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Greves, direitos e responsabilidades

José Antonio Segatto - Setembro 2014
 

­As greves que ora se sucedem nas universidades públicas paulistas recolocam um problema crucial, qual seja, os sentidos, as razões e as implicações dos movimentos paredistas no setor público, em particular para as instituições estatais e para a sociedade que o mantém.

Não é demais lembrar que a Constituição de 1988 - entre as muitas inovações no que se refere à expansão dos direitos de cidadania - estabeleceu no artigo 37, inciso VII, que o direito de greve dos servidores públicos "será exercido nos termos e limites definidos em lei complementar". Posteriormente, com a Emenda Constitucional n.º 19/1998, a exigência de regulamentação da greve no setor público passou de lei complementar para lei ordinária - essa alteração, se por um lado facilitou formalmente a regulamentação, por outro passou a exigir que isso fosse feito por meio de lei específica.

Entretanto, passados anos, o Legislativo não aprovou nenhuma lei estabelecendo normas específicas para o exercício do direito de greve na administração pública. Em face da incapacidade ou omissão do Congresso Nacional em regulamentar a matéria, o Supremo Tribunal Federal, em 2007, ao julgar mandados de injunção ajuizados por alguns sindicatos de servidores, decidiu aplicar à esfera do setor público, no que couber e com as devidas adaptações, a lei de greve do setor privado (Lei n.º 7.783/89). Essa determinação, obviamente, era temporária e visava a solucionar o problema enquanto permanecesse o hiato legislativo ou até que o Congresso aprovasse legislação específica.

Não obstante o caráter provisório de tal resolução da Corte Suprema, o fato é que, passados sete anos, o direito de greve dos servidores públicos continua sem regulamentação. E isso não se deve simplesmente à inércia parlamentar - tramitam no Congresso Nacional mais de uma dezena de projetos de lei (PLs) sobre essa matéria, entre eles o PL 4.497/01, proposto pela deputada Rita Camata, e o PL 710/11, pelo senador Aloysio Nunes Ferreira. A lacuna deve-se, em boa medida, ao fato de a regulamentação não interessar a muitas corporações e a alguns partidos; a esses importa a manutenção da imprecisão legal que permite toda sorte de conveniências e prerrogativas.

O problema da extensão da Lei n.º 7.783/89 ao setor público é que ela não responde às suas especificidades. A greve dos trabalhadores na empresa privada visa a compelir o empresariado a negociar a remuneração e/ou os benefícios de seus empregados; ao paralisar as atividades produtivas ou de prestação de serviços, a greve nesse setor faz cessar os lucros apropriados do sobretrabalho. Já no âmbito estatal, quem perde é a sociedade, que deixa de receber os serviços a que tem direito e para os quais contribuiu por meio de impostos. Além do mais, o estatuto e o contrato de trabalho de uns e de outros, servidores públicos e trabalhadores da iniciativa privada, são distintos e envolvem determinados direitos e deveres muito diferentes.

A inadequação da aplicação da lei geral de greve ao setor público é manifesta nas interpretações e nos usos que dela fazem juristas, sindicalistas e outros agentes interessados ou envolvidos. Muitos são os problemas e as implicações decorrentes de tal adaptação determinada pelo Supremo Tribunal Federal, como, por exemplo, os da não interrupção ou da paralisação do serviço público, da definição dos serviços essenciais, da eficácia e da aplicabilidade da lei, da isonomia e da legalidade, da mediação e do julgamento, da coerção e do arbítrio. O único consenso é o de que a greve constitui um direito legítimo e fundamental.

As peculiaridades do exercício do direito de greve no setor público tornam-se ainda mais evidentes quando se analisa o caso das universidades públicas, em especial no caso das estaduais paulistas, USP, Unicamp e Unesp, que são dotadas de autonomia didático-científica, administrativa e financeira - mantidas com 9,57% do ICMS arrecadado no Estado - e autogeridas: todos os cargos dirigentes são eletivos pela comunidade universitária.

Assim sendo, elas têm o poder de definir o orçamento, os salários, os benefícios, as carreiras, etc. Ou seja, têm relativa autonomia para estabelecer e prescrever normas e diretrizes.

Nessas condições, são de difícil compreensão por qualquer cidadão comum os propósitos ou os objetivos dos constantes, persistentes e prolongados movimentos paredistas nessas instituições de ensino superior. O direito de greve, historicamente um instrumento fundamental para a defesa dos interesses dos trabalhadores e recurso extremo em situações de impasse, foi banalizado, tornando-se mesmo trivial em algumas unidades universitárias.

Utilizando-se de meios e modos inapropriados, afrontosos e intimidatórios - piquetes, "trancaços", "cadeiraços", etc. -, as greves acabaram se convertendo em expedientes perversos de aviltamento da prestação de serviços públicos essenciais: ensino, pesquisa e extensão. Conduzidas por um sindicalismo de resultados agressivos e movidas por um corporativismo insaciável, têm como meta primordial e exclusiva a maximização de interesses e a potencialização de benefícios e/ou vantagens.

É desnecessário dizer que tais concepções e práticas têm acarretado a depreciação e/ou a degradação dessas universidades públicas, que estão, incontestavelmente, entre as principais instituições de ensino e pesquisa do País. Fato é que têm encontrado guarida na ausência de normas e procedimentos democráticos e no limbo jurídico determinado pela não regulamentação do direito de greve no setor público.

À vista disso, a greve no setor público, como direito constitucional legítimo e inalienável, para que seja efetivo, deve ser regulamentado com urgência a fim de que possa ser exercido de forma responsável, soberana e democrática, sem afrontas e arbitrariedades.

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José Antonio Segatto é professor titular do Departamento de Sociologia da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp Araraquara.

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Fonte: O Estado de S. Paulo, 14 set. 2014.

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