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Gramsci, 1926: uma carta inédita sobre a prisão

Tania Schucht - Novembro 2008
Tradução: A. Veiga Fialho
 

Dos arquivos familiares dos Schuchts, e por ocasião do lançamento na Itália do livro A Rússia do meu avô (de Antonio Gramsci Jr.), ressurge uma carta de Tania (Tatiana), a cunhada de Gramsci que morava em Roma. Nesta carta, cuja tradução para o português tenta respeitar as particularidades estilísticas da autora, Tatiana narra pela primeira vez aos seus familiares em Moscou como foi preso o fundador de L’Unità e do antigo PCI. Segue-se à carta, que não tem data mas certamente foi escrita "no calor da hora", uma pertinente contextualização feita por Giuseppe Vacca, presidente da Fundação Instituto Gramsci, em Roma.

Meus queridos,

Recebi a carta de mamãe e de Julia [Giulia, mulher de Gramsci e irmã de Tania], e o cartão de Assia. Ainda bem que por aí as coisas estão melhorando, esperemos que tudo termine bem e os meninos voltem para casa. Acredito que Julia já tenha recebido a carta de Nedolia [?], na qual comunicava algumas coisas sobre os acontecimentos políticos daqui. Por enquanto não se sabe nada sobre a acusação contra os deputados detidos. Antonio não conseguiu partir [para a Rússia] por um acaso infeliz. Havia viajado à noite para Milão, no dia do atentado contra Mussolini em Bolonha. Não tínhamos tido notícia disso, porque o fato aconteceu num domingo, e além do mais os redatores dos jornais de oposição já há algum tempo tinham sido excluídos da sala de imprensa. Durante o dia Antonio almoçou comigo, como de costume, já que nos últimos dias o clima não estava inteiramente tranqüilo e eu não queria que ele andasse pela cidade; depois ainda veio aqui em casa, como me disse em seguida, por meia hora andou com um companheiro perto da estação e não ouviu falar do atentado, senão por certo não teria viajado. E assim, na chegada em Milão, na estação, comunicaram-lhe que devia voltar a Roma ou apresentar-se à polícia. Fizeram-no voltar a Roma; vocês certamente ouviram falar das maldades que aconteceram aqui durante vários dias; Antonio não foi a lugar algum durante oito dias, almoçava e jantava aqui em casa, inclusive no dia em que o prenderam esteve comigo até as dez e quinze; ao sair, disse a hora. Já o estavam esperando no apartamento, de modo que foi ver diretamente os amigos. Ficamos sabendo no dia seguinte de manhã. Naturalmente me preocupei em lhe mandar comida, e quem levou foi a Marietta. Café, açúcar, frutas, ovos, uma galinha. Desde ontem resolvemos comprar o almoço dele no restaurante e mandar no horário de entrega. Assim será melhor, como precaução. Esperamos que o advogado receba finalmente a autorização para ver os detidos e então lhe transmitiremos as notícias de casa sobre o restabelecimento de Delio, etc. Até pode ser que os soltem antes que transcorram os 15 dias exigidos para apresentar a acusação, e talvez quando o advogado tiver o direito de vê-los. Talvez a prisão deles caiba na definição de "detenção", prenderam-nos na véspera da abertura do Parlamento. Acredito que Antonio se sinta forte e vigoroso, porque compreende perfeitamente bem a situação e tinha previsto a possibilidade de prisão e busca. Durante toda a semana fez uma "limpeza" e conseguiu despachar as últimas coisas antes da prisão. Organizaram a ajuda material para todos, que assim não devem sentir falta de nada. Assim que estiverem livres, informamos a vocês. Por aqui, por causa do medo generalizado, quase não há trabalho, e me disseram que talvez não tenha nenhum por algumas semanas. Não me preocupo particularmente porque espero arrumar alguma coisa, não sei se aqui mesmo ou de algum outro modo. Dizem que para o posto de plenipotenciário deve vir Kamenev e que sua mulher é uma pessoa muito interessante, que talvez vá se ocupar da questão do instituto internacional. Naturalmente ainda tenho dinheiro, só que me permito não lhes mandar nada neste mês, pois, com a reserva da mamãe, me sinto mais tranqüila e não me agito inutilmente, mas talvez tudo ainda vá se ajeitar bem. Se Antonio estivesse livre, poderia trabalhar para ele, mas não tive nem tempo de lhe comunicar minha conversa com os dirigentes, que ocorreu justamente na manhã do dia em que soubemos da sua prisão. Já tenho o passaporte e por aqui está tudo tranqüilo, não houve aborrecimentos em casa. Quanto ao dinheiro, peço que tenham paciência, porque naturalmente tive de gastar muito até mesmo com Antonio e fazer um depósito na sua conta na prisão, para que tenha a possibilidade de comprar alguma coisa; repito, o partido se interessa por eles e vai cuidar deles mesmo depois, no sentido material e de outras maneiras, de modo que talvez vocês se revejam logo. E assim, se isso não causar muitos problemas, por enquanto vou manter aqui o dinheiro, em vez de lhes mandar. Como sabem, gasto muito pouco e, se ficar sem trabalho por algum tempo, isso não me atrapalha muito, pois tenho uma pequena reserva. Mas naturalmente espero me ajeitar logo e talvez tenha algum trabalho rapidamente. Então, vou lhes mandar imediatamente o dinheiro. Por aqui, depois da sua partida, ainda trabalhava a Glebova. Ela já se demitiu, assim como Janson Stefan, e foi para Moscou. Abram vai partir logo, e também a datilógrafa, daqui a aproximadamente três meses. Sobre as traduções, só Chusik pode me fazer concorrência. Não sei o que farão os dirigentes: dar o trabalho a ele ou a mim? Bem, são tolices, de um modo ou de outro me arrumo. Uma pena que vocês, meus queridos, em vez de encontrar agora Antonio em Moscou, tenham de saber notícias não muito alegres, mas isso também vai passar; preocupam-se com tudo, por exemplo, não vão permitir que seus livros se extraviem, vão trazê-los para nós de modo que fiquem em segurança. Coragem, Julka, lembre que mandamos a Antonio a comida de que ele gosta, e eu também resolvi mandar um remédio, o glicerofosfato, certamente não vai lhe fazer mal. Mas esperemos também que o soltem a qualquer momento, como já soltaram muitos companheiros que foram presos no mesmo período.

