidadãos.

Desse modo, pode-se dizer que a avaliação de Werneck Vianna acerca da expansão do poder judicial não deriva da adesão a um modelo, mas, antes, da observação das repúblicas democráticas tal como existem no mundo. Por isso, é capaz de combinar o paradigma habermasiano de uma vontade geral "pós-metafísica" - que prescinde de concepções apriorísticas de bem ou de boa sociedade, remetendo apenas a procedimentos garantidores da livre participação da sociedade na formação da opinião e na sua tradução em uma vontade majoritária - com o modelo hermenêutico de Dworkin, confiante na tradição e nos valores comuns encarnados na trajetória ocidental do direito.

O resultado é a valorização de uma institucionalidade republicana concebida como construção histórico-processual e dinamizada, hoje, por inovações jurídico-políticas, capazes de, em dando curso ao processo de democratização da esfera pública, torná-la permeável aos interesses de indivíduos comuns e não necessariamente politizados [39]. Sob essa combinação, expressiva da coexistência entre formas clássicas e inovadoras de representação, desponta um problema crucial às democracias ocidentais, que, segundo Werneck Vianna, a tradição revolucionária republicana de 1789 não pôde resolver, qual seja, o da compatibilização da "vontade geral" com a "liberdade dos modernos" - princípios que estiveram na base dos respectivos processos de modernização burguesa na França e na América, e que hoje, para o autor, conhecem inédita convergência [40].

A perspectiva de Werneck Vianna está, pois, a serviço de uma concepção de democracia contínua, que descarta rupturas políticas e sobreleva a figura do indivíduo ordinário - concepção que, para o autor, deveria poder abranger mesmo as sociedades em que a institucionalização dos modernos institutos da democracia política se fez desencontrada de uma cultura cívica capaz de ancorá-la. Daí o diálogo que promove entre a ênfase habermasiana na idéia de democracia deliberativa - que, contudo, pressupõe cidadãos autônomos e ativos, além de uma cultura da liberdade - e a perspectiva de Cappelletti ou Dworkin, cujo pressuposto da positivação dos princípios da liberdade e da igualdade na lei e nas instituições do direito sinaliza para a universalização e democratização crescentes das instituições republicanas, sem requerer dos cidadãos empíricos a socialização cívica que o ideal de república prevê.

Assim, para Werneck Vianna, a nova forma assumida pelo americanismo é a que se entrevê nos modos, ainda que incipientes, de auto-regulação social e de assédio contínuo ao Estado. E como a atividade intelectual do autor se funde com o seu perfil político, esse ideal, concebido no âmbito de uma vigorosa incursão no debate teórico contemporâneo, não poderia ocultar sua destinação. É, pois, a democracia brasileira que tem em mente, bem como a consideração de que, a se caminhar em direção a uma reforma radical das instituições do Estado - movimento que corresponderia a um outro ciclo de "importação" das transformações moleculares em curso no mundo – sejam resguardadas, nessa operação, duas recomendações "metodológicas" que extraiu da literatura pertinente: dissolver o que no Estado brasileiro representa um efetivo bloqueio à democratização contínua da sociedade, assimilando, contudo, reflexivamente, a sua tradição civilizatória. Implica dizer que a auto-regulação social que Werneck Vianna antevê deverá conter, ressignificada, a trajetória brasileira de afirmação do público e da sedimentação de direitos que lhe foi correspondente.

O registro final deste prefácio não poderia deixar de ser a constatação da relevância do livro em questão. Ele marca, profundamente, a trajetória de Werneck Vianna, destacando-se, com notável sobranceria, no conjunto de sua obra. Nele está evidenciada, como em nenhum outro, a dupla inscrição do autor, como liderança intelectual nas ciências sociais brasileiras - do que dão conta várias notas deste prefácio, dedicadas à contextualização institucional da sua produção acadêmica - e como publicista, formador de opinião, animador do debate público-político no país, desde o cisma comunista do início da década de 1980.

