A democracia é um sistema polÃtico de tomada de decisões que tem como caracterÃstica fundamental o gerenciamento dos conflitos e o processamento das crises em seu nascedouro, de modo a impedir que se tornem danosas para a sociedade e o próprio sistema polÃtico.
A história, no entanto, está cheia de exemplos de conflitos e crises que não foram adequadamente processados pelo sistema democrático. No Brasil, o caso mais extremado foi o que culminou no golpe de 1964, ápice de uma crise que combinou a estreiteza da democracia oligárquica da época com o despertar de uma sociedade civil em vias de radicalização.
Hoje, por ironia da história, nossa democracia sofre pelo mal inverso: a alienação da sociedade. A crise atual, alimentada pelo quase colapso do aparelho repressivo de Estado, pôs a nu os malefÃcios de uma democracia com baixa cidadania: a presidenta do Judiciário rechaça medidas extraordinárias, enquanto o presidente da República clama por mais "polÃticas sociais" - como se medidas de segurança não fizessem parte do conjunto social.
As atitudes protelatórias dos principais dirigentes do Estado, na verdade, patenteiam a enorme distância ainda existente entre o Estado e a sociedade brasileira, apesar das eleições periódicas. A falta de urgência em solucionar um problema que já era percebido como dramático nos anos 1980 - quando a herança da urbanização selvagem se encontrou com o crime globalizado - é a prova cabal de que nosso ciclo democrático, transcorridos 23 anos de sua restauração plena, ainda não amadureceu. Em todos os setores civis, e até mesmo no militar, abundam exemplos de acomodação com o problema.
A questão que se coloca diante deste descompasso é: por que a classe polÃtica continua respondendo paliativamente ao caos social? A resposta está, por um lado, na despolitização dos setores mais pobres e demograficamente importantes do paÃs - os mesmos que constituem o grosso da base de apoio da classe polÃtica em troca de "benefÃcios privados". Por outro, a decadência das camadas médias tradicionalmente organizadas, atingidas duramente pela quase estagnação econômica do paÃs, que já dura 27 anos. A par destes fenômenos sociológicos, aprofunda-se o recuo polÃtico do centro-esquerda, desnorteado em meio à abulia tucana e ao poder de cooptação do lulismo.
É neste terreno que deita raiz o divórcio entre a opinião pública e a opinião eleitoral - dois modos distintos de atuação polÃtica do indivÃduo cidadão-eleitor. O fenômeno conhece a seguinte dinâmica: diante de um referendo ou de uma pesquisa de opinião, o cidadão tende a exercer seu direito de escolha/opinião de maneira bastante racional, ajudado pela simplicidade das questões propostas, entre outros aspectos. Já enquanto eleitor, tendo à frente temas complexos e impalpáveis, em meio ao assédio discursivo dos "polÃticos", o mesmo indivÃduo parece perder-se no emaranhado de interpelações - problema inversamente proporcional à sua escolaridade.
No largo e pantanoso terreno da polÃtica, o eleitor, sentindo-se desamparado e enfraquecido pela ausência de partidos e ideologias que o ilumine - é de se notar que, no Brasil, a religião partidarizou-se através de igrejas "fisiológicas" -, inclina-se para o jogo pragmático do toma-lá-dá-cá tradicional, sem conseguir impor uma pauta especÃfica aos seus representantes, o que acaba por propiciar-lhes ampla margem de liberdade. Uma vez satisfeitas as pequenas demandas do eleitor no varejo eleitoral, os eleitos se consideram livres para fazer a sua polÃtica, o que, via de regra, significa apoderar-se de recursos, públicos e privados, para atender à s expectativas fisiológicas da massa na próxima eleição, além, é claro, de aumentar seu patrimônio particular. Desta forma, no tempo, perpetua-se a roda-viva da democracia corrompida, sem efetiva soberania popular.
Sem o suspeitar, a cada eleição o eleitor médio despolitizado cria as bases objetivas que propiciam sua própria frustração como cidadão, plasmada na ineficácia das polÃticas de segurança, saúde, educação, etc. O paradoxo reside no fato de que, ao mesmo tempo, ele reage positivamente aos pequenos incrementos marginais em sua qualidade de vida assegurados por tal sistema.
Tal cÃrculo vicioso, evidentemente, pode ser quebrado pela combinação de reformas polÃticas que civilizem as elites (Montesquieu), com reformas morais e intelectuais que libertem as massas de seu "atomismo" alienante (Gramsci). Mas a história tem mostrado que jovens democracias não são capazes de resolver a questão desta maneira, pura e simplesmente, sem a ajuda da "mão invisÃvel" da crise aguda.
É deste ponto de vista que ela, a crise aguda, pode desempenhar um papel positivo - em meio à desgraça geral remediada pela ação paternalista do Estado -, mudando a cultura dominante que irmana massas e elites no Brasil. Neste caso, resta torcer para que ela seja breve e prenhe de lições capazes de regenerar nosso frágil sistema democrático, em vez de destruÃ-lo.
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Hamilton Garcia de Lima é sociólogo, cientista polÃtico e historiador. Este texto também foi publicado em La Insignia.