Deliulka, você já se tornou moscovita? E Juliancik, quem é? Escreva-me se você se lembra da ricota, agora se pode achá-la e Tatanka comprou algumas vezes. E me conte também sobre os cachos de cabelo; conte com quem ficaram seus cachinhos louros. E o que anda fazendo seu cavalinho com as maçãs? E me diga também o que você está olhando agora e o que não está. Lembra-se dos pombos e dos barquinhos negros? Falou deles à mamãe Lula? Lembra-se dos mosquitos? Como os pegávamos, e batíamos o sapato na parede, e acendíamos os pauzinhos que os faziam ficar grogues? Um beijo grande. T.

Beijo grande para mamãe e papai.

Antonio e a cunhada, ou a odisséia de um prisioneiro, por Giuseppe Vacca

A carta de Tania Schucht, que aqui se publica, foi encontrada recentemente por Antonio Gramsci Jr. no arquivo da família. Está escrita em russo, e sua tradução é obra de Rossana Platone. Endereçada aos familiares, na verdade está dirigida a Giulia, salvo as últimas expressões dedicadas a Delio, o filho mais velho de Gramsci, a quem Tania lembra as emoções da recente visita a Veneza, realizada com ela e a outra tia, Eugenia Schucht, pouco tempo antes do retorno deles a Moscou em setembro de 1926. Tania escreve de Roma nos dias seguintes à prisão de Gramsci, ocorrida na noite de 8 para 9 de novembro. A sua carta constitui um documento importante, porque contém informações inéditas sobre a vida de Gramsci nos dias imediatamente anteriores à prisão e sobre a reação do partido à sua captura; porque ilumina aspectos por nós ignorados da vida de Tania e da sua relação com Gramsci entre 1925 e 1926.

Até agora, o único documento conhecido sobre os dias anteriores à captura e à detenção de Gramsci era a longa carta de Camilla Ravera a Togliatti de 16 de novembro de 1926, publicada por Franco Ferri em Rinascita, em 5 de dezembro de 1964. A carta que aqui se publica é a primeira de Tania aos familiares na qual se fala do mesmo assunto. A carta não tem data, mas pelo seu conteúdo se deduz que foi escrita poucos dias após a detenção de Gramsci. Antes de mais nada, ela nos permite precisar a razão pela qual, malgrado o terror das esquadras desencadeado logo depois do atentado de Anteo Zamboni contra Mussolini, Gramsci partiu mesmo assim de Roma, rumo à Milão, para participar da reunião clandestina do comitê central do partido, convocada para o dia primeiro de novembro nas imediações de Gênova: o dia do atentado, 31 de outubro, era um domingo, e, escreve Tania, "os redatores dos jornais de oposição já há algum tempo tinham sido excluídos da sala de imprensa" de Montecitorio. Portanto, Gramsci viajou para Milão "na noite" do dia 31 porque não estava a par do atentado, ocorrido poucas horas antes, "senão por certo não teria viajado". Logo em seguida, Tania escreve que "na chegada em Milão, na estação, comunicaram-lhe [evidentemente, os policiais] que devia voltar a Roma ou apresentar-se à polícia". Os companheiros que o esperavam "fizeram-no voltar a Roma", e aqui, dada a situação, "Antonio não foi a lugar algum durante oito dias, almoçava e jantava aqui em casa".