Disso deriva o fato de que A revolução passiva, ao lado de se constituir como referência para os estudos brasileiros sobre o país e sobre as teorias que possibilitam conhecê-lo em perspectiva transformadora, é, sobretudo, um programa político, urdido ao longo dos anos de 1990, quando o país experimentava os primeiros efeitos do seu novo ordenamento constitucional e constatava os estragos devastadores que o autoritarismo político havia imprimido à sociabilidade brasileira no longo espaço de tempo em que dirigiu a nossa modernização econômica.

Como programa político, o interlocutor almejado deste livro é o Partido dos Trabalhadores. Sua intenção, ao percebê-lo como ator decisivo no processo de liberalização política que tinha curso nos anos de 1980-90, foi a de afirmar a democracia como núcleo da interpretação da esquerda brasileira acerca de sua própria forma de inserção na revolução passiva.

Daí a enfática crítica de Werneck Vianna à idéia de ruptura política, bem como ao seu corolário programático - a construção de uma vontade popular autônoma que, sob a direção de uma intelligentsia filosoficamente orientada, se constituísse em uma alternativa radicalmente diferente de tudo o que o país conhecera. Às vozes então correntes contra a história, contra a cultura, contra a civilização que os portugueses criaram nos trópicos, o autor contrapõe essa inspirada e densa defesa da democratização permanente, bem como uma vigorosa convocação da esquerda brasileira para as tarefas de direção da revolução passiva no país.

A história de sucesso do PT, que inclui a recente eleição do Presidente Luis Inácio Lula da Silva, parece contradizer os sombrios prognósticos de Werneck Vianna quanto à opção daquele partido por não disputar a política real, preferindo manter-se "no apostolado de sociedade civil", no front superestrutural de construção de uma cultura nova, de uma eticidade nova, em substituição à nossa tradição. E seria irônico que a reedição deste A revolução passiva coincidisse, exatamente, com o momento de triunfo daquela agenda. Contudo, a vitória eleitoral do PT é, em muitos sentidos, um encontro com as perspectivas apontadas nesse livro.

Por isso, talvez seja esse o momento mais adequado para o seu relançamento e para o convite a que o leiam os interessados na radical democratização do país, na valorização da nossa trajetória como civilização, na identificação dos caminhos que a pesquisa social brasileira tem conhecido, na inventiva formulação de conceitos em que a nossa sociedade se reconheça, na defesa da universalização dos direitos e das liberdades, mas, sobretudo, em uma visada humanista da grande marcha brasileira em direção à vida livre e socialmente justa.

Rio de Janeiro, março de 2004.

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Maria Alice Rezende de Carvalho é professora do Iuperj. Este texto foi publicado originalmente como prefácio à segunda edição de Luiz Werneck Vianna, A revolução passiva - iberismo e americanismo no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 2004).

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Notas

[1] Liberalismo e sindicato no Brasil, originalmente tese de doutoramento, foi publicado em 1976, pela Editora Civilização Brasileira, tendo sido reeditado duas vezes. Em 1999, o livro recebeu a sua 4a edição pela Universidade Federal de Minas Gerais, acrescida de um prefácio do autor.

[2] As obras de referência desse campo são, sabidamente, a de Florestan Fernandes, A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1975, e a de Raymundo Faoro, Os donos do poder: formação do patronato brasileiro. 2. ed. São Paulo: Globo, 1975, 2 v. A explicitação das divergências do autor quanto a aspectos centrais das obras mencionadas encontra-se neste volume, no ensaio intitulado "A institucionalização das ciências sociais e a reforma social: do pensamento social à agenda americana de pesquisa".

[3] Vladimir Ilitch Lenin. El desarrollo del capitalismo en Rusia: el proceso de la formación de un mercado interior para la gran industria. Moscu: Editorial Progreso, 1979.

[4] Antonio Gramsci. Cadernos do cárcere. V. 5: O Risorgimento. Notas sobre a história da Itália. Edição de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2002.

