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O que Adam Smith foi fazer na China

Alexandre de Freitas Barbosa - Julho 2008
 

Giovanni Arrighi. Adam Smith em Pequim: origens e fundamentos do século XXI. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008.

Não poderia haver nada mais insólito. O filósofo escocês defensor da mão invisível acampando nos país do capitalismo selvagem. Ou insólitos não seriam os clips que a mídia oligopolizada e a opinião pública catequizada nos querem transmitir sob o disfarce de bons sentimentos?

O livro de Giovanni Arrighi lança uma artilharia pesada contra os mitos construídos ao redor da muralha chinesa e do pensamento do "pai da economia". A partir de um olhar antieurocêntrico e antinorte-americano, este intelectual multifacetado - que também rompe com as muralhas acadêmicas, transitando com desenvoltura pela historiografia, economia e sociologia - resgata o melhor do pensamento ocidental de modo a devassar os dilemas e as possibilidades abertas ao sistema mundial neste momento de ultrapassagem histórica.

Não se trata de um panfleto maoísta, ou de um libelo em defesa do partido único. Este italiano do Norte, professor radicado nos Estados Unidos, e que publicou em terras brasílicas O longo século XX (Ed. Contraponto) e A ilusão do desenvolvimento (Ed. Vozes), associa numa mesma obra três discursos paralelos e complementares, cada qual com seu respectivo método.

Depois de um mergulho sobre o melhor da sociologia histórica do capitalismo, passando por Smith, Marx, Schumpeter e Braudel, o autor empreende uma análise factual da ordem global, em que a crise terminal da hegemonia norte-americana e a ascensão chinesa compõem os dois lados de uma mesma moeda; para, finalmente, empreender uma reconstrução do padrão de desenvolvimento chinês antes da Revolução Industrial, durante a grande divergência que separa o Sul do Norte na aurora do capitalismo, até o momento do seu renascimento, agora sob novos moldes.

Comecemos pelo último argumento, mesclando-o ao primeiro. Não é verdade que a China foi superada pela Europa, no início do século XIX, por possuir piores instituições ou por contar com um Estado onipotente que tornava a sua economia ineficiente. Ou tampouco que o Estado Nacional, o sistema internacional de Estados e a economia de mercado interno sejam criações ocidentais.

Arrighi, fazendo uso de uma rica pesquisa em fontes bibliográficas, traça o nascimento de um sistema político multicentrado no Sudeste Asiático durante a Era Song (960-1276), o qual encontraria o seu centro na China durante a Dinastia Ming (1348-1643), quando a Europa sequer existia. Desequilibrado em favor da China, e desprovido de tendências expansionistas e militaristas, este sistema lograria uma invejável estabilidade política.

Economicamente, por meio da construção de canais, criara-se durante os séculos XV e XVI, um mercado interno chinês com grande desenvoltura e crescente especialização, fornecendo recursos fiscais ao Estado centralizado, que procurava regular o comércio externo. O modelo se esgota por suas próprias fraquezas, e depois pela expansão européia, que combina extroversão comercial e militarismo. Uma maior liberdade do comércio poderia ter incrementado a riqueza nacional chinesa, mas os ideais confucianos de harmonia social falaram mais alto.

Na leitura arrighiana, diferentemente do senso comum, Smith, em A riqueza das nações - um dos livros mais citados e menos lidos por economistas do mundo inteiro -, encara o padrão chinês como aquele que melhor refletia a sua concepção de desenvolvimento, acionado por uma progressão da divisão do trabalho, da agricultura para indústria, e desta para a expansão do comércio exterior. Enfim, um padrão de ampliação do mercado que reforça os laços sociais, ao invés de dissolvê-los.

O padrão "não-natural" de Smith, que Arrighi chama de capitalista, e localiza na Europa, é uma outra história. A sua fonte de inspiração é o próprio Smith, ainda que este não utilizasse o termo "capitalismo". Para não deixar margem a dúvidas, o filósofo escocês é, por várias vezes, chamado ao texto. Esta citação é exemplar: "o capital investido no comércio interno possui o mais positivo dos impactos, porque acarreta um maior incremento de renda, ao criar mais empregos para as pessoas do país".

Mas então por que os chineses perderam o bonde da história, ao menos temporariamente? Porque o padrão capitalista engendra consigo um maior poderio militar. Ao contrário da hipótese metafórica de Marx no Manifesto comunista, não foi a artilharia pesada dos produtos europeus competitivos que destruiu a muralha chinesa, mas a Guerra do Ópio.

Marx pode explicar o desenvolvimento capitalista, dos países europeus, e do sistema em escala planetária, mas não o padrão de desenvolvimento de uma economia de mercado, regulada nacionalmente, na qual se amplia a divisão social do trabalho, a partir da concorrência entre as unidades produtivas, e se constrange o processo de expropriação da força de trabalho.

