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Publicização da universidade

José Antonio Segatto - Agosto 2014
 

Ao contrário do que tem sido afirmado por entidades sindicais, reunidas no Fórum das Seis, a crise das universidades estaduais paulistas é real, e não fictícia. E mais: é grave. Além de orçamentário-financeira, é uma crise diretiva, fruto de gestões problemáticas ou de vicissitudes administrativas.

Também não é nova e se tem manifestado de forma cíclica - para não recuar muito no tempo basta lembrar que tomou vulto em 1988-1989, quando foi estabelecida a quota-parte de 8,5% do ICMS; voltou em 1995-1996, quando a quota-parte foi aumentada para 9,57%; ressurgiu em 2004 e reapareceu com mais gravidade agora, em 2014.

Entendemos, portanto, que os problemas que a universidade enfrenta hoje não são novos. Em grande medida, são problemas acumulados ao longo dos anos e, muitos deles, não enfrentados adequadamente em seu devido tempo, envolvem não só questões econômico-financeiras e o sistema administrativo, mas resultam, sobretudo, da estrutura de poder e da forma de gestão da universidade, envoltas pelo patrimonialismo, pelo clientelismo e pelo corporativismo.

Entre eles, alguns são crônicos ou arraigados, como, por exemplo, 1) a privatização velada da universidade por seu corpo burocrático (grupos, corporações e confrarias de interesses), por meio da apropriação dos bens públicos, os quais se autoatribuem benefícios e privilégios, legislando em causa própria e tornando indiferenciado o público e o privado; 2) a sindicalização - os órgãos decisórios (sobretudo centrais) funcionam de acordo com a lógica corporativa (no sentido oposto de suas atribuições acadêmicas e/ou administrativas) de um sindicalismo de resultados voraz e agressivo que barganha proventos e vantagens com os que detêm o poder de mando nas reitorias; 3) a inversão de sentido das atividades-fim da universidade - as atividades técnico-burocráticas tornaram-se a prioridade básica, enquanto as de ensino, pesquisa e extensão foram convertidas em acessórias; a universidade voltou-se para si própria, para sua autorreprodução, deu as costas aos fins para que foi instituída - não por acaso a quantidade de funcionários técnico-administrativos supera em muito o número de docentes-pesquisadores, o que evidencia a extraordinária distorção de objetivos.

Outros problemas também podem ser arrolados, como a falta de transparência e responsabilização na execução orçamentária e financeira e no controle de aplicações e gastos.

A situação, que já era crônica, foi agravada no último decênio por iniciativas várias: política de expansão sem planejamento e sob pressão do governo estadual, com a criação de novos cursos, câmpus e/ou unidades - a Unesp, por exemplo, quase que duplicou o número de alunos; programas de reestruturação de carreiras e salários de servidores técnico-administrativos e docentes, induzidos por interesses corporativos e pela pressão de um sindicalismo de resultados; amplificação de ações de auxílio e/ou políticas de benefícios, como vales-alimentação/refeição e transporte, creches, subsídio a restaurantes e planos de saúde, permanência estudantil, bolsas, diárias, etc.; outras como, por exemplo, políticas de investimento e incentivo à competitividade, à produtividade, ao empreendedorismo, à internacionalização, etc., suscitadas por grupos de interesse sob alegação da necessidade de alçar a universidade a níveis de excelência, inseri-la no mercado das ciências e promover sua ascensão em rankings internacionais (Top 200, Padrão Xangai).

Essas iniciativas implicaram um aumento significativo da folha de pagamentos e das demais despesas (obras, contratações, salários, custeio, diárias, transporte, mídias, bolsas, equipamentos, etc.), porém sem o aumento do porcentual orçamentário - o que garantiu certo equilíbrio das contas foi um considerável aumento da arrecadação de ICMS nos anos 2007-2010.

Não obstante a situação de crise apresentar-se com maior gravidade na USP, a condição da Unesp e da Unicamp não é menos preocupante. De maneira que, nas circunstâncias atuais, são necessárias medidas imediatas com poder de restaurar a normalidade das atividades, impedir o aprofundamento dos problemas e estancar a crise em curso e seu possível agravamento próximo - até mesmo uma eventual inadimplência que implique a paralisação das atividades e a impossibilidade de pagamento da folha de salários.

Nesse sentido, entendemos que as iniciativas grevistas que interrompem todas as atividades para exigir reposição salarial e outros benefícios são, da forma como estão conduzidas, inadequadas - até porque as entidades sindicais têm, juntamente com os dirigentes ou o establishment universitários, muitíssima responsabilidade pela crise, que pode levar ao declínio sem retorno da universidade.

Pelo exposto, urgem ações e medidas capazes de reverter o atual quadro de crise. Mas para romper com a situação criada não bastam a indignação, a resistência, a denúncia ou o apego a interesses corporativos. Faz-se necessário criar condições para sua superação, convertendo as inquietações em iniciativas renovadoras e transformadoras, desencadeando um processo de democratização e publicização dos métodos e práticas diretivas e de gestão, além do estabelecimento de normas e procedimentos de responsabilização dos dirigentes e/ou agentes decisórios - o que implica, por um lado, elaborar e exercitar uma política diretiva transparente, coletiva, e, por outro, dar combate às concepções e práticas clientelistas e patrimonialistas, corporativas e assistencialistas, ou àquelas excessivamente burocráticas e tecnocráticas. Enfim, fazem-se necessárias e prementes a democratização e a publicização da universidade.

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José Antonio Segatto é professor titular do departamento de sociologia da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp – Câmpus de Araraquara (FCL/Unesp-CAR).

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Fonte: O Estado de S. Paulo, 10 ago. 2014.

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