[5] Sobre o "protagonismo dos fatos", a observação de Gramsci é a seguinte: "Revolução passiva - Protagonistas os ‘fatos’, por assim dizer, e não os ‘homens individuais’. Como, sob um determinado invólucro político, necessariamente se modificam as relações sociais fundamentais e novas forças políticas efetivas surgem e se desenvolvem, as quais influenciam indiretamente, com pressão lenta, mas incoercível, as forças oficiais, que, elas próprias, se modificam sem se dar conta, ou quase" (Antonio Gramsci, "Caderno miscelâneo" n. 15, § 56. In: Cadernos do cárcere. V. 5, ed. cit., p. 328). Ver, também, N. Badaloni. Il marxismo di Gramsci. Turim: Einaudi, 1975.

[6] Grande parte desses textos encontra-se publicada em diversos números de Presença - Revista de política e cultura, no período compreendido entre o ano de 1983 e o de 1992, quando o periódico deixou de circular. Presença foi criada sob a liderança de David Capistrano Filho, por um grupo dissidente do PCB, cujas concepções de luta política no contexto da transição democrática guiavam-se, em larga medida, por temas eminentemente gramscianos, como hegemonia, "guerra de posição", ampliação cultural, entre outros. A partir de seu sétimo número, publicado em março de 1986, a revista passou a ter sede no Rio de Janeiro, sendo editada por esta prefaciadora. A notável capacidade que Presença demonstrou de atrair personalidades públicas, de integrar redes de intelectuais independentes, dentro e fora da Universidade, e de organizar um campo de opinião democrática sugere o acerto de sua orientação nos anos que precederam a Constituição de 1988.

[7] Luiz Werneck Vianna. "Múltipla escolha: a esquerda e os quinze anos da transição, ou quinze anos de transição da esquerda". Insight-inteligência, Rio de Janeiro, Ano III, n. 10, maio/jun./jul. 2000, p. 46-52. Este artigo reúne e atualiza os principais argumentos do autor, desenvolvidos em textos políticos publicados na revista Presença.

[8] Antonio Gramsci. Cadernos do cárcere. V. 4: Temas de cultura. Ação católica. Americanismo e fordismo. Edição de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2001.

[9] Em sua formação original, o grupo contou com a participação de José Murilo de Carvalho, Lucia Lippi, Ricardo Benzaquen de Araújo, Helena Bomeny, Beatriz Jaguaribe e desta prefaciadora, além de outros nomes com menor assiduidade. Para o seu lançamento, foi convidado como conferencista Richard Morse, cujo livro El espejo de Prospero: un estudio de la dialéctica del nuevo mundo (México: Siglo Veintiuno, 1982) era uma das referências compartilhadas pelo conjunto dos participantes. Como desdobramento das atividades empreendidas pelo grupo, a revista Presença publicou quatro artigos sobre o tema de que trata o livro de Morse: inicialmente, o de José Guilherme Merquior ("O outro ocidente", Presença, n. 15, abr. 1990, p. 69-91) e, no mesmo número, o de Felipe Arocena ("Ariel, Caliban e Próspero - notas sobre a cultura latino-americana", p. 92-109), pesquisador uruguaio, desenvolvendo tese de doutoramento no Iuperj. A eles se seguiu o de Lucia Lippi ("Anotações sobre um debate", Presença, n. 16, abr. 1991, p. 26-41), na verdade uma apresentação crítica do debate travado entre Richard Morse e Simon Schwartzman, publicado pela revista Novos Estudos Cebrap em seus números 22, 24 e 25, do ano de 1989. Finalmente, em 1992, Presença deu a público um ensaio inédito de Morse, intitulado "Dez anos de ‘Próspero’", em que o autor faz um balanço de seus erros e acertos na obra em questão (Presença, n. 18, jun. 1992, p. 123-52). O grupo extinguiu-se nos primeiros anos da década de 1990, mas sua influência na agenda intelectual de seus membros faz-se notar por uma série de trabalhos publicados no período subseqüente. Entre os mais obviamente derivados das discussões travadas ali, estão, além dos artigos que compõem este A revolução passiva, o ensaio de Beatriz Jaguaribe, intitulado "Autobiografia e nação: Henry Adams e Joaquim Nabuco" (In: Guillermo Giucci e Maurício Dias [Orgs.]. Brasil–EUA. Rio de Janeiro: Leviatã, 1994, p. 109-41), a coletânea de artigos produzidos por Lucia Lippi, entre 1991 e 1999, editada sob o título Americanos - representações da identidade nacional no Brasil e nos EUA (Belo Horizonte: UFMG, 2000), e O quinto século - André Rebouças e a construção do Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1998), redigido como tese de doutoramento da prefaciadora.

