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Bento XVI, La Sapienza e a questão da tolerância

Walter Veltroni - Janeiro 2008
Tradução: A. Veiga Fialho
 

Publicamos trechos da intervenção feita por Walter Veltroni, prefeito de Roma e líder do Partido Democrático, ora em formação na Itália a partir de diferentes matrizes culturais e políticas (inclusive, e sobretudo, com significativa presença dos Democratici di sinistra, que recolhem, ainda que criticamente, parte considerável do legado do velho PCI). A intervenção de Veltroni tem como pano de fundo a "suspensão" da visita do Papa à Universidade La Sapienza, em Roma, no dia 17 de janeiro, depois de protestos de vários professores e estudantes, com base em argumentos como a moral sexual, a laicidade ou o próprio caso Galileu. A visita de Bento XVI estava inserida nos procedimentos de abertura do ano acadêmico 2007-2008, que se realiza sob o lema do "compromisso pela abolição da pena de morte" em todo o mundo.

Saiamos da escuridão.

Quero logo dizer que o que aconteceu, para um democrata, é inaceitável. Quem ensina numa universidade bem sabe que jamais pode acontecer, por motivo nenhum, que a intolerância cancele a palavra, que não se permita a uma opinião ser expressa e escutada. Em nenhum caso. Menos ainda quando se trata de temas que têm a ver com os direitos universais do homem e quando quem expressa tal opinião é uma figura como Bento XVI, que para milhões e milhões de pessoas, em todo o mundo, representa um altíssimo e imprescindível ponto de referência espiritual, cultural e moral.

Foi o que aconteceu nestes dias, e é grave para a cultura liberal e democrática. Entre outras coisas, pude ler o discurso que o Papa iria ler nesta manhã. Um discurso aberto, inovador, sob o signo do debate e do diálogo.

Anteontem, Francesco Paolo Casavola escreveu que a vontade de não permitir a participação do Papa Bento XVI, do Bispo de Roma, na abertura do ano acadêmico da Universidade La Sapienza, é a seu modo um sinal inquietante dos tempos.

Tempos difíceis - infelizmente cabe dizer -, se, junto com o medo em razão das grandes transformações econômicas e financeiras, crescer o medo por causa da livre circulação das pessoas, das suas idéias, da sua visão do mundo, da sua religião. E se este medo alimentar fechamento, separação, entrincheiramente puramente identitário. Numa identidade que não é serena consciência de si e, precisamente por isso, convicta disposição ao diálogo, mas contraposição, soerguimento de muros, integrismo.

É verdade: este é um tempo escuro, no qual o risco é o de deixar-se vencer pelo pessimismo, o de ceder à idéia de que um conflito entre mundos diferentes seja inevitável e não reste outra coisa a fazer senão reforçar as fronteiras do próprio pertencimento e construir muros para defender-se daquilo que é estranho, quer se trate de indivíduos e povos, quer se trate de culturas ou de religiões. O que domina, neste nosso tempo, é uma insegurança radical: o outro é visto com suspeita, torna-se logo adversário, aquele que ameaça nossa existência, nossos valores, nossa vida tal como sempre a conhecemos. E assim logo nos vem a tentação de fugir dele, de afastá-lo, cada qual encerrando-se no falso abrigo da própria casa ideológica.

Mas o medo não é a resposta. Não pode ser. Nunca foi. "A única coisa que devemos temer - dizia Franklin Delano Roosevelt - é o próprio medo".

Hoje também, e também na Itália, devemos ter muita atenção. Está inclinado demais o plano que pode levar da diversidade à incompreensão, à incomunicabilidade e, em seguida, à intolerância, à hostilidade. Até o risco, que é uma ameaça gravíssima para todos, da fratura, do choque. Daquela fratura e daquele choque que esta Universidade conheceu, pagando um preço altíssimo, no tempo de ódio e violência resumido nos nomes de Paolo Rossi e Ezio Tarantelli.

Tem razão, tem perfeitamente razão quem escreveu - comentando um desfecho que lembra censura, recusa ao diálogo e ao debate - que ontem algo se rompeu, que ocorreu algo inaceitável para um país democrático e para todos os que acreditam na liberdade das idéias e da sua expressão.

Não respiramos mais liberdade nestes dias. Respiramos menos. Não se afirmou, não está mais forte do que antes o princípio da laicidade. Um princípio para mim indiscutível. Laicidade do Estado, das instituições públicas, dos comportamentos de cada indivíduo. Laicidade que significa, antes de mais nada, recusa de qualquer intolerância, ausência de preconceito, respeito às posições do outro, acolhimento das verdades que possam conter.

