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Que fizeram os cabanos?

Lúcio Flávio Pinto - Agosto 2013
 

Álvaro Martins. Moedas para a revolução do povo (a solução cabana para o meio circulante). Belém do Pará: Imprensa Oficial do Estado, 2013. 208p.

A maior obra sobre a Cabanagem, os Motins Políticos ou História dos Principais Acontecimentos Políticos na Província do Pará desde o ano de 1821 até 1835, de Domingos Antonio Raiol, tem apenas duas edições. A primeira, em cinco volumes, foi publicada entre 1865 e 1890, em São Luiz, Belém e no Rio de Janeiro. A segunda, em três volumes, é de 1970. Nunca mais a obra foi reeditada.

Quem consegue encontrar a edição da Universidade Federal do Pará, que caminha para seu cinquentenário, lê com grandes dificuldades. As numerosas notas de rodapé não estão harmonizadas ao corpo do texto. O leitor vai acompanhando a nota e tem que voltar uma ou mais páginas para retomar a narrativa principal. Além disso, a obra carece de uma edição mais bem cuidada, de novas notas elucidativas e outros cuidados que deveriam ser dados ao trabalho do Barão de Guajará, um vigiense de raro tirocínio entre os intelectuais paraenses.

É esta a situação da obra que continua a ser a mais rica em documentação primária sobre o mais traumático dos acontecimentos na história da Amazônia em todos os tempos, além de ser uma preciosidade da bibliografia histórica brasileira. Apesar do seu tamanho, com cerca de mil páginas páginas na edição da UFPA, os Motins Políticos podiam - e mereciam - ser lidos em todo o Brasil. O livro contribuiria bastante para fazer os brasileiros descobrirem um fato da sua história ignorado, maltratado ou deturpado pelos manuais correntes e as interpretações mais recentes sobre o acontecimento.

A mais nova abordagem da Cabanagem também padeceu de alguns deslizes na sua edição. É o caso de Moedas para a revolução do povo (A solução cabana para o meio circulante), de Álvaro Martins, lançado na última feira do livro do Pará. Há muitos erros de editoração, talvez devido à pressa de colocar a obra em circulação para aproveitar o melhor momento para a sua divulgação e comercialização. Felizmente trata-se de pecado venial, a ser purgado numa próxima edição.

A primeira se deve à escolha do trabalho para receber justamente o prêmio Barão de Guajará da Academia Paraense de Letras, com todo o louvor. A condição de jornalista contribuiu bastante para a fluência do texto, que se lê com prazer de uma só vez, como fiz. Álvaro acrescenta a esse dom (indispensável e frequentemente natural no jornalista, para horror da visão corporativa dos que defendem a imposição do diploma superior de comunicação social para o exercício profissional) sua meticulosa pesquisa e rigor acadêmico no tratamento da questão.

Embora sua contribuição mais original se circunscreva ao tema da emissão de moeda pelos presidentes cabanos, ele circula com desenvoltura por toda a bibliografia disponível, atestado de que leu, meditou e concluiu com toque pessoal a respeito desse acervo desigual e, muitas vezes, insuficiente para saber realmente o que aconteceu entre 1921 e 1835, no enquadramento do barão (ele próprio continuaria a sua reconstituição se não tivesse perdido todo o material já escrito em um naufrágio).

Álvaro põe em questão o próprio conceito de origem. Argumenta que, no tempo dos fatos, os cabanos não sabiam que eram cabanos: não se autodenominavam assim nem dessa forma eram tratados. No momento em que a história se fazia, também o episódio não era chamado por Cabanagem. Trata-se de conceito criado pela historiografia, não pelos personagens. Veio depois. É heurístico, tem validade conceitual?

Álvaro não trata disso nem de outras perguntas que faz ao longo da citação bibliográfica que antecede à sua contribuição própria, vinculada à história econômica e à numismática. Ele abre algumas portas enquanto passeia pela obra alheia dedicada à Cabanagem, realizando ensaios originais e provocativos. Um deles é a tentativa de dar cara aos atores da saga, enriquecendo a parca iconografia cabana. É um esforço apreciável, a ser posto em teste.

Outro efeito é mais sonante, digamos assim: a reprodução das moedas remarcadas pelos líderes cabanos ao assumirem, pela primeira vez de forma sistemática e mais duradora, o poder na província. Os cofres quase vazios e as circunstâncias desfavoráveis da guerra civil os levaram a improvisar o meio circulante para manter a vida local, ainda que de forma precária e efêmera. Recolher as moedas ainda em circulação e relançá-las como moeda cabana, com valor inferior ao de face, mas com aceitação compulsória, foi um ato próprio de uma revolução.

Outra das grandes lacunas historiográficas é justamente um exame mais aprofundado (menos perfunctório, diriam os velhos cronistas) das três administrações cabanas de Malcher, Vinagre e Angelim, trabalho que exige o que tem faltado à maioria dos livros recentes: acesso a novos documentos originais e fontes inéditas, que de fato existem. O que abunda é a interpretação e reinterpretação a partir da mesma base, a do barão de Guajará.

O maior mérito do trabalho de Álvaro Martins é avançar sobre o ainda desconhecido, pouco conhecido ou carente de análises esclarecedoras. Se o barão, que deu origem ao Instituto Histórico e Geográfico sob a inspiração iluminista (ainda que vesga) do trono imperial, o que se há de esperar para os demais? No entanto, como o próprio Martins, esses abridores de veredas prosseguem. Já não há tanta escuridão quanto antes nesse caminho vital da história dos paraenses (ou acaraenses, como preferia Haroldo Maranhão).

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Lúcio Flávio Pinto é o editor do Jornal Pessoal, de Belém, e autor, entre outros, de O jornalismo na linha de tiro (2006), Contra o poder. 20 anos de Jornal Pessoal: uma paixão amazônica (2007), Memória do cotidiano (2008) e A agressão (imprensa e violência na Amazônia) (2008).

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Fonte: Jornal Pessoal & Gramsci e o Brasil.

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