[10] Alexis de Tocqueville. A democracia na América. 3. ed. Belo Horizonte: Itatiaia/ São Paulo: Edusp, 1987.

[11] J.V. Femia. GramsciÂ’s Political Thought. Oxford: Clarendon Press, 1981.

[12] Tais autores, que Werneck Vianna agrupou neste livro sob a denominação de "partido Maquiavel", são, principalmente: U. Carpi ("Egemonia moderata e intellettuali nel Risorgimento". In: Storia d’Italia, Annali 4 - Intellettuali e potere. Turim: Einaudi, 1991), Carlos Nelson Coutinho (Gramsci, um estudo sobre o seu pensamento político. Rio de Janeiro: Campus, 1989), J. Femia (Gramsci’s Political Thought, ed. cit.) e Christine Buci-Gluksman ("Sobre os problemas políticos da transição: classe operária e revolução passiva". In: Política e história em Gramsci. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978).

[13] O exemplo fornecido por Gramsci é o liberalismo, que, segundo ele, é tido, em geral, como "uma expressão espontânea, automática, do fato econômico". Concedendo-lhe tratamento similar ao de Karl Polany, no seu conhecido A grande transformação (Rio de Janeiro: Campus, 1980), Gramsci afirma que o liberalismo só pode ser entendido como programa político, introduzido e mantido por leis e pela coerção, consistindo, portanto, em um fenômeno produzido por uma vontade consciente dos seus fins.

[14] Nas palavras de Tocqueville: "O governo da democracia faz com que a idéia de direitos políticos desça até o menor dos cidadãos, como a divisão dos bens põe a idéia do direito de propriedade em geral ao alcance de todos os homens". In: Alexis de Tocqueville. A democracia na América, ed. cit., p. 185.

[15] Antonio Gramsci. Cadernos do cárcere. V. 3: Maquiavel – notas sobre o Estado e a política. Edição de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2000.

[16] Ver, neste A revolução passiva, o ensaio intitulado "Caminhos e descaminhos da revolução passiva à brasileira".

[17] Florestan Fernandes. A revolução burguesa no Brasil, ed. cit. Esta obra clássica, citada por Werneck Vianna em vários textos de sua autoria, contém uma flagrante tensão entre as duas partes em que se divide. É da primeira parte, mais especificamente da análise histórico-social do liberalismo brasileiro, que Werneck Vianna extrai os argumentos confluentes com a sua própria perspectiva, apresentada em Liberalismo e sindicato no Brasil e na presente coletânea.

[18] Kenneth Maxwell. Pombal Paradox of the Enlightenment. Cambridge: Cambridge University Press, 1995.

[19] Joaquim Nabuco. Minha formação. 13. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, p. 118.

[20] Ver, sobre o tema, o ensaio intitulado "Americanistas e iberistas: a polêmica de Oliveira Vianna e Tavares Bastos", que participa desta coletânea. De Tavares Bastos, Werneck Vianna fez uso dos seguintes textos: Cartas do solitário. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1975. Coleção Brasiliana, n. 115; O Vale do Amazonas. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1975. Coleção Brasiliana, n. 106; A província. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1975. Coleção Brasiliana, n. 105; Os males do presente e as esperanças do futuro. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976. Coleção Brasiliana, n. 151.

