As cenas de antidemocracia que ocorreram na entrega do Prêmio Camões a Raduan Nassar, promovidas por uma claque conhecida em determinados ambientes polÃticos, é mais um desserviço à cultura e à polÃtica democrática em nosso paÃs. Os atos e especialmente sua repercussão nas redes e na opinião pública, negativos em si, retiram o foco do que seria essencial discutir, de forma mais produtiva, a respeito das relações entre cultura e polÃtica na contemporaneidade e no nosso paÃs.
No passado havÃamos muitas vezes provado que sabemos fazer essa reflexão, mas parece que precisamos reaprender, ultrapassando as inclinações instrumentais que, a partir de visões finalistas e autoritárias, querem anular a convivência entre diferentes. A natureza e os sentidos do debate cultural sempre foram muito vivos entre nós e precisam ser resgatados e expandidos para o conjunto da sociedade. Há que superar ideologismos rasteiros, posturas fechadas e diretrizes normativas preestabelecidas e ir ao encontro do pluralismo que marca nossas sociedades para se estabelecer uma relação fecunda entre cultura, modernidade e democracia.
As polÃticas públicas para a cultura são fruto do ambiente polÃtico em que vivemos, bem como da nossa presença nele. São objetivas e subjetivas, simultaneamente, e no caso brasileiro guardam um sentido preciso: a esperança de se construir um paÃs mais democrático, com relações cada vez mais igualitárias, promotoras da alteridade e operadas a partir da plena liberdade de expressão e de manifestação. Seu objetivo principal é garantir a todos e a cada um o acesso amplo à s manifestações culturais, bem como à possibilidade de produção simbólica, independentemente de sexo, etnia, credo religioso e origem.
Em termos culturais, um paÃs democrático se constrói quando se pensa a partir de um princÃpio: o locus da produção cultural é e deve continuar sendo a sociedade civil. Uma polÃtica cultural de viés emancipador deve partir desse ponto, mobilizando a participação efetiva, independente e criadora dos produtores culturais. Enquadrar a polÃtica cultural a partir de uma lógica de grupos, partidos ou mesmo do Estado sempre criou mais problemas e disfunções do que o florescimento da cultura. Partidos polÃticos que se fundam nessa lógica não têm dado uma contribuição positiva à sociedade, muito ao contrário. Como afirmou Norberto Bobbio, "a polÃtica da cultura é uma posição de abertura máxima em direção a posições filosóficas, ideológicas e mentais diferentes, dado que é uma polÃtica relativa à quilo que é comum a todos os homens de cultura e não atinente ao que os divide"; é, no fundo, "uma polÃtica feita pelos homens de cultura para os próprios fins da cultura".
Sabemos que a produção de cultura necessita do apoio do Estado para se tornar viável. O engajamento do poder público vem da consciência de que boa parte da produção cultural não é capaz de sobreviver a contento numa sociedade predominantemente mercantilizada. Por isso o impulso e o estÃmulo à criação artÃstico-cultural devem procurar combinar suas ações, sempre que possÃvel, buscando um equilÃbrio entre o Estado e as exigências do mercado.
Mas é importante compreender que a polÃtica cultural, ao incentivar, promover, proteger e difundir a cultura em todas as suas formas e expressões, visa também a aproximar cultura de cidadania, atribuindo à s manifestações culturais o status de um direito. Um dos dados mais importante da conjuntura que vivemos é o fato de que o PaÃs assimilou a necessidade de se estabelecer uma conexão entre as instituições polÃticas da democracia e os desafios abertos com a atual "revolução cidadã" que a Nação vive desde as manifestações de 2013. Nada a estranhar: nossa cultura sempre foi mais criativa quando se abriu e realizou o embate polÃtico, sem receio e sem preconceitos, envolvendo, na criação e na crÃtica, intelectuais e artistas de diversos matizes.
Claro está, portanto, que uma polÃtica cultural supõe e exige comprometimento com a trajetória democrática do PaÃs, além de imparcialidade e incorporação de uma visão pluralista que brota da sociedade. Supõe também a recusa à famigerada barganha polÃtico-eleitoral que muitos governos - até os que se declaram de esquerda - acabaram por reproduzir, mesmo que embalada em maquiagens modernas, contribuindo com a reprodução de uma visão oligarquizada e patrimonialista do Estado, nefasta à democracia. Uma polÃtica cultural democrática deve ser aberta e projetada para servir à cultura e só a ela. Deve fazer jus à ideia de que a cultura é uma esfera social e humana que supre e, ao mesmo tempo, gera novas necessidades culturais.
Integrados ao mundo como sempre fomos, nós, brasileiros, invariavelmente nos inclinamos a promover uma perspectiva cultural de superação das fronteiras artificiais e reducionistas que opõem o caráter popular ao erudito, essa "muralha chinesa" mental que vem criando obstáculos à intersecção dessas duas dimensões culturais da nossa formação histórica. Algo que nunca fez muito sentido porque nossa cultura sempre expressou hibridismo e uma mescla étnica que impediram o estabelecimento de guetos culturais e populacionais, como em outras histórias nacionais.
Uma polÃtica cultural progressista se pauta, portanto, na máxima qualificação da produção cultural, seja ela de perfil popular ou não. O PaÃs precisa resgatar e dar um novo curso a essa visão. Trata-se de uma tarefa que depende - mas a supera - da esfera dos artistas e intelectuais e deve ser assumida por toda a sociedade.
O embate desastroso provocado na sessão do Prêmio Camões só contribuiu para impedir que se discuta com abertura, pertinência e profundidade o que deve ser discutido na área cultural. Foi, mais uma vez, a imposição de uma narrativa estapafúrdia que só faz consumir nossas melhores energias.
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Alberto Aggio é historiador e professor titular da Unesp.
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