O que tudo isto tem a ver com a China pós-Deng Xiaoping? Acompanhemos a seqüência do raciocínio de Arrighi. A China perdeu o bonde da história porque recorrera a uma "Revolução Industriosa", cujo traço distintivo estava na gestão de uma estrutura institucional e tecnológica voltada para a absorção de mão-de-obra. O foco estava, tanto nas comunidades rurais como nas cidades, na mobilização de recursos humanos.

A sacada japonesa, ao longo do século XX, e da China nas últimas décadas, foi a de fundir os dois padrões de desenvolvimento. Surgem então redes de indústrias e empresas com variados níveis de utilização de capital e trabalho, focadas sempre no incremento da competitividade. Trata-se não apenas de substituir capital por trabalho, já que a qualidade do trabalho é um diferencial em si, propiciando a ampliação da divisão social do trabalho na direção das atividades intensivas em conhecimento.

Desta feita, o mercado externo não seria desprezado, mas vitaminaria - a partir das zonas de processamento das exportações - o crescimento intensivo em trabalho que vem de dentro e propicia, graças aos ganhos de escala, excedentes vultosos.

A China aperfeiçoa e amplifica o modelo japonês, contando para tanto com o apoio vital da diáspora chinesa capitalista, que havia fertilizado em Hong Kong e Taiwan, durante o período pós-Revolução, uma rede de interações sociais e econômicas, transplantada para o continente com a abertura. As empresas multinacionais chegariam bem mais tarde. Ao Estado chinês caberia promover o encontro entre empresários, funcionários públicos e trabalhadores chineses, o capital da diáspora e as empresas "imperialistas".

Seria, portanto, ingenuidade imaginar que o diferencial da China se encontra na mão-de-obra barata. Não fosse a capacidade de estimular a expansão da oferta e da demanda, via investimento estatal, atração de capital externo e formação das empresas rurais não-agrícolas, de forma gradual no tempo e no espaço. Ou de realizar reformas no sistema agrícola e fiscal, conferindo maior poder às comunidades rurais e aos governos locais. E a o motor da acumulação não teria sido acionado.

Finalmente, pasmem!, a China pode ser descrita como um caso de acumulação sem expropriação. Não, Arrighi não desconsidera a superexploração dos imigrantes rurais e nem a apropriação corriqueira pelos novos magnatas do setor privado de propriedades e benefícios públicos.

Ele ressalta que existem contradições internas à sociedade e ao Partido Comunista, as quais podem levar a uma afirmação do capitalismo selvagem na China. Esta tendência parecia inclusive provável durante o governo anterior de Jiang Zemin. Já a nova geração de líderes vem defendendo de forma exaustiva os princípios confucianos de "sociedade harmoniosa", tendo inclusive lançado a proposta de "um novo interior socialista", que congrega um conjunto de ações voltadas para a expansão da educação, da saúde e de programas sociais no campo. Trata-se, não de um movimento espontâneo, mas de uma reação do Estado - a partir da combinação de medidas repressivas e de concessões - num contexto de crescentes lutas sociais nos campo e nas cidades.

Em síntese, o professor italiano desmonta cada um dos mitos perpetrados pela mídia ocidental sob a sociedade chinesa, sem cair na repetição monótona das fórmulas gastas utilizadas pela burocracia do PC chinês, que continua falando de "socialismo com características chinesas".

Como se não bastasse, o autor de Adam Smith em Pequim nos brinda com um escopo teórico robusto, que permite situar a problemática chinesa no âmbito do sistema capitalista contemporâneo, além de revelar com detalhe as idas e vindas do governo Bush nas relações com a nova potência.

O resultado da "trapalhada" no Iraque teria sido justamente o de consolidar a ascensão chinesa, envolvendo os Estados Unidos numa armadilha tecida na melhor tradição da política realista. Na sua visão, a sinofobia norte-americana pode ser explicada como a "constatação de que a China é a grande beneficiária pelo projeto de globalização bancado por este país".

Vez por outra, Arrighi toma partido do seu objeto e sugere a possibilidade de que a ascensão chinesa, junto com a de outros países do "Sul", possa trazer consigo uma mudança da ordem internacional, propiciando um padrão de desenvolvimento mais justo e sustentável ecologicamente. Haja pretensão! A sua utopia não impede, contudo, que ele forneça os elementos para compreensão da atual desordem internacional e das várias forças econômicas e políticas em ação, além de apontar para as possibilidades entreabertas, goste-se delas ou não.

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Alexandre de Freitas Barbosa é pesquisador do Cebrap e doutor em Economia Aplicada pela Unicamp.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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