[21] Simon Schwartzman. Bases do autoritarismo brasileiro. Rio de Janeiro: Campus, 1982.

[22] De Oliveira Vianna, Werneck Vianna selecionou os seguintes títulos: Populações meridionais do Brasil. São Paulo: Monteiro Lobato, 1922; Instituições políticas brasileiras. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1949; Problemas de política objetiva. Rio de Janeiro: Record, 1974; História social da economia capitalista no Brasil. Niterói: Editora da UFF, 1987; O ocaso do Império. Recife: Fundação Joaquim Nabuco/ Editora Massangana, 1990.

[23] Frédéric Vandenberghe. Une histoire critique de la sociologie allemand - aliénation et réification. Paris: La Découverte, 1997.

[24] Oliveira Vianna. Populações meridionais do Brasil, v. I, ed. cit., p. 265.

[25] Luiz Werneck Vianna. "O Estado Novo e a ‘ampliação’ autoritária da República". In: Maria Alice Rezende de Carvalho (Org.). República no Catete. Rio de Janeiro: Museu da República/FAPERJ, p. 111-53.

[26] De acordo com Werneck Vianna, as instituições corporativas de 1937 continham uma concepção mais complexa do que o uso instrumental que foi dado a elas após 1964. O tipo de modernização que vingara sob o Estado Novo buscou evitar o isolamento dos objetivos econômicos em relação à política e à vida social, tendo como objetivo produzir um andamento articulado entre essas esferas. Seu estilo fora europeu, durkheimiano, sistêmico, que, ao lado de seu caráter fortemente coercitivo, visava também à produção de consenso. A partir de 1964, o recurso à ordem burocrático-corporativa abandonará a idéia de produção de consenso e de solidarização social, abrindo-se radical distanciamento entre as dimensões da economia, da política e da vida associativa, as duas últimas imobilizadas pelo autoritarismo, enquanto a primeira era alçada à expansão, do que foi exemplo o chamado milagre econômico. Ver, a propósito, L. Werneck Vianna, Maria Alice R. de Carvalho, Manuel P.C. Melo e Marcelo B. Burgos, A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999, especialmente a introdução à Parte II.

[27] Pesquisas recentes têm enfatizado a atuação da intelligentsia jurídica no século XIX, ressaltando-lhe o papel difusor da idéia de direitos e atribuindo-lhe destacada importância no processo de institucionalização da presença do Estado vis-à-vis as práticas tradicionalmente autoritárias de controle social. Ver, por exemplo, Keila Grinberg, O fiador dos brasileiros - cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antonio Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002; Ivan de Andrade Velasco. "As seduções da ordem: violência, criminalidade e administração da justiça de Minas Gerais - século XIX". Tese de doutorado. Rio de Janeiro: Iuperj, 2002, mimeo.

[28] Ver o ensaio intitulado "A institucionalização das ciências sociais e a reforma social: do pensamento social à agenda americana de pesquisa".

[29] Dissolvido o grupo Americanismo e iberismo, Werneck Vianna reuniu alguns pesquisadores interessados no projeto sobre os cientistas sociais brasileiros. Sua iniciativa coincidiu com o esforço da Capes em institucionalizar grupos nacionais de pesquisa, levando a que o projeto em curso ensejasse o aparecimento do Laboratório de pesquisas sobre institucionalização das profissões intelectuais, ativo entre 1992 e 1999. Sua formação original, além de Werneck Vianna, compreendia Manuel Palácios Cunha Melo (UFJF), Marcelo Baumann Burgos (PUC-Rio) e a prefaciadora.