As informações de Tania provêm evidentemente de Gramsci e, portanto, constituem a fonte mais direta sobre os eventos que o impediram de participar da reunião de Valpolcevera (nessa reunião, decidiu-se a posição do PCI sobre a luta em curso entre a maioria dirigida por Stalin e as oposições lideradas por Trotski) e conduziram à sua prisão. São informações de notável interesse, seja porque esclarecem um episódio sobre o qual as versões que nos chegaram não são inteiramente coincidentes, seja porque refutam pela raiz reconstruções fantasiosas, como aquela contida na mais recente biografia de Gramsci (Antonio Gramsci. Storia e mito, de Luigi Nieddu, Ed. Marsilio, 2004), na qual se insinua que sua volta a Roma teria sido orquestrada pelos companheiros da comissão executiva do Partido para impedi-lo de participar da reunião do comitê central, uma vez que sua presença não era do agrado de Stalin, e se sustenta que, nos dias sucessivos, os próprios companheiros (Grieco, Scoccimarro e Ravera) teriam deliberadamente favorecido sua prisão.

Também muito importantes são as informações relativas à ação do partido logo antes e logo depois da prisão de Gramsci. No que se refere aos dias anteriores à prisão, Tania escreve que Antonio a previra e também previra uma busca, de modo que "durante toda a semana fez uma ‘limpeza’ e conseguiu despachar as últimas coisas [...]". Entre estas, estava também o manuscrito do artigo sobre a "questão meridional", ainda não publicado, que Grieco pediu a Tania por meio de Camilla Ravera poucos dias depois da prisão de Gramsci.

Pela seqüência da carta, deve-se considerar que os papéis alvo da "limpeza" de Gramsci foram levados à embaixada soviética. Mas ainda mais importantes são as referências à possibilidade de que Gramsci fosse logo libertado, graças à intervenção do governo soviético. Como se sabe, nos dias anteriores à prisão Gramsci havia programado ir a Moscou para participar dos trabalhos da VII Plenária da Internacional Comunista, convocada para 22 de novembro, e havia informado à mulher sobre isso. E, como se sabe, o partido italiano, em combinação com o governo soviético, decidira que, depois da participação na VII Plenária, Gramsci iria ficar na Rússia, porque na Itália a situação se tornara perigosa demais. Portanto, a viagem a Moscou equivalia à sua expatriação. Tania deixa transparecer que, apesar de Gramsci ter sido preso, tal possibilidade não desaparecera: antes de mais nada, porque tivera notícias, ainda que vagas, de que ele estivesse só "detido"; em segundo lugar, porque considerava que pudesse ser solto só com a simples intervenção dos advogados do partido, mas sobretudo porque os companheiros (tanto o PCI quanto a embaixada soviética) "preocupam-se com tudo". Em particular, falando da ação desenvolvida pelo partido em favor dos detidos, Tania escreve: "o partido se interessa por eles e vai cuidar deles mesmo depois, no sentido material e de outras maneiras, de modo que talvez vocês se revejam logo". Parece-nos ter fundamento daí deduzir que Tania aluda a uma iniciativa do partido, no momento talvez só insinuada, voltada para obter a libertação de Gramsci através de uma intervenção do governo soviético sobre Mussolini. Sua carta, pois, acrescenta uma peça importante ao quebra-cabeça das tentativas de libertação de Gramsci, que, como se sabe, seguiram-se por toda a década da sua prisão. Com base na carta de Tania, podemos considerar que as iniciativas voltadas para obter a libertação e a expatriação de Gramsci para Moscou começaram logo depois da prisão e que todas as vicissitudes da sua libertação constituíram um problema sempre aberto, não uma possibilidade originada periodicamente por circunstâncias tidas como favoráveis pelo partido ou pelo próprio Gramsci.

A segunda ordem de motivos pela qual esta carta constitui um documento importante refere-se à situação de Tania e à sua relação com Gramsci no momento da prisão. Das passagens até agora citadas se estabelece inequivocamente que Tania há muito trabalhava na embaixada soviética e já estava inserida na sua equipe política. Sabemos que Tania foi aceita nas fileiras do partido bolchevique só em 1927, ao passo que, quando Gramsci conseguiu encontrá-la, em fevereiro de 1925, simpatizava com os socialistas revolucionários e não tinha nenhuma filiação partidária. Outros documentos conservados no Instituto Gramsci demonstram que, no curso de 1925, Tania, que se sustentava lecionando no Instituto Crandon, firmou com Gramsci uma relação tão estreita que, por exemplo, colaborava na tradução de alguns capítulos do Manual de Bukharin, que provavelmente deviam servir para as apostilas da escola do partido.

Evidentemente, Tania começara a trabalhar na embaixada soviética graças a Gramsci e, no momento da prisão deste, estava temporariamente sem trabalho porque, como também se deduz desta carta, a embaixada estava reduzindo sensivelmente seus quadros por causa da inclinação cada vez mais agressiva do regime de Mussolini. Mas os elementos mais significativos da carta, no que se refere a Tania, são tanto a informação de que, perdido o emprego na embaixada, poderia trabalhar para Gramsci e para o partido italiano, quanto a prova evidente de que surgiram, do conhecimento de Gramsci, um convívio cotidiano e uma total confiança política. Neste aspecto, a carta constitui o documento mais relevante, pelo que sabemos, sobre as razões pelas quais, depois da prisão de Gramsci, Tania se tornou sua mediação natural com o mundo externo: o mundo político e o mundo afetivo e familiar.



Fonte: L’Unità & Gramsci e o Brasil.

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