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Silêncio eloqüente

Marco Aurélio Nogueira - Fevereiro 2007
 

Pode ser que tenha havido exagero na interpretação de que o governo de São Paulo pretendia limitar a autonomia universitária quando decidiu congelar parte dos repasses orçamentários à USP, à Unesp e à Unicamp, modificar o status do Conselho de Reitores e impor novas exigências de controle às instituições. Pode ser que as universidades se tenham deixado levar pelo espírito corporativo e tentado aproveitar a deixa para reiterar sua real necessidade de mais verbas com que custear seus gastos crescentes. Num momento de refluxo e paralisia, agravado pelo período de férias escolares, um embate com o governo é sempre interessante.

Apesar disso, dificilmente se encontrará um jeito de justificar o desastrado ato com que José Serra inaugurou seu mandato governamental, em janeiro. Tanto que passados alguns dias o governo suavizou o discurso, retrocedeu e buscou estabelecer relações mais cordiais com os reitores. Reduziu o mal-estar e garantiu a continuidade do tratamento diferenciado para aquilo que é diferente, no caso, o sistema paulista de ensino superior público. Apagou-se o que parecia ser o início de um incêndio, mas algum estrago foi inevitável.

As pessoas bem informadas e atentas ao que acontece no mundo sabem que a universidade - e sobretudo a universidade pública de ensino e pesquisa - é uma decisiva reserva de valor das sociedades que avançam pelo século 21. Se a estrutura social, as formas da política e da gestão, a convivência entre as pessoas e a organização das atividades passam a ficar sempre mais condicionadas pelo conhecimento técnico e científico, então não há como relegar o ensino superior a plano secundário. Como os operadores do governo Serra são bem informados, não ignoram nada disso.

As universidades públicas paulistas consomem recursos públicos importantes (cerca de R$ 4 bilhões por ano), que atiçam o apetite de gestores e policy makers. É bastante compreensível que devam ser submetidas a controles gerais e a exigências de "responsabilidade fiscal", das quais, aliás, não podem fugir. Estão politicamente obrigadas a aumentar sua produtividade e sua eficiência, além de estarem eticamente comprometidas a apoiar tudo o que estiver dedicado a gerar justiça social, bom governo e cultura democrática.

O que causa estranheza, pelo que tem de paradoxal, é que os governos paulistas, e não de hoje, façam carga sobre professores e reitores para que eles se dediquem com maior afinco à expansão de vagas e à melhoria dos padrões de desempenho no ensino e na pesquisa e, ao mesmo tempo, os ameacem com restrições e com modalidades de relacionamento que não ajudam ao desenvolvimento da universidade, atrapalham seu funcionamento e são incompatíveis com a natureza da instituição. Os decretos de janeiro quiseram, na prática, bloquear recursos de custeio e de investimentos, fundamentais para o trabalho acadêmico. Podem não ter sido propriamente arbitrários - porque tudo o que diz respeito à educação superior e à gestão do orçamento público está no âmbito da atuação governamental -, mas revelaram grande insensibilidade e ausência de uma política clara para o setor.

Qual o pensamento do governo estadual sobre o ensino superior e as universidades públicas paulistas em particular? O que pretende fazer nessa área estratégica? Seu silêncio programático é certamente mais grave do que o mau passo dado em janeiro. É um silêncio eloqüente, que ofusca o que foi anunciado como sendo apenas "transparência" e "rigor gerencial". Foi como se o governo tivesse sugerido que nada tem a dizer a respeito das universidades, mas não admitirá que elas fujam de seu controle ou deixem de segui-lo na cruzada contra os gastos excessivos.

As universidades públicas são hoje atacadas por todos os lados. Para além das pesadas pressões do mercado, os governos também as acossam e a sociedade espera muita coisa delas. Elas precisam reagir com inteligência a esse cerco. Como são personagens do Estado, devem certamente auxiliar os governos a gerir bem os recursos públicos. Já contribuem ao aperfeiçoarem a gestão do que lhes é repassado. Também precisam ser mais criativas na expansão de vagas, na oferta de novos cursos, no desenvolvimento científico e na formação dos estudantes e na sua própria "descorporativização". Devem abrir-se mais corajosamente ao controle da sociedade e do Estado, dialogar de modo ativo com o que está "fora" delas. Só assim poderão desmentir os que as acusam de serem perdulárias e de atenderem a uma pequena porcentagem de "ricos".

Não dá mais para continuar falando de universidade em termos contábeis ou a partir de preconceitos e visões impressionistas. Não faz sentido abordá-la como se fosse uma organização qualquer, parecida com um supermercado ou uma fábrica. Além de defender sua natureza pública, demarcando com clareza seu lugar no Estado e, portanto, suas relações com o mercado, também será preciso examinar em profundidade a universidade realmente existente, que é, em boa medida, a resultante tanto das políticas governamentais quanto do modo como seus integrantes assimilam os processos que estão a desafiar a instituição universitária.

A universidade pública encontra-se em "estado de sofrimento", mas de modo algum está em agonia. Continua a cumprir um papel de destaque e se mantém como o principal centro de reflexão da sociedade brasileira. Ela não será melhorada a partir de decisões governamentais, diretrizes normativas ou medidas gerenciais. Não se trata de um problema de ação, de "vontade política", mas de projeto e interação. Se quisermos mesmo melhorar a universidade, precisaremos pensar no longo prazo e em termos de modificações progressivas. Medidas de impacto, que choquem e agridam, mas que não se integrem num plano transparente e compartilhado, são o caminho mais curto para o fracasso.

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Marco Aurélio Nogueira, professor de Teoria Política da Unesp/Araraquara, é autor, entre outros, de Em defesa da política (2001) e Um Estado para a sociedade civil (2004).



Fonte: O Estado de S. Paulo, 24 fev. 2007.

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