[30] As principais publicações coletivas derivadas dessa linha de investigação foram: L. Werneck Vianna, Maria Alice R. de Carvalho e Manuel P. C. Melo. "Cientistas sociais e vida pública". Dados - Revista de ciências sociais. Rio de Janeiro, v. 37, n. 3 (Número especial), 1994, p. 345-535; L. Werneck Vianna, Maria Alice R. de Carvalho e Manuel P. C. Melo. "As ciências sociais no Brasil: formação de um sistema nacional de ensino e pesquisa". Boletim informativo e bibliográfico de ciências sociais - BIB. Rio de Janeiro, n. 40, 1995, p. 27-64; L. Werneck Vianna, Maria Alice R. de Carvalho e Manuel P. C. Melo. "O perfil do estudante de ciências sociais". In: Elina Pessanha e Gláucia Villas Bôas (Org.). Ciências sociais - ensino e pesquisa na graduação. Rio de Janeiro: J.C. Editora, 1995, p. 21-54.

[31] Paralelamente à investigação sobre o perfil dos novos cientistas sociais brasileiros, o Laboratório de pesquisas sobre institucionalização das profissões intelectuais realizou estudos sobre a construção do sistema nacional de pós-graduação em ciências sociais e sobre as teses produzidas naquele âmbito, como se pode verificar em L. Werneck Vianna, Maria Alice R. de Carvalho, Manuel P. C. Melo e Marcelo B. Burgos, "Doutores e teses em ciências sociais". Dados - revista de ciências sociais. Rio de Janeiro, v. 41, n. 3, 1998, p. 453-516. Seria, pois, no contexto dessa discussão, que os nexos entre ciência e democracia se tornaram o centro dos interesses do grupo, determinando sua aproximação com o campo da sociologia do conhecimento. Disso é registro o artigo de Manuel Palácios Cunha Melo. "Ciência e vida pública". Presença. Rio de Janeiro, n. 17, nov. 1991/mar. 1992, p. 98-131.

[32] Ver, de Bruno Latour, principalmente Science in action. Cambridge: Harvard University Press, 1987. Neste livro, um dos exemplos fornecidos pelo autor é a meteorologia, que, como ciência do clima, mobilizaria uma extensa rede de "aliados", compreendendo desde os centros internacionais de estudos climáticos até o agricultor de uma aldeia da China, passando por agências governamentais de diferentes países, partidos políticos de base agrária, sindicatos de agricultores, bancos de financiamento das safras agrícolas, fabricantes de balões meteorológicos, sindicatos de aeroviários, produtores de satélites, profissionais dos meios de comunicação, etc., em uma listagem tendente ao infinito. Segundo Latour, a ciência do clima somente existe porque a rede universal que constituiu utiliza-se de recursos científicos e tecnológicos que se tornaram indisputados ao longo do tempo, atendendo a interesses e necessidades de uma multidão de usuários, que deve estar permanentemente convencida dos bons resultados de suas previsões.

[33] Manuel P. Cunha Melo. "Ciência e vida pública", cit., e também Maria Alice R. de Carvalho. "Cidade e democracia - as transformações do homem público". In: Anelise Pacheco e Paulo Vaz (Orgs.). Vozes no milênio. Para pensar a globalização. Rio de Janeiro: Museu da República/ Graphus, 2002, p. 89-99.

[34] Desde 1994, o Laboratório de pesquisas sobre institucionalização das profissões intelectuais dera início a uma linha de investigação sobre a magistratura, como parte das atividades previstas no convênio que celebrou com a Associação dos Magistrados Brasileiros - AMB. Tal iniciativa, que viria a se desdobrar em diferentes e sucessivas pesquisas, teve como resultado a publicação de dois livros coletivos, a saber: L. Werneck Vianna, Maria Alice R. de Carvalho, Manuel P. C. Melo e Marcelo B. Burgos. Corpo e alma da magistratura brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 1996, atualmente em sua quarta edição; e L. Werneck Vianna, Maria Alice R. de Carvalho, Manuel P. C. Melo e Marcelo B. Burgos. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999. Progressivamente, as pesquisas realizadas no âmbito daquele convênio, cujo objeto original concernia à caracterização sociológica do Judiciário e de seus principais operadores, foram tendo seu foco deslocado dos "juízes" para o "direito", impondo a retomada do tema da americanização do Brasil em novas bases.