Não existe laicidade, ela não pode viver quando desaparece a liberdade.

Pode-se não compartilhar a palavra dos outros, e criticá-la, mas não impedir que seja pronunciada. É a consciência da própria falta de auto-suficiência, da própria imperfeição e finitude que desde sempre permitiu aos homens vencer o medo e ter a vontade de se buscarem através do diálogo, de se conhecerem, de se encontrarem. Foi a dúvida, a curiosidade intelectual, a vontade de descobrir territórios inexplorados que ao longo do tempo ampliaram a esfera da liberdade da ciência, da pesquisa, e permitiram à humanidade realizar seu extraordinário caminho de progresso. Um caminho que deve prosseguir.

Ai de nós se tudo o que de melhor construímos neste longo percurso de civilização for posto em risco pela resposta equivocada às incertezas e às inseguranças que, com efeito, marcam este tempo. Ai de nós se o mundo se fechar, se as pessoas voltarem ao tempo do medo, da desconfiança, da presunção da própria auto-suficiência, da percepção do outro como inimigo.

A resposta possível é uma só, e é oposta a esta. Está no diálogo, na convivência entre a própria identidade e a disponibilidade à abertura. Está na vontade de buscar, até encontrar, conhecimento, respeito recíproco e convivência pacífica. Está na diversidade concebida não como estranheza e perigo, mas como possibilidade, como investigação, como enriquecimento humano e cultural.

Tudo isso são coisas das quais precisamente a Universidade sempre foi, na história da civilização italiana e européia, símbolo e concreto lugar físico. Coisas que não se podem obter sem respeito e sem liberdade de pensamento, de palavra, de expressão.

Roma é a cidade na qual isto sempre foi possível, e não pretende abrir mão deste papel. Quem o diz é aquele que, como prefeito, não quis encontrar e apertar a mão do então vice-primeiro-ministro iraquiano, Tariq Aziz, que no dia anterior se recusara a responder à pergunta de um jornalista só porque este jornalista era israelense, negando seu direito de se expressar.

Roma é, e sempre será, contrária a todo tipo de discriminação, contrária a toda forma de intolerância. Está inscrito na sua própria identidade. E é um compromisso cotidiano.

Em Roma, a Igreja Católica convive serenamente e de modo fecundo com as outras duas grandes religiões monoteístas. Em momentos difíceis, e penso em particular nos dias seguintes ao 11 de setembro de 2001, o Campidoglio foi o lugar de encontro dos representantes de toda fé, que debateram, dialogaram, se encontraram. O Dalai Lama trouxe suas palavras até o coração das nossas instituições. Dentro de poucos dias, o Imã da Grande Mesquita trará as suas até o Templo Maior, até a Sinagoga, o que será uma demonstração adicional do espírito que anima esta cidade.

Mas é a Itália, é todo o país que deve sair da espiral de ódio, da recíproca deslegitimação, do choque como fim em si mesmo. De outro modo, e o digo medindo as palavras, acontecerá o que há meses denuncio: o agravamento extremo da crise do sistema democrático, de que vemos tantos sinais e que, ao contrário, muitos parecem não perceber.

Devemos sair, neste país, do inaceitável condicionamento de poucos, de minorias; do inexplicável domínio de lógicas de veto e de condicionamento ideológico que impedem a Itália de crescer, e crescer serenamente. São posições que muitas vezes nascem com o olhar voltado para trás. E que ameaçam nos levar para trás, reabrindo velhas feridas, contraposições superadas, que hoje soariam apenas inutilmente anacrônicas, se não fossem também danosas.

A Itália precisa de outra coisa. A nossa sociedade, as relações entre nós e o mundo da cultura e da investigação precisam de outra coisa. De reencontrar o sentido de um caminho comum. De dar precedência, em relação às disputas do passado, às escolhas que se referem à vida concreta das pessoas e ao papel do nosso país no mundo, que se referem ao futuro.

Disse-o da melhor maneira um grande arquiteto, ligado de modo particular a esta cidade. "Tenho cada vez mais a impressão - são as palavras de Renzo Piano - de que nos tornamos um país prisioneiro de medos. E o primeiro é o medo do futuro. Declinado de várias formas. Metem medo a sociedade multiétnica, as mudanças sociais, as descobertas científicas sempre representadas como perigo, a contemporaneidade em geral. Abre caminho até mesmo entre os jovens a nostalgia de um passado muito idealizado. Combinam-se uma memória curta e uma esperança breve, e o resultado é a imobilidade. O passado pode ser um bom refúgio, mas o futuro é o único lugar para onde podemos ir".



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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