[35] No ano de 2000, a Faperj, agência de fomento à produção científica do Estado do Rio de Janeiro, concebeu uma política de indução de pesquisas nas mais variadas áreas do conhecimento. Sob a vigência do Programa de estudos avançados daquela instituição, Werneck Vianna foi convidado a coordenar um núcleo de estudos sobre instituições políticas brasileiras, constituído por pesquisadores de diferentes instituições. O núcleo, denominado Instituto virtual - A democracia e os três poderes no Brasil, reuniu-se durante dois anos, findos os quais, além de apresentar estudos monográficos sobre a dinâmica republicana brasileira - o que ensejou a organização de coletânea de mesmo nome -, dispunha dos resultados de uma enquete nacional sobre o "estado cívico" da nação, ainda não publicados. Sob a cobertura institucional desse programa, e particularmente junto a alguns dos membros do Instituto virtual - Ruben Barboza Filho (UFJF), José Eisenberg (Iuperj), Marcelo Bauman Burgos, Manuel Palácios Cunha Melo e a prefaciadora -, Werneck Vianna deu prosseguimento à agenda de investigação sobre direito e democracia. Sua pesquisa mais recente foi a que empreendeu com Marcelo B. Burgos, "Revolução processual do direito e democracia progressiva". In: L. Werneck Vianna (Org.). A democracia e os três poderes no Brasil. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p. 337-491. Em fins de 2003, o Instituto virtual foi dissolvido, mas o grupo de pesquisadores permanece em atividade.

[36] O fenômeno aludido nessa passagem é o do constitucionalismo democrático, cujas características, a par de conhecerem progressiva universalização, se expressariam, grosso modo, no binômio dignidade humana / solidariedade, em que o primeiro termo se refere à generalização da garantia dos direitos fundamentais do homem, e o segundo, à relevância de valores comunitários, notadamente o ideal de justiça, para a atualização histórica do significado desses direitos em uma dada sociedade. Daí que, de acordo com a literatura sobre o tema, o fenômeno do constitucionalismo democrático se veja associado à ativa participação político-jurídica dos cidadãos, uma vez que dela dependeriam a interpretação e a efetivação de tais direitos. Ver, especialmente, Gisele Cittadino. "Judicialização da política, constitucionalismo democrático e separação de poderes". In: L. Werneck Vianna (Org.). A democracia e os três poderes no Brasil. Belo Horizonte / Rio de Janeiro: UFMG / Iuperj, 2002, p. 17-42.

[37] A. Garapon. Le gardien des promesses - Justice et démocratie. Paris: Ed. Odile Jacob, 1996.

[38] L. Werneck Vianna, Maria Alice R. de Carvalho, Manuel P. Cunha Melo e Marcelo B. Burgos. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil, ed. cit., principalmente a introdução. De J. Habermas, em especial o Direito e democracia - entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997; de Mauro Cappelletti, Juízes legisladores? Porto Alegre: Sérgo Antonio Fabris, 1993; de Ronald Dworkin, L’ empire du droit: Paris: PUF, 1994. Uma leitura crítica dessas duas vertentes da sociologia jurídica encontra-se em José Eisenberg. "Pragmatismo, direito reflexivo e judicialização da política". In: Luiz Werneck Vianna (Org.). A democracia e os três poderes no Brasil, ed. cit., p. 43-62.

[39] L. Werneck Vianna e Maria Alice R. de Carvalho. "República e civilização brasileira". In: Newton Bignoto (Org.). Pensar a república. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p. 131-54.

[40] L. Werneck Vianna e Marcelo B. Burgos. "Revolução processual do direito e democracia progressiva". In: L. Werneck Vianna. A democracia e os três poderes no Brasil, ed. cit., p. 368 s. Ver, a propósito da recuperação histórica do tema da soberania, Marcel Gauchet. La révolution des pouvoirs. Paris: Gallimard, 1995; e Pierre Rosanvallon. La démocratie inachevée. Paris: Galimard, 2000.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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